Gomes Pereira
Que há em comum nessas filosofias esparsas por três séculos que agrupamos sob a insígnia da subjetividade? Há o Eu que Montaigne amava acima de tudo, e que Pascal odiava, aquele de que [167] mantemos registro diário, de que anotamos as audácias, as fugas, as intermitências, as voltas, que experimentamos ou testamos como um desconhecido. Há o Eu que pensa de Descartes e de Pascal ainda, aquele que alcançamos por um só instante, mas que é então tudo em sua aparência, é tudo o que pensa ser e nada mais, aberto a tudo, jamais fixo, sem outro mistério além dessa mesma transparência. Há a série subjetiva dos filósofos ingleses, as ideias que se conhecem a si mesmas num contato mudo, e como que por uma propriedade natural. Há o eu de Rousseau, abismo de culpabilidade e de inocência, que organiza sozinho o complô em que se sente preso, e contudo reivindica com todo o direito, diante desse destino, a sua incorruptível bondade. Há o sujeito transcendental dos kantianos, tão próximo e mais próximo do mundo do que da intimidade psicológica, que os contempla a ambos depois de tê-los construído, e contudo sabe também que é o “habitante” do mundo. Há o sujeito de Biran que não só sabe estar no mundo mas está nele, e nem sequer poderia ser sujeito se não tivesse um corpo para mover. Há enfim a subjetividade no sentido de Kierkegaard, que já não é uma região do ser, mas a única maneira fundamental de reportar-se ao ser, o que faz com que sejamos algo em vez de sobrevoar todas as coisas num pensamento “objetivo”, que, afinal, nada pensa verdadeiramente. Por que fazer dessas “subjetividades” discordantes momentos de uma única descoberta?
E por que “descoberta”? Deveremos acreditar que a subjetividade estava presente antes dos filósofos, exatamente tal como depois a deviam compreender? Uma vez sobrevinda a reflexão, uma vez pronunciado o “eu penso”, o pensamento de ser tornou-se de tal modo nosso que, se tentarmos expressar o que o precedeu, todo o nosso esforço conseguirá apenas propor um cogito pré-reflexivo. Mas o que é esse contato de si consigo antes de ser revelado? É diferente de um outro exemplo da ilusão retrospectiva? O conhecimento que adquirimos nele não é na verdade apenas volta ao que já se sabia através da nossa vida? Mas eu não me sabia em termos próprios. Que será então esse sentimento de si que não se possui e ainda não coincide consigo? Disseram que suprimir da subjetividade a consciência era retirar-lhe o ser, que um amor inconsciente não é nada, porquanto amar é achar alguém, ações, gestos, um rosto, um corpo agradáveis. Mas o cogito antes da reflexão, o sentimento de si sem conhecimento oferecem a mesma dificuldade. Portanto, ou [168] a consciência ignora as suas origens, ou, se quer atingi-las, pode apenas projetar-se nelas. Em ambos os casos, não se deve falar de “descoberta”. A reflexão não só desvelou o irrefletido, ela o transformou, ainda que fosse em sua verdade. A subjetividade não estava esperando os filósofos como a América desconhecida esperava nas brumas do oceano os seus exploradores. Eles a construíram, a fizeram, e de mais de uma maneira. E o que fizeram talvez deva ser desfeito. Heidegger pensa que perderam o ser no dia em que o fundaram sobre a consciência de si.
Mesmo assim não renunciamos a falar de uma “descoberta” da “subjetividade”. Estas dificuldades obrigam-nos apenas a dizer em que sentido.
O parentesco das filosofias da subjetividade fica imediatamente evidente logo que as colocamos em face das outras. Sejam quais forem as suas discordâncias, os modernos têm em comum a ideia de que o ser da alma ou o ser-sujeito não é um ser menor, que talvez seja a forma absoluta do ser, sendo isso que o nosso título quer enfatizar. Muitos dos elementos de uma filosofia do sujeito estavam presentes na filosofia grega: esta falou do “homem medida de todas as coisas”; reconheceu na alma o singular poder de ignorar o que sabe com a pretensão de saber o que ignora, uma incompreensível capacidade de erro, ligada à sua capacidade de verdade, uma relação com o não-ser tão essencial nela como a sua relação com o ser. Por outro lado, concebeu (Aristóteles coloca-o no topo do mundo) um pensamento que é somente pensamento de si, e uma liberdade radical, para além de todos os graus da nossa potência. Logo, conheceu a subjetividade como noite e como luz. Mas ocorre que o ser do sujeito ou da alma nunca é para os gregos a forma canônica do ser; para eles o negativo nunca está no centro da filosofia, nem é encarregado de fazer aparecer, de assumir, de transformar o positivo.
Pelo contrário, de Montaigne a Kant e mais além dele, é o mesmo ser-sujeito que está em questão. A discordância das filosofias é decorrente de a subjetividade não ser coisa nem substância, mas a extremidade tanto do particular quanto do universal, decorrente do fato de ela ser Proteu. As filosofias seguem de um modo ou de outro as suas metamorfoses, e, sob as suas divergências, é essa dialética que se oculta. Não há, no fundo, senão duas ideias da subjetividade: a da subjetividade vazia, solta, universal, e a da [169] subjetividade plena, entranhada no mundo, sendo a mesma ideia, como se vê bem em Sartre, a ideia do nada que “vem ao mundo”, que bebe o mundo, que tem necessidade do mundo para ser o que quer que seja, mesmo nada, e que, no sacrifício que faz de si mesmo ao ser, permanece estrangeiro ao mundo.
E por certo isso não é uma descoberta no sentido em que se descobriu a América ou mesmo o potássio. Não obstante é uma descoberta, no sentido de que, uma vez introduzido na filosofia, o pensamento do subjetivo não se deixa mais ignorar. Mesmo que a filosofia venha por fim a eliminá-lo, nunca mais será o que foi antes desse pensamento. O verdadeiro, por mais construído que seja (e a América também é uma construção, tornada simplesmente inevitável pela infinidade de testemunhos), torna-se em seguida tão sólido como um fato, e o pensamento do subjetivo é um desses sólidos que a filosofia deverá digerir. Ou ainda, digamos que, uma vez “infectada” por certos pensamentos, já não os pode anular; é preciso que se cure deles inventando melhores. O próprio filósofo que hoje sente saudades de Parmênides e gostaria de tornar as nossas relações com o Ser tais como eram antes da consciência de si deve justamente à consciência de si o seu sentido e o seu gosto pela ontologia primordial. A subjetividade é um desses pensamentos aquém dos quais não voltamos, mesmo e sobretudo se os superamos.
Original
Quoi de commun à ces philosophies éparpillées sur trois siècles, que nous groupons sous l’enseigne de la subjectivité ? Il y a le Moi que Montaigne aimait plus que tout, et que Pascal haïssait, celui dont on tient registre jour par jour, dont on note les audaces, les fuites, les intermittences, les retours, que l’on met à l’essai ou à l’épreuve comme un inconnu. Il y a le Je qui pense de Descartes et de Pascal encore, celui qui ne se rejoint qu’un instant, mais alors il est tout dans son apparence, il est tout ce qu’il pense être et rien d’autre, ouvert à tout, jamais fixé, sans autre mystère que cette transparence même. Il y a la série subjective des philosophes anglais, les idées qui se connaissent elles-mêmes dans un contact muet, et comme par une propriété naturelle. Il y a le moi de Rousseau, abîme de culpabilité et d’innocence, qui organise lui-même le « complot » où il se sent pris, et pourtant revendique à bon droit, devant cette destinée, son incorruptible bonté. Il y a le sujet transcendantal des kantiens, aussi proche et plus proche du monde que de l’intimité psychologique, qui les contemple l’une et l’autre après les avoir construits, et pourtant se sait aussi l’« habitant » du monde. Il y a le sujet de Biran qui ne se sait pas seulement dans le monde mais qui y est, et ne pourrait pas même être sujet s’il n’avait un corps à mouvoir. Il y a enfin la subjectivité au sens de Kierkegaard, qui n’est plus une région de l’être, mais la seule manière fondamentale de se rapporter à l’être, ce qui fait que nous sommes quelque chose au lieu de survoler toutes choses dans une pensée « objective », qui, finalement, ne pense vraiment rien. Pourquoi faire de ces « subjectivités » discordantes les moments d’une seule découverte ?
Et pourquoi « découverte » ? Faut-il donc croire que la subjectivité était là avant les philosophes, exactement telle qu’ils devaient ensuite la comprendre ? Une fois survenue la réflexion, une fois prononcé le « je pense », la pensée d’être est si bien devenue notre être que, si nous essayons d’exprimer ce qui l’a précédée, tout notre effort ne va qu’à proposer un cogito préréflexif. Mais qu’est-ce que ce contact de soi avec soi avant qu’il ne soit révélé ? Est-ce autre chose qu’un autre exemple de l’illusion rétrospective ? La connaissance qu’on en prend n’est-elle vraiment que retour à ce qui se savait déjà à travers notre vie ? Mais je ne me savais pas en propres termes. Qu’est-ce donc que ce sentiment de soi qui ne se possède pas et ne coïncide pas encore avec soi ? On a dit qu’ôter de la subjectivité la conscience, c’était lui retirer l’être, qu’un amour inconscient n’est rien, puisque aimer c’est voir quelqu’un, des actions, des gestes, un visage, un corps comme aimables. Mais le cogito avant la réflexion, le sentiment de soi sans connaissance offrent la même difficulté. Ou bien donc la conscience ignore ses origines, ou, si elle veut les atteindre, elle ne peut que se projeter en elles. Dans les deux cas, il ne faut pas parler de « découverte ». La réflexion n’a pas seulement dévoilé l’irréfléchi, elle l’a changé, ne serait-ce qu’en sa vérité. La subjectivité n’attendait pas les philosophes comme l’Amérique inconnue attendait dans les brumes de l’Océan ses explorateurs. Ils l’ont construite, faite, et de plus d’une manière. Et ce qu’ils ont fait est peut-être à défaire. Heidegger pense qu’ils ont perdu l’être du jour où ils l’ont fondé sur la conscience de soi.
Nous ne renonçons pourtant pas à parler d’une « découverte » de la « subjectivité ». Ces difficultés nous obligent seulement à dire dans quel sens.
La parenté des philosophies de la subjectivité est évidente d’abord dès qu’on les place en regard des autres. Quelles que soient leurs discordances, les modernes ont en commun l’idée que l’être de l’âme ou l’être-sujet n’est pas un être moindre, qu’il est peut-être la forme absolue de l’être, et c’est ce que veut marquer notre titre. Bien des éléments d’une philosophie du sujet étaient présents dans la philosophie grecque : elle a parlé de l’« homme mesure de toutes choses » ; elle a reconnu dans l’âme le singulier pouvoir d’ignorer ce qu’elle sait avec la prétention de savoir ce qu’elle ignore, une incompréhensible capacité d’erreur, liée à sa capacité de vérité, un rapport avec le non-être aussi essentiel en elle que son rapport avec l’être. Elle a, par ailleurs, conçu (Aristote la place au sommet du monde) une pensée qui n’est pensée que de soi, et une liberté radicale, par-delà tous les degrés de notre puissance. Elle a donc connu la subjectivité comme nuit et comme lumière. Mais il reste que l’être du sujet ou de l’âme n’est jamais pour les Grecs la forme canonique de l’être, que jamais pour eux le négatif n’est au centre de la philosophie, ni chargé de faire paraître, d’assumer, de transformer le positif.
Au contraire, de Montaigne à Kant et au-delà, c’est du même être-sujet qu’il est question. La discordance des philosophies tient à ce que la subjectivité n’est pas chose ni substance, mais l’extrémité du particulier comme de l’universel, à ce qu’elle est Protée. Les philosophies suivent tant bien que mal ses métamorphoses, et sous leurs divergences, c’est cette dialectique qui se cache. Il n’y a, au fond, que deux idées de la subjectivité : celle de la subjectivité vide, déliée, universelle, et celle de la subjectivité pleine, enlisée dans le monde, et c’est la même idée, comme on le voit bien chez Sartre, l’idée du néant qui « vient au monde », qui boit le monde, qui a besoin du monde pour être quoi que ce soit, même néant, et qui, dans le sacrifice qu’il fait de lui-même à l’être, reste étranger au monde.
Et certes, ceci n’est pas une découverte au sens où l’on a découvert l’Amérique ou même le potassium. C’en est une cependant, en ce sens que, une fois introduite en philosophie, la pensée du subjectif ne se laisse plus ignorer. Même si la philosophie l’élimine enfin, elle ne sera plus jamais ce qu’elle fut avant cette pensée. Le vrai, tout construit qu’il soit (et l’Amérique aussi est une construction, devenue simplement inévitable par l’infinité des témoignages), devient ensuite aussi solide qu’un fait, et la pensée du subjectif est un de ces solides que la philosophie devra digérer. Ou encore, disons qu’une fois « infectée » par certaines pensées, elle ne peut plus les annuler ; il faut qu’elle en guérisse en inventant mieux. Le philosophe même qui aujourd’hui regrette Parménide et voudrait nous rendre nos rapports avec l’Être tels qu’ils ont été avant la conscience de soi doit justement à la conscience de soi son sens et son goût de l’ontologie primordiale. La subjectivité est une de ces pensées en deçà desquelles on ne revient pas, même et surtout si on les dépasse.