Costumamos definir o intelecto como uma das faculdades do homem, ao lado da vontade e do sentimento. Essa definição vem de um modelo da explicação do homem denominada subs-tancialista-ocorrencial, que concebe o homem como uma “coisa”-núcleo, ocorrente ali, em si, ao redor da qual estão diferentes propriedades, algumas acidentais e outras essenciais. As faculdades intelecto, vontade e sentimento seriam propriedades essenciais do homem, faculdades que ele então põe em acionamento. Esse modelo, no entanto, não ajuda muito para mostrar a própria experiência concreta do que seja o intelecto, a vontade e o sentimento, como fenômeno da existência humana. Talvez seja muito mais adequado e próximo à própria experiência dizer que intelecto, vontade e sentimento não são faculdades que o homem tem; são o modo de ser da própria existência humana, que deve ser cada vez assumido com a responsabilidade de ter que ser.
Como é o modo de ser da existência humana chamado intelecto?
Talvez a própria palavra intelecto possa nos ajudar a compreender melhor esse modo de ser, o qual queremos formar na formação intelectual franciscana.
Intelecto (intellectus, em latim) vem do verbo latino intel-lego (-ligo), -exi, -ectum, -ere, que significa usualmente compreender, perceber, ter evidência, “inteligir”. Inteligente é o que tem evidência, compreensão, o entendido numa coisa. A palavra intelligo é composta de inter e lego e literalmente significaria escolho entre. A ação de escolher, entre duas ou mais possibilidades, uma que seja a verdadeira se chama julgar, o juízo. Para julgar, temos um quadro de referência que serve de medida, conforme o qual julgamos. Se assim o entendo, então o escolher entre, inter-legere, é um saber de antemão conforme um quadro de referência “certo e errado”, i.é, um saber do tipo poder, acima mencionado.
Mas, talvez, possamos entender o inter-legere de modo um pouco diferente. Legere, que significa escolher, significa também ler (lesen, em alemão) e insinua uma significação de colher (auslesen, a colheita escolhida), ajuntar, implícita na palavra grega légein, da qual deriva legere. O ajuntar, pois, de uma colheita não é bem o escolher entre as possibilidades, distinguindo o certo e o errado, o bem e o mal, embora se possa realizar a colheita como um julgamento. E que o melhor de uma colheita é o dom, a graça do empenho da lavoura. O céu e a terra, e no meio, entre eles, o homem, se debruçando no desempenho diligente de uma acolhida, cuida, espera o dom do nascer, crescer, florir e sazonar da vida de uma semente, que se oferece como o melhor de todos esses empenhos do céu e da terra e do homem no meio, entre o céu e a terra. Aqui, ninguém é dono, proprietário, o julgador, o superior; todos e tudo são a acolhida atenta, empenhada, dando o melhor de si mesmos, mas na gratuidade, na ausculta e grata recepção de um mistério anterior e maior do que todos os nossos empenhos.
Essa disponibilidade receptiva (não passiva!), que é um esforço ativo, diligente e total para manter-se na limpidez e afinação da grata espera do inesperado da vida do mistério, é o legere, o légein: o colher. Esse modo de ser de modo algum é “passivo”, no sentido de indiferença vazia. Ele é antes a plenitude da disponibilidade de receber, acolher, obedecer ao que nos vem ao encontro no inesperado. No inesperado do que ultrapassa todas as nossas possibilidades. Essa espera acolhedora da impossibilidade, que coloca todas as nossas possibilidades na disponibilidade dessa espera, é o modo de ser que podemos experimentar, talvez de um modo bastante apagado, mas autenticamente, quando temos que ler entre as linhas dos acontecimentos.
Entre, inter aqui não significa “entre” isto ou aquilo. Entre, aqui, é o permeio, o medium. Nas vicissitudes da nossa vida, em nos empenhando nisso ou naquilo, em projetando os nossos programas, a partir do que podemos, sabemos e queremos, vamos constituindo, como todo, um mundo de valores, significações, volições, compreensões, ideais e possibilidades. Essa nossa atividade de nos firmar, nos projetar, nos fazer, no entanto, está continuamente convocada a ler uma orientação entre as linhas desses afazeres.
Essa orientação não se dirige à constituição desse nosso mundo, mas nos faz auscultar e observar atentamente, no permeio dessas coisas já constituídas como nosso ser, uma doação, que nos vem ao encontro e nos afeta, como mistério de um dom inteiramente gratuito, que nos possibilita e sustenta todo o nosso empenho. Quem inclina todo o empenho do seu ser a essa orientação se toma um inter-leto, um modo de ser feito todo ouvido de acolhida e obediência ao toque da graça, que lhe vem ao encontro, vitalizando-o a partir de uma realidade anterior, maior, mais radical do que todo o seu ser. Essa “passividade ativa de ausculta receptiva” é expressa no verbo alemão vernehmen, donde vem a palavra Vernunft, que se traduz usualmente por razão! [Harada]