Kant (CRP:A448-A450) – espontaneidade da ação

A ideia transcendental da liberdade está, na verdade, longe de formar todo o conteúdo do conceito psicológico deste nome, conceito que é, em grande parte, empírico; apenas constitui o conceito da absoluta espontaneidade da ação, como fundamento autêntico da imputabilidade dessa ação. É, no entanto, verdadeira pedra de escândalo para a filosofia, que encontra insuperáveis dificuldades para aceitar tal espécie de causalidade incondicionada. Aquilo que na questão acerca da liberdade da vontade desde sempre causou um tão grande embaraço à razão especulativa é, na verdade, propriamente transcendental e consiste simplesmente no problema de admitir uma faculdade que, por si mesma, inicie uma série de coisas ou estados sucessivos. Também não é necessário encontrar resposta para a interrogação acerca do modo como será isto possível, visto que, na causalidade por leis naturais, também somos obrigados a contentar-nos com reconhecer a priori que uma causalidade desse gênero tem que ser pressuposta, embora não possamos de modo algum conceber como seja possível que, mediante determinada existência, se ponha a existência doutra coisa, pelo que temos de ater-nos simplesmente à experiência. Ora, em verdade, provamos esta necessidade de um primeiro começo de uma série de fenômenos pela liberdade, propriamente, só na medida em que era indispensável para a compreensão de uma origem do mundo, enquanto todos os estados se podem considerar uma sucessão de acordo com simples leis a naturais. Ficando assim provada, embora não compreendida em si mesma, a faculdade de começar espontaneamente uma série no tempo, é-nos lícito também no curso do mundo fazer começar, espontaneamente, séries diversas quanto à causalidade e conferir às substâncias dessas séries uma faculdade de agir pela liberdade. Mas, com isto, não nos deixemos deter por um mal-entendido, que seria o da impossibilidade de um começo absoluto das séries no curso do mundo pelo fato de uma série sucessiva só poder ter no mundo um começo relativamente primeiro, visto ser sempre precedida de um estado de coisas anterior. Não se trata aqui de um começo absolutamente primeiro quanto ao tempo, mas sim quanto à causalidade. Quando agora (por exemplo) me levanto da cadeira, completamente livre e sem a influência necessariamente determinante de causas naturais, nesta ocorrência, com todas as suas consequências naturais, até ao infinito, inicia-se absolutamente uma nova série, embora quanto ao tempo seja apenas a continuação de uma série precedente. Com efeito, esta resolução e este ato não são a consequência de simples ações naturais, nem a mera continuação delas, porque ‘as causas naturais determinantes cessam por completo com respeito a este acontecimento antes dessas ações; o acontecimento sucede certamente a essas ações naturais, mas não deriva delas e deverá portanto considerar-se, em relação à causalidade, que não ao tempo, o começo absolutamente primeiro de uma série de fenômenos.

O que confirma, com brilho, a necessidade da razão fazer apelo, na série das causas naturais, a um primeiro começo, resultante da liberdade, é o fato de todos os filósofos da Antiguidade (excluindo a escola epicurista) se terem visto obrigados, para explicar os movimentos do mundo, a admitir um primeiro motor, isto é, uma causa livremente atuante, que primeiro e por si mesma iniciou esta série de estados. Na realidade não tiveram a audácia de tomar concebível um primeiro começo a partir da simples natureza.

(KANT, Immanuel. Crítica da Razão Pura. Tr. Manuela Pinto dos Santos e Alexandre Fradique Morujão. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2001, p. 408, 410)