homem e ser

Se pensamos o comum-pertencer [NT: Através do deslocamento do acento principal de um para outro elemento da palavra composta, Heidegger procura destacar os dois sentidos que nela quer ler. Comum-pertencer (Zusammengehörigkeit) mostra possível sentido hegeliano da identidade entre ser e pensar, ser e homem: identidade, resultado de um processo, de uma mediação conduzindo a uma síntese. Comum-pertencer (Zusammengehörigkeit) aponta para um âmbito (o mesmo) do qual fazem parte homem e ser; é a identidade heideggeriana que resulta do passo de volta. A diversa leitura da palavra Zusammengehörigkeit procura mostrar os dois caminhos – ambos recusando a identidade como estático traço do ser; um em direção de um télos (fim), de uma síntese suprema (Hegel), outro em direção da arkhé (começo), do fundamento. Para Heidegger trata-se de um Rück-gang (re-gresso), para Hegel de um Fort-gang (pro-gresso). Ou compreende Hegel o pensamento como um movimento “ambidirecional” (gegenlläufige Bewegung) de progresso e regresso, como expressamente diz na lógica “que o pro-gresso na filosofia é um re-gresso”? (Ver a excelente obra de L. Bruno Puntel, Analogia und Geschichtlichkeit, I, ed. Herdar, Freiburg, 1969.)] como de costume, então, como já mostra a ênfase dada à primeira parte da expressão, o sentido do pertencer é determinado a partir da comunidade, quer dizer, a partir de sua unidade. Neste caso, “pertencer” significa: integrado, inserido na ordem de uma comunidade, instalado na unidade de algo múltiplo, reunido para a unidade do sistema, mediado pelo centro unificador de uma adequada síntese. A filosofia representa este comum-pertencer como nexus e connexio, como a necessária junção de um com o outro. MHeidegger: IDENTIDADE E DIFERENÇA

Se compreendermos o pensar como a característica do homem, então refletimos sobre um comum-pertencer que se refere a homem e ser. No mesmo instante nos surge a questão: que significa ser? Quem ou o que é o homem? Qualquer um vê facilmente que, sem a suficiente resposta a estas perguntas falta-nos o chão em que possamos decidir algo seguro sobre o comum-pertencer de homem e ser. Contudo, enquanto questionarmos desta maneira ficamos presos à tentativa de representar a comunidade de homem e ser como uma integração e de dispor esta ou a partir do homem ou a partir do ser e assim explicitá-la. Nisto os conceitos tradicionais de homem e ser formam os pontos de apoio para a integração de ambos. MHeidegger: IDENTIDADE E DIFERENÇA

E que seria se nós, em vez de continuamente representarmos uma coordenação de ambos, para refazer sua unidade, prestássemos uma vez atenção se e como nesta comunidade está, antes de tudo, em jogo um recíproco-pertencer? Existe até a possibilidade de entrever, ainda que a distância, o comum-pertencer de homem e ser já na determinação tradicional de sua essência. Até que ponto? MHeidegger: IDENTIDADE E DIFERENÇA

Homem e ser estão entregues reciprocamente um ao outro como propriedade. Pertencem um ao outro. Deste pertencer-se reciprocamente homem e ser receberam, antes de tudo, aquelas determinações de sua essência, nas quais foram compreendidas metafísicamente pela filosofia. MHeidegger: IDENTIDADE E DIFERENÇA

Este preponderante comum-pertencer de homem e ser é por nós teimosamente ignorado enquanto tudo representarmos em seqüências e mediações, seja com ou sem dialética. Então encontramos apenas encadeamentos que ou são urdidos por iniciativa do ser ou do homem e apresentam o comum-pertencer de homem e ser como entrelaçamento. MHeidegger: IDENTIDADE E DIFERENÇA

Assim, pois, torna-se necessário um salto para se experimentar o comum-pertencer de homem e ser, propriamente. Este salto é a subitamente da entrada não mediada naquele pertencer cuja missão é dispensar uma reciprocidade de homem e ser e instaurar a constelação de ambos. O salto é a súbita penetração no âmbito a partir do qual homem e ser desde sempre atingiram juntos a sua essência, porque ambos foram reciprocamente entregues como propriedade a partir de um gesto que dá. A penetração no âmbito desta entrega como propriedade dis-põe e harmoniza a experiência do pensar. Estranho salto, que provavelmente nos convencerá que ainda não nos demoramos bastante ali, onde propriamente já estamos. Onde estamos nós? Em que constelação de ser e homem? MHeidegger: IDENTIDADE E DIFERENÇA

Hoje, ao menos assim parece, não necessitamos mais, como ainda há alguns anos, de indicações detalhadas para descobrimos a constelação na qual homem e ser se interpelam mutuamente. Basta, assim se gostaria de crer, citar a palavra era atômica para fazer saber como o ser se presenta a nós hoje, no universo da técnica. Mas será permitido identificarmos, sem mais, o universo técnico com o ser? Manifestamente não, também não quando representamos este mundo como a totalidade em que se fundem energia atômica, planificação calculadora do homem e automatização. Por que uma referência desta natureza ao mundo técnico, por mais amplamente que o analise, não é absolutamente capaz de abrir os olhos para a constelação de ser e homem? Porque toda análise da situação não atinge 0 objetivo, na medida em que a mencionada totalidade do universo técnico é interpretada antecipadamente a partir do homem, como obra sua. O técnico, representado no sentido mais amplo e segundo suas múltiplas manifestações, é considerado como o plano que o homem projeta; este plano finalmente o força a decidir entre tornar-se escravo de seu plano ou permanecer senhor dele. MHeidegger: IDENTIDADE E DIFERENÇA

Aquilo, em que e de onde o homem e ser se defrontam reciprocamente no universo da técnica, interpela à maneira do arrazoamento. No recíproco confronto de homem e ser ouvimos a interpelação que determina a constelação de nossa época. O arrazoamento nos agride diretamente em toda parte. O arrazoamento é, caso ainda nos seja permitido falar assim, mais real(m)ente que todas as energias atômicas e toda a maquinaria, mais real(m)ente que a violência da organização, informação e automatização. Pelo fato de não encontrarmos mais no horizonte da representação, que nos permite pensar o ser do ente como presença, aquilo que se designa arrazoamento – o arrazoamento não mais nos aborda como algo presente -, é ele algo estranho. Antes de tudo, porém, o arrazoamento permanece estranho na medida em que não é algo último, mas em que ele mesmo algo nos comunica que perpasse propriamente a constelação de ser e homem. MHeidegger: IDENTIDADE E DIFERENÇA

O comum-pertencer de homem e ser ao modo da recíproca provocação nos faz ver, de uma proximidade desconcertante, o fato e a maneira como o homem está entregue como propriedade ao ser e como o ser é apropriado ao homem. Trata-se de simplesmente experimentar este ser próprio de, no qual homem e ser estão reciprocamente a-propriados, experimentar que quer dizer penetrar naquilo que digamos acontecimento-apropriação [NT: O filósofo procura delimitar aquele âmbito em que homem e ser acontecem e se apropriam reciprocamente (no caso da relação homem-técnica, chamado arrazoamento) pela palavra Ereignis. Traduzo-a por acontecimento-apropriação, como os franceses por eoénément-appropriation. Na palavra alemã se escondem ambos os pólos expressos pelo termo composto, usado pelas duas línguas românticas em questão. Em seu livro Unteruxgs zur Sprache Heidegger comenta seu uso da palavra Ereignis: “Hoje, quando aquilo que ainda quase não foi pensado ou pensado pela metade é logo entregue apressadamente a toda forma de publicidade, parecerá a muitos inacreditável o fato de o autor ter utilizado já, em seus manuscritos, há mais de vinte e cinco anos, a palavra acontecimento-apropriação para a coisa que aqui pensa. Esta coisa, ainda que simples em si mesma, permanece, em primeiro lugar, difícil de ser pensada porque o pensamento deve desacostumar-se a cair no engano de que aqui se pensa ‘o ser’ como acontecimento-apropriação. O acontecimento-apropriação é essencialmente outra coisa, porque muito mais rico que qualquer possível determinação metafísica do ser. Pelo contrário, o ser pode ser pensado, no que respeita a sua origem essencial, a partir do acontecimento-apropriação” (p. 260).] A palavra acontecimento-apropriação é tomada da linguagem natural. “Er-eignen” (acontecer) significa originariamente: “er-dugnen”, quer dizer, descobrir com o olhar, despertar com o olhar, apropriar. A palavra acontecimento-apropriação deve, agora, pensada a partir da coisa apontada, falar como palavra-guia a serviço do pensamento. Como palavra-guia assim pensada, ela se deixa traduzir tão pouco quanto a palavra-guia grega lógos ou a chinesa Tao. A palavra acontecimento-apropriação não significa mais aqui aquilo que em geral chamamos qualquer acontecimento, uma ocorrência. A palavra é empregada agora como singulare tantum. Aquilo que designa só se dá no singular, no número da unidade, ou nem mesmo num número, mas unicamente. O que no arrazoamento, como constelação de ser e homem, experimentamos através do moderno universo da técnica, é um prelúdio daquilo que se chama acontecimento-apropriação. Este, contudo, não permanece necessariamente em seu prelúdio. Pois no acontecimento-apropriação fala a possibilidade de ele poder superar e realizar em profundidade o simples imperar do arrazoamento num acontecer mais originário. Uma tal superação e aprofundamento do arrazoamento, partindo do acontecimento-apropriação e nele penetrando, traria a redenção historial – portanto, jamais unicamente factível pelo homem – do universo técnico, de sua ditadura, para pô-lo a serviço no âmbito através do qual o homem encontra mais.autenticamente o caminho para o acontecimento-apropriação. MHeidegger: IDENTIDADE E DIFERENÇA

Para onde conduziu o caminho? Para a entrada de nosso pensamento naquele elemento simples que designamos no rigoroso sentido verbal o acontecimento-apropriação. Parece que agora corremos o risco de orientarmos, com demasiada despreocupação, nosso pensamento para algum vago universal distante, enquanto com aquilo que quer designar a palavra acontecimento-apropriação somente dirige seu imediato apelo para nós o mais próximo daquele próximo em que já estamos repousando. Pois o que poderia ser mais próximo de nós que aquilo que nos aproxima daquilo a que pertencemos, aquilo em que somos dóceis participantes, o acontecimento-apropriação? O acontecimento-apropriação é o âmbito dinâmico em que homem e ser atingem unidos sua essência, conquistam seu caráter historial, enquanto perdem aquelas determinações que lhes emprestou a metafísica. MHeidegger: IDENTIDADE E DIFERENÇA

O acontecimento-apropriação apropria homem e ser em sua essencial comunidade. Um primeiro e embaraçoso clarão do acontecimento-apropriação descobrimos no arrazoamento. Este constitui a essência do universo moderno da técnica. No arrazoamento entrevemos um comum-pertencer de homem e ser, em que o deixar pertencer primeiramente determina a espécie de comunidade e sua unidade. Acompanhou-nos na questão pelo comum-pertencer, em que o pertencer tem prioridade sobre a comunidade, o dito de Parmênides: “Pois o mesmo é tanto pensar como ser”. A questão do sentido deste mesmo é a questão da essência da identidade. A doutrina da metafísica apresenta a identidade como um traço fundamental no ser. Mas agora se mostra: ser com o pensar faz parte de uma identidade, cuja essência brota daquele comum-pertencer que designamos acontecimento-apropriação. A essência da identidade é uma propriedade do acontecimento-apropriação. MHeidegger: IDENTIDADE E DIFERENÇA

Caso, em nosso ensaio de conduzir nosso pensamento ao lugar de origem da essência da identidade, algo tiver consistência, que terá acontecido com o título da conferência? O sentido do título “O princípio da Identidade” se teria transformado. O princípio se apresenta primeiro na forma de um primeiro princípio que pressupõe a identidade como um traço no ser, quer dizer, no fundamento do ente. Este princípio no sentido de um enunciado transformou-se a caminho num princípio que é uma espécie de salto que, distanciando-se do ser como fundamento do ente, salta no abismo (sem-fundamento). Mas este abismo não é nem o nada vazio nem o negro caos, mas: o acontecimento-apropriação. No acontecimento-apropriação vibra a essência daquilo que a linguagem fala, a linguagem que certa vez designamos como a casa do ser. Princípio da identidade diz agora: um salto exigido pela essência da identidade porque dele necessita, se, entretanto, o comum-pertencer de homem e ser for destinado a alcançar a luz essencial do acontecimento-apropriação. MHeidegger: IDENTIDADE E DIFERENÇA

O pensamento se transformou a caminho desde o princípio como uma enunciação sobre a identidade para o princípio como salto para dentro da origem essencial da identidade. Por isso o pensamento descobre, encarando o presente, além da situação do homem, a constelação de ser e homem, a partir daquilo que a ambos apropria numa comunidade, a partir do acontecimento-apropriação. Supondo que nos aguarde a possibilidade de que o arrazoamento, recíproca provocação de homem e ser para o cálculo do que é calculável, nos convoque e se nos explicite como acontecimento-apropriação que desapropria homem e ser entregando-os àquilo que lhes é próprio, então estaria livre o caminho em que o homem experimenta de maneira mais originária o ente, a totalidade do moderno universo da técnica, da natureza e da história, e, antes de todos, o ser deles. MHeidegger: IDENTIDADE E DIFERENÇA

Mas ainda menos nos é permitido perseguir a ideia de que o universo da técnica é de tal espécie que impede absolutamente dele nos libertarmos. Esta opinião, possuída pelo que é atual, tem-no como o unicamente real. Esta convicção é, aliás, fantástica; mas, pelo contrário, não o é um pensamento precursor, que encara com esperança aquilo que vem em nosso encontro como o apelo da essência da identidade de homem e ser. MHeidegger: IDENTIDADE E DIFERENÇA