metafísica do ser

O ente que é ao modo da existência é o homem. Somente o homem existe. O rochedo é, mas não existe. A árvore é, mas não existe. O anjo (82) é, mas não existe. Deus é, mas não existe. A frase: “Somente o homem existe” de nenhum modo significa apenas que o homem é um ente real, e que todos os entes restantes são irreais e apenas uma aparência ou a representação do homem. A frase: “O homem existe” significa: o homem é aquele ente cujo ser é assinalado pela in-sistência ex-sistente no desvelamento do ser a partir do ser e no ser. A essência existencial do homem é a razão pela qual o homem representa o ente enquanto tal e pode ter consciência do que é representado. Toda consciência pressupõe a existência pensada ekstaticamente como a essentia do homem, significando então essentia aquilo que é o modo próprio de o homem ser (west) na medida em que é homem. A consciência, pelo contrário, nem é a primeira a criar a abertura do ente, nem a primeira que dá ao homem o estar aberto para o ente. Pois, qual seria a meta, o lugar de origem e a dimensão livre para o movimento de toda a intencionalidade da consciência se o homem já não tivesse sua essência na in-sistência? Meditada com seriedade, que outra coisa pode designar a palavra “-ser” (“-sein”) na palavra consciência (Bewusstsein = ser consciente) e autoconsciência (Selbstbewusstsein = ser-autoconsciente) a não ser a essência existencial daquele que é quando existe? Ser um si-mesmo caracteriza, sem dúvida, a essência daquele ente que existe; mas a existência não consiste nem no ser-si-mesmo, nem a partir dele se determina. Pelo fato, porém, de o pensamento metafísico determinar o ser-si-mesmo do homem a partir da substância ou, o que no fundo é o mesmo, a partir do sujeito, o primeiro caminho que leva da metafísica para a essência ekstático-existencial do homem, deve passar através da determinação metafísica do ser-si-mesmo do homem (Ser e Tempo, §§ 63 e 64). MHeidegger: O RETORNO AO FUNDAMENTO DA METAFÍSICA

O comum-pertencer de homem e ser ao modo da recíproca provocação nos faz ver, de uma proximidade desconcertante, o fato e a maneira como o homem está entregue como propriedade ao ser e como o ser é apropriado ao homem. Trata-se de simplesmente experimentar este ser próprio de, no qual homem e ser estão reciprocamente a-propriados, experimentar que quer dizer penetrar naquilo que digamos acontecimento-apropriação (NT: O filósofo procura delimitar aquele âmbito em que homem e ser acontecem e se apropriam reciprocamente (no caso da relação homem-técnica, chamado arrazoamento) pela palavra Ereignis. Traduzo-a por acontecimento-apropriação, como os franceses por eoénément-appropriation. Na palavra alemã se escondem ambos os pólos expressos pelo termo composto, usado pelas duas línguas românticas em questão. Em seu livro Unteruxgs zur Sprache Heidegger comenta seu uso da palavra Ereignis: “Hoje, quando aquilo que ainda quase não foi pensado ou pensado pela metade é logo entregue apressadamente a toda forma de publicidade, parecerá a muitos inacreditável o fato de o autor ter utilizado já, em seus manuscritos, há mais de vinte e cinco anos, a palavra acontecimento-apropriação para a coisa que aqui pensa. Esta coisa, ainda que simples em si mesma, permanece, em primeiro lugar, difícil de ser pensada porque o pensamento deve desacostumar-se a cair no engano de que aqui se pensa ‘o ser’ como acontecimento-apropriação. O acontecimento-apropriação é essencialmente outra coisa, porque muito mais rico que qualquer possível determinação metafísica do ser. Pelo contrário, o ser pode ser pensado, no que respeita a sua origem essencial, a partir do acontecimento-apropriação” (p. 260).) A palavra acontecimento-apropriação é tomada da linguagem natural. “Er-eignen” (acontecer) significa originariamente: “er-dugnen”, quer dizer, descobrir com o olhar, despertar com o olhar, apropriar. A palavra acontecimento-apropriação deve, agora, pensada a partir da coisa apontada, falar como palavra-guia a serviço do pensamento. Como palavra-guia assim pensada, ela se deixa traduzir tão pouco quanto a palavra-guia grega lógos ou a chinesa Tao. A palavra acontecimento-apropriação não significa mais aqui aquilo que em geral chamamos qualquer acontecimento, uma ocorrência. A palavra é empregada agora como singulare tantum. Aquilo que designa só se dá no singular, no número da unidade, ou nem mesmo num número, mas unicamente. O que no arrazoamento, como constelação de ser e homem, experimentamos através do moderno universo da técnica, é um prelúdio daquilo que se chama acontecimento-apropriação. Este, contudo, não permanece necessariamente em seu prelúdio. Pois no acontecimento-apropriação fala a possibilidade de ele poder superar e realizar em profundidade o simples imperar do arrazoamento num acontecer mais originário. Uma tal superação e aprofundamento do arrazoamento, partindo do acontecimento-apropriação e nele penetrando, traria a redenção historial – portanto, jamais unicamente factível pelo homem – do universo técnico, de sua ditadura, para pô-lo a serviço no âmbito através do qual o homem encontra mais.autenticamente o caminho para o acontecimento-apropriação. MHeidegger: IDENTIDADE E DIFERENÇA

A expressão-guia da determinação metafísica do ser do ente, “ser e pensar”, não é suficiente nem mesmo para lançar a questão do ser, e muito menos para encontrar uma resposta. MHeidegger: A TESE DE KANT SOBRE O SER