Husserl (IFP1:60-63) – O empirismo assenta num preconceito

O naturalismo empirista surge, como temos de reconhecer, de motivos altamente dignos de apreço. Ele é um radicalismo cognitivo-prático, que (61) pretende fazer valer, contra todos os “ídolos”, todos os poderes da tradição e superstição, toda espécie grosseira ou refinada de preconceito, o direito da razão autônoma, como única autoridade em questões de verdade. Formular racional ou cientificamente juízos sobre coisas significa, porém, orientar-se pelas coisas mesmas, isto é, voltar dos discursos e opiniões às coisas mesmas, interrogá-las na doação originária de si e pôr de lado todos os preconceitos estranhos a elas. Seria apenas uma outra maneira de exprimir o mesmo — assim opina o empirista — dizer que toda ciência tem de partir da experiência, que seu conhecimento mediato tem de se fundar na experiência imediata. Ciência autêntica e ciência empírica são, pois, a mesma coisa para o empirista. Que mais seriam as “ideias”, as “essências” em oposição aos fatos — senão entidades escolásticas, fantasmas metafísicos? O maior mérito da moderna ciência da natureza foi justamente ter libertado a humanidade de tais assombrações filosóficas. Toda ciência tem de lidar apenas com o que é efetivamente real, passível de experimentação. O que não é efetividade, é imaginação, e uma ciência de imaginações é justamente ciência imaginária. Imaginações poderão naturalmente ser admitidas como fatos psíquicos, elas fazem parte da psicologia. Mas que de imaginações — como se tentou mostrar no capítulo anterior — mediante uma assim chamada visão de essência nelas fundada devam resultar dados novos, “eidéticos”, objetos que são irreais, isso — assim concluirá o empirista — não passa de “empolgação ideológica”, de “recaída na escolástica” ou naquela espécie de “construções especulativas a priori” com que o idealismo da primeira metade do século XIX, alheio à ciência natural, tanto obstruiu a ciência autêntica.

Tudo, porém, que o empirista diz aí repousa sobre mal-entendidos e preconceitos — não obstante o motivo que originalmente o guia ser bom e de boa intenção. O erro de princípio da argumentação empirista reside em que a exigência fundamental de retorno às coisas mesmas é identificada ou confundida com a exigência de fundação de todo conhecimento pela experiência. Com a compreensível restrição naturalista do âmbito das “coisas” cog-noscíveis, é ponto pacífico para ele que a experiência é o único ato que dá as próprias coisas. Não é, entretanto, ponto pacífico que coisas sejam coisas naturais., que, no sentido habitual, efetividade seja efetividade em geral, e que aquele ato doador originário que chamamos experiência se refira somente à efetividade natural. Efetuar identificações e tratá-las como se supostamente fossem óbvias significa, aqui, colocar inconsideradamente de lado diferenças dadas na mais clara evidência. A pergunta é, pois, de que lado estão os preconceitos? A autêntica ausência de preconceitos não exige simplesmente recusa dé “juízos estranhos à experiência”, mas somente quando o sentido próprio (62) dos juízos exija fundação na experiência. Afirmar incontinente que todos os juízos admitem, e mesmo exigem, fundação na experiência, sem ter antes submetido a estudo a essência dos juízos em todas as suas variedades fundamentalmente diferentes e sem ter antes ponderado se essa afirmação não é, afinal, um contra-senso: eis uma “construção especulativa a priori”, que não se tornará melhor porque desta vez provém do lado empirista. Ciência autêntica e autêntica ausência de preconceitos, que lhe é própria, exigem, como alicerce de todas as suas provas, juízos imediatamente válidos como tais, os quais tiram sua validez diretamente de intuições originariamente doadoras. Estas, porém, são tais quais as prescreve o sentido desses juízos, ou melhor, a essência própria dos objetos e do estado-de-coisas submetido ao juízo. As regiões fundamentais de objetos e, correlativamente, os tipos regionais de intuições doadoras, os tipos correspondentes de juízos e, finalmente, as normas noéticas, que exigem, para a fundação de juízos desses tipos, exatamente esta e nenhuma outra espécie de intuição — tudo isso não pode ser postulado ou decretado de cima para baixo, mas apenas constatado com evidência, o que significa mais uma vez: mostrar em intuição doadora originária e fixar por juízos que se ajustam fielmente àquilo que nela é dado. Quer-nos parecer que é assim, e não de outro modo, que se apresenta o procedimento verdadeiramente livre de preconceitos e puramente isento.

O “ver” imediato, não meramente o ver sensível, empírico, mas o ver em geral, como consciência doadora originária, não importa qual seja a sua espécie, é a fonte última de legitimidade de todas as afirmações racionais. Ela só tem função legitimadora, porque é e enquanto é doadora originária. Se vemos um objeto em plena clareza, se efetuamos a explicação e a apreensão conceituai fundados puramente na visão e no âmbito do que se apreende vendo efetivamente, então vemos (numa nova maneira de “ver”) como é a índole do objeto, e o enunciado que o exprime fielmente ganha sua legitimidade. Ao perguntar pelo porquê desta, seria contra-senso não conferir valor algum ao “eu o vejo” — como mais uma vez vemos com clareza. Acrescente-se aqui, para evitar possíveis mal-entendidos, que isso de resto não exclui que, sob certas circunstâncias, uma visão possa conflitar com outra e, igualmente, uma afirmação legítima com outra. Pois não está implícito aí que a visão não seja fundamento de legitimidade, da mesma maneira que o sobrepujamento de uma força por outra não quer dizer que aquela não seja uma força. Mas o que se diz é que talvez numa certa categoria de intuições (e isso diz respeito justamente às intuições da experiência sensível) a visão é, por sua essência, “imperfeita”, que ela pode, por princípio, ser confirmada ou infirmada, e que, assim, uma afirmação que tenha seu fundamento de (63) legitimidade imediato e, por isso, autêntico na experiência, terá no entanto de ser abandonada no curso da experiência, em virtude de uma legitimação contrária que a supere e suprima.