(…) É, de fato, “impossível que aquilo que permanece sempre idêntico a si mesmo (a lei) se relacione de forma suportável com o que jamais permanece idêntico a si próprio (as relações humanas)” (Político, 294). O sentido dessa argumentação é a irracionalidade do objeto a ser regulado pela lei, isto é, por normas gerais: a matéria social, caracterizada como o “que jamais permanece idêntico a si próprio”, como “a inconstância permanente e sem exceção das coisas humanas”. Ela não pode ser abarcada normativamente de uma maneira abstrata e universalmente válida. Uma ordem justa das relações humanas não pode resultar de um princípio universalmente válido. Se a questão sobre a essência da justiça é a questão em torno de tal princípio universal – ou seja, de uma norma geral -, a resposta é que não existe uma justiça nesse sentido. A definição da essência da justiça por meio de um princípio universalmente válido, de uma norma geral, é a tentativa de uma definição racional dessa essência. É da essência da razão humana expressar-se através de princípios universalmente válidos.1 A decisão ou disposição correta no caso particular – ou seja, a norma individual – não pode, se perfeita, ser predeterminada por uma decisão ou disposição de caráter geral e, portanto, nem tampouco ser fundada nela ou por ela justificada. Ao mesmo tempo, isso significa, porém, que os atos do governante tampouco podem ser determinados pela via racional, pois a matéria à qual se referem não é racionalizável. Uma legislação de caráter geral é, na verdade, nada mais do que uma tentativa de racionalizar a dominação política. Na norma geral, a norma individual encontra sua ratio, assim como a sentença concreta do juiz e o ato de governo a encontram na lei. Embora Platão reiteradamente apresente a questão da justiça como um problema da razão, e embora assegure que a resposta para ela possa ser encontrada nessa mesma razão – pois a justiça consistiria no governo dessa razão -, ele declara no Político ser impossível a racionalização da dominação política (isto é, a racionalização da justiça), em virtude da irracionalidade do objeto que lhe cabe regular. Resulta daí, entretanto, que a arte de governar, caracterizada por Platão como um saber ou uma ciência -visto que ele declara ser a razão o seu fundamento -, na verdade não é saber ou ciência alguma, nem tem coisa alguma a ver com a razão, em seu sentido racional. Isso significa que a justiça é um ideal irracional.
[Excerto de KELSEN, Hans. A Ilusão da Justiça. Tr. Sérgio Tellaroli. São Paulo: Martins Fontes, 1995, p. 499-500]- Heráclito, frag. 114 (Diels): “Quem fala com o intelecto tem de apoiar-se no que é comum a tudo, da mesma forma como o Estado apoia-se na lei, e com ainda maior vigor”.[↩]