Marques Cabral (2014:17-21) – estratégias de enfrentamento do niilismo

(…) duas estratégias muito comuns no enfrentamento atual da experiência do niilismo, a saber, a estratégia nostálgica e a estratégia remoralizadora. Por vezes agindo de modo complementar e outras agindo autonomamente, essas estratégias têm em comum a intenção de corrigir o niilismo através do enfrentamento de seus efeitos. Não é raro escutarmos críticas incisivas ao mundo contemporâneo, não somente a partir de princípios vinculadores antigos, mas sobretudo em prol de sua rememoração, além da tentativa de sua reinstauração. Tais críticas são presentes nos diversos meios de comunicação em massa. No entanto, elas perpassam diversas compreensões filosóficas acerca do niilismo, deflagrando em parte o que aqui está sendo chamado de estratégia nostálgica. Vale a pena levar em conta o pensamento do filósofo brasileiro Henrique Claudio de Lima Vaz como paradigma desse tipo de estratégia. Ainda que esse filósofo não proponha nenhuma solução filosófica para os impasses do niilismo atual, seus objetos temáticos e seu modo de tematização desses impasses já assinalam certa nostalgia quando o que está em questão é o niilismo como pano de fundo de sua especulação, como presente no artigo “Transcendência: experiência histórica e interpretação filosófico-teológica”.1

O artigo de Vaz propõe-se a apresentar “o problema da transcendência desde o ponto de vista de uma experiência histórica das mais profundas e decisivas entre as que orientaram o curso da civilização”. No entanto, essa apresentação levou em consideração o fato de que o problema da transcendência foi levantado e interpretado “filosoficamente e teologicamente no ciclo civilizatório helênico-cristão que, de alguma maneira, ainda é o nosso.” Ora, se a proposta fosse somente essa, então, a questão do niilismo nada teria a ver com Vaz, pois o texto se encerraria em um nível de pura apresentação histórica de uma temática clássica. Para além disso, o objetivo final do artigo é “dizer alguma palavra sobre o destino dessa experiência na perspectiva do milênio que se anuncia”; trata-se, portanto, de caracterizar a questão da transcendência com vistas ao século XXI. Isso porque em nosso tempo o problema da transcendência foi levado de roldão devido ao niilismo que lhe é congênito. Dessa abordagem surge a estratégia nostálgica de Vaz.

(…)

Utilizando como base argumentativa a obra Order and History, de Eric Voegelin, Vaz assegura que a experiência da transcendência relaciona-se com o que Voegelin chama de “história da ordem”, já que esta diz respeito às medidas transcendentes que ordenam e estruturam as diversas civilizações históricas. No que concerne às medidas transcendentes ordenadoras do Ocidente, Vaz privilegia as culturas grega e israelita. A primeira pensa a transcendência como Ideia, o que rompe de certo modo o ciclo imanente da natureza (physis). Já Israel pensa a transcendência como Palavra de Revelação, como a fala de Javé (ou Yahweh) para seu povo, fornecendo à sua história não um mero movimento sincrônico-horizontal, mas uma tradução ou repercussão de diversas irrupções de um Deus transcendente, ganhando assim caráter iminentemente diacrônico. Da presença dessas experiências de transcendência e de sua conjugação histórica surge o que Vaz chamou de “clímax histórico da ideia de transcendência”. Trata-se do mais alto grau de intensidade da experiência ocidental do absoluto. Se a experiência do absoluto engendra a possibilidade de ordenação histórica, então, na conjugação de Israel e Grécia, surge o grande poder de ordenação cultural do Ocidente. Uma vez que isto dissolve-se no mundo contemporâneo, o niilismo aparece como seu correlato histórico e o conhecimento relaciona-se somente com a imanência dos entes. Nas palavras de Vaz:

Não será, talvez, arbitrário, pensar que a perda da sua efetividade histórica (Vaz pensa aqui na transcendência), atestada nas diversas faces do niilismo contemporâneo, está na raiz da desordem espiritual do nosso tempo, abrindo o terreno ao avanço dominador dos mais variados tipos de gnoses da imanência.

Após eleger o amálgama Israel-Grécia como paradigma para a compreensão do princípio de ordenação do Ocidente, o que favorece a consequente idealização dos múltiplos matizes culturais em que este amálgama foi considerado seu princípio de determinação, Vaz conquista um critério histórico para acusar a negatividade do niilismo operacionalizada pelo “divino filosófico-teológico cristão”, que elevou as ideias de transcendência advindas dos gregos e dos israelitas aos estertores do poder de ordenação do Ocidente. Com o obscurecimento do acesso ao absoluto e de seu consequente poder de estruturação cultural, não se sabe bem como o homem ocidental irá determinar suas mais diversas experiências. Trata-se de um enigma que, pelo modo como se apresenta, já condiciona a forma de nos relacionarmos com ele. A resposta de Vaz a essa questão, que surge como uma pergunta no final do referido artigo, já mostra os contornos do impasse perante o niilismo, favorecendo a gênese de uma postura marcadamente nostálgica:

Se a experiência histórica da transcendência, com a postulação de um Absoluto transmundano e trans-histórico, seja na versão bíblica da Palavra Criadora, seja na versão grega da Ideia e, finalmente, na sua confluência no Logos cristão guiou, durante dois milênios, a rota do homem ocidental na descoberta de si mesmo e na sua autoafirmação como pessoa — inteligência e liberdade — que rumos esperam, no milênio que está por começar, esse homem que se reconheceu na abertura para a transcendência e que vê obscurecer-se sempre mais essa luz duas vezes milenar lançada desde a profundidade ou a altura dessa abertura propriamente insondável, sobre o enigma do seu próprio mistério?

Apesar de ser uma pergunta, sua entonação já apresenta o modo como a questão se encaminha para Vaz. Se antes dessa passagem Vaz elegera a filosofia especulativa de Hegel como último modo de legitimação do logos cristão no Ocidente, então, isso mostra que o ocaso da transcendência é um problema, à medida que um mundo contemporâneo não conseguiu salvaguardar o tipo de absoluto que emerge da síntese cristã do logos grego e israelita, pois somente aí o homem “se reconheceu na profundidade misteriosa do seu ser”. Com a perda do acesso ao absoluto, o homem não mais existe sob o reconhecimento do que há de mais profundo e digno em si mesmo. Se o problema em questão é pensado à luz do “reconhecimento” do que há de mais profundo no ser do homem, então, é porque seu suposto é o caráter hiportasiado do objeto para o qual se encaminha em relação intencional de transcendência do sujeito humano. Sendo uma hipóstase, o absoluto só pode ser conhecido se o conhecimento for considerado como a descoberta de propriedades previamente presentes nele. Ora, uma vez que a assunção do que há de mais radical no homem depende da apreensão do absoluto — consequentemente, do ato da transcendência —, então, a relação própria do homem com seu próprio ser acontece através de um reconhecimento. Isso porque o ser do homem também já está previamente dado, porém, necessita de uma medida absoluta para que o sujeito se aproprie perfeitamente de si. Tal autoconhecimento é um reconhecimento, pois o ser do sujeito já estava formado antes de ser por ele mesmo apropriado. Nesse sentido, o lógos cristão é o lugar de possibilitação do processo de auto-apropriação e autorreconhecimento do sujeito. Ora, se tanto o ser do homem quanto o ser do absoluto já estão previamente determinados, condicionando todo o conhecimento e reconhecimento por parte do sujeito, então, o obscurecimento do acesso ao absoluto, presente no mundo contemporâneo, é uma “involução” cultural e existencial. Assim, o que está em jogo na questão levantada por Vaz nada mais é que um certo tipo de saudosismo, pois sua argumentação posiciona um logos histórico específico — o cristão — como paradigmático e depara-se com sua impossibilidade de perpetuação nos domínios culturais da época atual. Consequentemente, o critério de avaliação do presente momento histórico emerge de uma medida histórica não mais presente, o que dificulta sua reatualização, porém, torna possível sua preservação enquanto ideal a ser desejado. Ainda que a estratégia nostálgica não transfigure o niilismo contemporâneo, ela gera a sensação de que se pode acessar um critério válido para condená-lo, o que alimenta o poder de “demonização” de muitos discursos da atualidade que se efetivam à luz da ideia de crise e de perda da ordem um dia vigente. E isso que caracteriza o que foi chamado de estratégia nostálgica frente ao problema do niilismo.

  1. Cf. VAZ, 1993, p. 49-80.[]