Marques Cabral (2014:37-39) – tematização do sagrado na obra de Heidegger

Não menos problemática é a tematização do sagrado na obra de Heidegger. Nas suas Interpretações fenomenológicas de Aristóteles (GA61), escrito de 1923, que antecipa diversos aspectos da analítica existencial de Ser e tempo, Heidegger afirma que “a filosofia é fundamentalmente ateia e compreende o que é”. (GA61:18) Essa afirmação não é aleatória, ela foi dita na primeira parte do texto, intitulada “Quadro da situação hermenêutica”, que delimita a proposta do escrito e caracteriza seu método. Nesse sentido, Heidegger delimita a tarefa da filosofia à investigação fenomenológica do ser-aí do homem. Em suas palavras: “O objeto da investigação filosófica é o ser-aí do homem, na medida em que é interrogado em seu modo de ser”. (GA61:27) Esse modo de ser originário do ser-aí é sua vida fática e a mobilidade que lhe é constitutiva. Para acessar a descrição da mobilidade da vida fática do ser-aí humano, Heidegger lança mão do método fenomenológico-hermenêutico. Dito de modo um tanto encurtado, a descrição da vida fática é fenomenológica por ater-se ao campo intencional primário do ser-aí que se identifica com sua vida-fática-no-mundo. Por outro lado, ela é hermenêutica porque a descrição fenomenológica atém-se ao sentido de um ente que projeta sentido em sua vida fática. (SZ:§7 (ET7) e §31 (ET31) ) Se o centro da filosofia é a vida fática do ser-aí, por ser essa o índice de determinação dos múltiplos campos fenomênicos, ela deve alijar de si toda consideração extrínseca que objetive os correlatos intencionais que aparecem na investigação fenomenológico-hermenêutica. Por isso, a filosofia terá “no ateísmo a hipérbole de sua diretiva essencial”. Em outras palavras, o ateísmo torna-se, na hermenêutica da facticidade heideggeriana, princípio metodológico, excluindo qualquer menção a um ente transcendente para descrever a estrutura da vida fática do ser-aí humano. Por isso a perplexidade de Heidegger expressa em texto enviado para Nartorp, por ocasião da entrega do exemplar das Interpretações fenomenológicas de Aristóteles: “Não é puro absurdo a ideia de Filosofia da religião, se ela põe de lado a facticidade humana?”. (GA61:53) A epoché fenomenológica é, portanto, antiteísta e antiteológica por essência.

Em 1924, no texto O conceito de tempo (GA64), pronunciado para a sociedade de Teólogos de Marburg, que também se aproxima da analítica existencial de Ser e tempo, Heidegger delimita o campo de atuação da filosofia, proscrevendo desta a questão da fé (Glaube). Ao mesmo tempo, como fica evidente no título, sendo a temática do texto o tempo, sua abordagem fenomenológico-hermenêutica não pode conduzir a Deus e à eternidade, considerada pela teologia cristã como atributo divino. Isso porque a teologia pensa que o acesso à eternidade se dá mediante a fé. Como a filosofia não é atividade da fé, sua relação com o Deus da tradição é inviável. Por outro lado, o filósofo relaciona-se com o tempo enquanto tema fenomenológico, já que ele é o horizonte possibilitador da existência fática do ser-aí, e, por isso, pode compreender a eternidade a partir do próprio tempo. Nas palavras de Heidegger:

<poesie>Se a eternidade for algo diferente do vazio do sempre ser, o aeí, se a eternidade for Deus, então, o modo inicial da observação sobre o tempo deverá permanecer por longo tempo numa aporia, porque não se sabe nada de Deus, não se compreende o questionamento por Deus. Se o acesso a Deus é a fé e se o envolver-se com a eternidade nada mais é do que esta fé, então a filosofia nunca possuirá a eternidade e esta nunca poderá ser tomada metodicamente como possível indicação para a discussão sobre o tempo. Esta aporia a filosofia nunca poderá solucionar (…).

O filósofo não crê. (GA64:6-9)

Os escritos da primeira fase do pensamento de Heidegger, ou seja, antes da viragem (die Kehre), possuem diversas menções à suspensão de elementos religiosos — sobretudo cristãos — da abordagem fenomenológico-hermenêutico do ser-aí. Em Ontologia: Hermenêutica da facticidade (GA63), de 1923, e em Ser e tempo, Heidegger menciona a necessidade de suspender as bases da antropologia cristã, para que a estrutura do ser-aí apareça com transparência. (GA63:§5; SZ:§10 (ET10) ) Essa antropologia é baseada na ideia de que o homem, segundo o livro de Gênesis, é imago Dei, ou seja, é imagem e semelhança de Deus (Gn 1,26). Tal ideia foi incorporada na filosofia medieval por meio da tradução latina da expressão grega “zoon logon echon”: o animal rationale. Sendo a racionalidade a diferença específica do homem, é nela que se percebe a imago Dei. Isso leva a diversos desdobramentos antropológicos, que marcam essencialmente o pensamento moderno, como podemos perceber nas noções de pessoa e de transcendência. Porquanto essas considerações obnubilam a percepção fenomenológica da estrutura do ser-aí, Heidegger se esforçará por suspender por completo a presença da teologia cristã em sua analítica existencial do ser-aí e em todo o projeto de sua ontologia fundamental. Isso corrobora o ateísmo enquanto postura metodológica e enquanto meio de recolocação do foco originário de determinação da filosofia: o ser-aí-no-mundo.