As reflexões precedentes sobre a Filosofia do Espírito fornecem-nos a atitude correta para captar e tratar o nosso tema da Europa espiritual como um problema puro das Ciências do Espírito, desde logo, por conseguinte, histórico-espiritualmente. Tal como foi dito desde logo nas palavras introdutórias, por este caminho deve tornar-se visível uma assinalável teleologia, inata, por assim dizer, apenas à nossa Europa, e certamente como intimamente conectada com a erupção ou irrupção da Filosofia e suas ramificações – ou seja, as ciências – no espírito dos Gregos antigos. Pressentimos já que se tratará, com isso, de uma clarificação das razões mais fundas da origem do funesto naturalismo, ou também, coisa que se mostrará como equivalente, do dualismo na interpretação do mundo que é característico da Modernidade. Finalmente, deverá, por esse meio, vir à luz do dia o sentido autêntico da crise da humanidade europeia.
Levantamos a questão: como se caracteriza a forma espiritual da Europa? Por conseguinte, não a Europa compreendida geográfica ou cartograficamente, como se, com isso, fosse delimitado, enquanto humanidade europeia, o círculo dos homens que aqui vivem territorialmente em conjunto. No sentido espiritual, é manifesto que os domínios ingleses, os Estados Unidos etc. pertencem à Europa, não, porém, os esquimós ou os indianos das exposições nas feiras anuais, <319> ou ainda os ciganos, que perpetuamente circunvagueiam pela Europa. Sob o título de Europa, trata-se aqui, manifestamente, da unidade de uma vida, de um agir, de um criar espirituais: com todas as finalidades, interesses, cuidados e esforços, com as formações finalisticamente produzidas, as instituições, as organizações. Aí agem os homens individuais em múltiplas sociedades de diversos níveis, em famílias, tribos, nações, todas íntima e espiritualmente ligadas e, como disse, na unidade de uma forma espiritual. Às pessoas, às associações de (252) pessoas e a todas as suas realizações culturais deve ser outorgado, com isso, um caráter que universalmente as vincula.
“A forma espiritual da Europa” – que é isso? É mostrar a ideia filosófica imanente à história da Europa (da Europa espiritual) ou, o que é o mesmo, a sua teleologia imanente, que se dá a conhecer, do ponto de vista da humanidade universal enquanto tal, como rompimento e começo do desenvolvimento de uma nova idade do homem, a época da humanidade que doravante não mais pode e não mais quer viver a não ser na livre formação da sua existência, da sua vida histórica, a partir de ideias da razão, a partir de tarefas infinitas.
Cada forma espiritual está, por essência, num espaço histórico universal ou numa unidade particular de tempo histórico segundo a coexistência e a sucessão – ela tem a sua história. Por conseguinte, se seguirmos as conexões históricas e, como é necessário, partirmos de nós próprios e da nossa nação, então a continuidade histórica conduz-nos sempre mais além, da nossa nação até nações vizinhas e, assim, de nações a nações, de um tempo a outro tempo ainda. Por fim, na Antiguidade, somos conduzidos dos Romanos aos Gregos, aos Egípcios, aos Persas, e assim sucessivamente; não há, aqui, manifestamente, qualquer termo final. Vamos dar aos tempos primitivos, e não podemos evitar considerar a obra, significativa e rica em ideias, de Menghin sobre a História Universal da Idade da Pedra.1 Com este procedimento, a humanidade aparece como uma única vida de homens e povos, ligada apenas por relações espirituais, com uma profusão de tipos de humanidade e de cultura que, porém, correm fluentemente uns para os outros. É como um mar, no qual os homens e os povos são como ondas que fugazmente se formam, se alteram e de novo desaparecem, umas encrespando-se mais rica e complexamente, outras, de maneira mais primitiva.
<320> No entanto, por uma consideração mais consequente e voltada para o interior, notamos traços de união e diferenças novas e peculiares. Por mais que as nações europeias possam estar inimizadas, elas têm, porém, um especial parentesco interno, no plano do espírito, que a todas atravessa e que sobreleva as diferenças nacionais. É qualquer coisa como uma irmandade, que nos dá, nestes círculos, a consciência de um solo pátrio. Isto prontamente sobressai assim que queiramos compreender, por exemplo, a historicidade indiana, com os seus múltiplos povos e formações culturais. Neste círculo, há de novo unidade de um parentesco familiar, mas que é estranho para nós. Por outro lado, os indianos vivem-nos como estranhos, e só entre si vivem como confrades. No entanto, esta diferença de essência entre ser compatriota e estrangeiro, uma categoria fundamental de toda a historicidade, relativizando-se em múltiplos níveis, não pode bastar. A humanidade histórica não se articula de um modo sempre igual de acordo com esta categoria. Sentimos isso precisamente na nossa Europa. Há (253) nela qualquer coisa singular, que todos os outros grupos humanos sentem também em nós como algo que, abstraindo de todas as considerações de utilidade, se torna para eles um motivo para sempre se europeizarem, apesar da vontade inquebrável de autopreservação espiritual, enquanto nós, se bem nos compreendermos a nós próprios, jamais nos quereremos, por exemplo, indianizar. Quero com isto dizer que sentimos (e, apesar de toda a falta de clareza, este sentimento tem plenamente a sua razão de ser) que, na nossa humanidade europeia, está inata uma enteléquia que rege, de uma ponta a outra, a deveniência das formas europeias e lhes confere o sentido de um desenvolvimento para uma forma de vida e de ser ideais, como para um polo eterno. Não como se se tratasse, aqui, de um dos bem conhecidos esforços em direção a fins, que dão o seu caráter ao domínio físico dos seres orgânicos; por conseguinte, de qualquer coisa como o desenvolvimento biológico, em graus sucessivos, de uma forma embrionária até a maturidade, com o sequente envelhecimento e morte. Por razões essenciais, não há nenhuma zoologia dos povos. Eles são unidades espirituais; não têm, e particularmente não o tem a supranacionalidade Europa, nenhuma forma madura, já alcançada ou a alcançar, enquanto forma para uma repetição regular. O telos espiritual da humanidade europeia, no <321> qual estão encerrados os telé particulares das nações isoladas e dos homens individuais, reside no infinito, é uma ideia infinita, para a qual, por assim dizer, tende, de modo oculto, o inteiro devir espiritual. Assim que, no curso do desenvolvimento, ele se torna consciente enquanto telos; torna-se, também, de modo necessário, algo prático, enquanto fim para a vontade, e com isso se introduz um novo e mais elevado nível de desenvolvimento, que está sob a direção de normas, de ideias normativas.
Tudo isto, porém, não pretende ser uma interpretação especulativa da nossa historicidade, mas antes a expressão de um pressentimento vivido, que se eleva na reflexão sem preconceitos. Este nos dá, contudo, uma guia intencional para discernir, na história da Europa, conexões altamente significativas, em cuja prossecução o pressentimento se torna para nós certeza comprovada. Pressentimento é, segundo o modo do sentimento, o indicador de caminhos em todas as descobertas.
Passemos ao desenvolvimento. A Europa espiritual tem um lugar de nascimento. Não quero dizer com isto um lugar de nascimento geográfico num território, se bem que também isso suceda, mas antes um lugar de nascimento espiritual numa nação, ou seja, nos homens individuais e grupos humanos dessa nação. Essa nação é a Grécia Antiga dos séculos VII e VI a.C. Nela surge uma atitude de tipo novo dos indivíduos para com o mundo circundante. Como sua consequência, verifica-se a irrupção de um tipo de formações espirituais completamente novas, crescendo rapidamente para uma forma cultural sistematicamente fechada sobre si; os Gregos denominaram-na Filosofia. Corretamente traduzida, no sentido originário, esta palavra não quer dizer outra coisa senão (254) Ciência Universal, ciência do todo mundano, da unidade total de tudo aquilo que é. Bem depressa começa o interesse pelo todo e, com isso, a pergunta pelo devir onienglobante, e, pelo ser no devir, começa a particularizar-se segundo as formas e regiões gerais do ser – assim se ramifica a Filosofia, a Ciência una, numa diversidade de ciências particulares.
Na irrupção da Filosofia neste sentido – na qual todas as ciências estão, por conseguinte, incluídas – vejo eu, por mais paradoxal que isso possa soar, o protofenômeno da Europa espiritual. Por meio de explanações mais detalhadas, por mais sucintas que tenham de ser, a aparência de paradoxo depressa será afastada.
- N.T.: Oswald Menghin. Weltgeschichte der Steinzeit. Wien: A. Schroll Co., 1931.[↩]