Husserl (IFP:117-118) – A redução e o resíduo fenomenológico

Voltemos agora nossos pensamentos novamente ao primeiro capítulo, a nossas considerações sobre a redução fenomenológica. Está claro agora que de fato, em contraposição à orientação teórica natural, cujo correlato é o mundo, uma nova orientação tem de ser possível, a qual, a despeito de colocar fora de circuito o todo da natureza psicofísica, conserva ainda algo — o campo inteiro da consciência absoluta. Em vez, portanto, de viver ingenuamente na experiência e de investigar teoricamente aquilo que se experimenta, a natureza transcendente, efetuamos a “redução fenomenológica”. Noutras palavras: em vez de efetuar de modo ingênuo os atos de competência da consciência constituinte da natureza, com suas teses transcendentes, e de nos deixar determinar a sempre novas teses transcendentes pelas motivações neles contidas —, nós colocamos todas essas teses “fora de ação”, não compartilhamos delas; dirigimos nosso olhar que apreende e investiga teoricamente para a consciência pura em seu ser próprio absoluto. Isso, portanto, é o que resta como o resíduo fenomenológica que se buscava, e resta, embora tenhamos “posto” o mundo inteiro, com todas as coisas, os seres viventes, os homens, inclusive nós mesmos, “fora de circuito”. Não perdemos propriamente nada, mas ganhamos todo o ser absoluto, o qual, corretamente entendido, abriga todas as transcendências mundanas, as “constitui” em si.

Esclareçamos isso em pormenor. Na orientação natural efetuamos pura e simplesmente todos os atos por meio dos quais o mundo está para nós aí. Vivemos ingenuamente na percepção e na experiência, nesses atos em que nos aparecem unidades de coisas, e não apenas aparecem, mas são dadas com o caráter do “disponível”, do “efetivo”. No exercício da ciência natural, efetuamos atos ordenados de pensamento lógico-experimental, nos quais aquelas efetividades, acolhidas tais como se dão, são determinadas em conformidade com o pensamento, e nos quais também, fundados naquelas transcendências experimentadas e determinadas de modo direto, fazemos inferência sobre novas transcendências. Na orientação fenomenológica, nós impedimos, em generalidade de princípio, a efetuação de todas essas teses cogitativas, isto (118) é, nós “colocamos entre parênteses” as teses efetuadas, e “não compartilhamos dessas teses” para fazer novas investigações; em vez de nelas viver, de as efetuar, efetuamos atos de reflexão a elas direcionados, e as apreendemos como o ser absoluto que elas são. Vivemos agora inteiramente nesses atos de segundo nível, cujo dado é o campo infinito do conhecimento absoluto — o campo fundamental da fenomenologia.