Kierkegaard (R:107-108) – enfio o dedo na existência — não cheira a nada

A minha vida atingiu um ponto extremo; a existência provoca-me náuseas, é insípida, sem sal nem significado. Mesmo que eu estivesse mais faminto do que Pierrot1, não gostaria contudo de engolir a explicação que as pessoas oferecem. Enfia-se um dedo no solo para cheirar o tipo de terra em que se está; eu enfio o dedo na existência — não cheira a nada. Onde estou? Que quer isto dizer: o mundo? Que significa esta palavra? Quem me enganou, metendo-me em tudo isto, e me deixa ficar aqui? Quem sou? Como entrei neste mundo; porque não me foi perguntado, porque não fui informado das regras e costumes, mas metido nas fileiras como se tivesse sido comprado por um vendedor de almas2? Como foi que me tomei parte interessada nesta grande empresa a que se chama realidade? Por que razão hei-de ser parte interessada? Não será isso matéria de livre decisão? E, no caso de me ser obrigatório sê-lo, onde está o gerente, já que tenho uma observação a fazer? Não há gerente? A quem devo dirigir-me para apresentar a minha queixa? Afinal a existência é um debate; poderei pedir que a minha observação seja posta à consideração? Se se há-de tomar a existência como ela é, não seria então melhor que nos fosse dado saber como ela é? Que quer isto dizer: um impostor? Não diz Cícero que se descobre o impostor perguntando: cui bonol3 Deixo que qualquer um pergunte e pergunto eu a qualquer um se tive algum ganho por me ter feito a mim mesmo e a uma rapariga infelizes. Culpa — que quer isto dizer? Será bruxaria? Não se saberá com rigor como acontece que uma pessoa se torne culpada? Ninguém quererá responder? Não será isto de extrema importância para todos os Senhores envolvidos?

(KIERKEGAARD, Søren Aabye. Repetição. Tr. José Miranda Justo. Lisboa: Relógio D’Água, 2009, p. 107-108)

  1. Figura cômica habitual na commedia dell’arte, também presente no Don Juan ou le Festin de Pierre de Molière (1665).[]
  2. A expressão «Seelenverkoper» (importada do alemão e do neerlandês) aplicava-se aos engajadores que, muitas vezes usando métodos ilícitos, procuravam marinheiros para os navios mercantes.[]
  3. Em latim no original: «bom para quem?» A expressão, que se tornou proverbial, ocorre no «Discurso em defesa de Milo (ou Milão)» de Cícero: M. Tullii Ciceronis opera omnia (Obras completas de Marco Túlio Cícero), 4 vols., oig. de Johannes Augustus Emesti, Halle, 1756-57, vol. II pág. 58.[]