Rodrigo Vieira Marques
Quando, pois, o conceito de inconsciente apareceu no pensamento moderno? Ao mesmo tempo em que o de consciência e como sua exata consequência. Descartes foi o responsável por ter introduzido o conceito de consciência com o sentido que tem para nós – não mais o de consciência moral, o qual se referia ao modo de julgar do homem e à sua dignidade, ao modo de avaliar o seu lugar na escala dos seres e no cosmos. O homem era, então, apenas uma realidade da qual importava reconhecer os caracteres, notadamente os mais eminentes. Com Descartes, pelo contrário, o conceito de consciência recebe a significação ontológica radical conforme a qual designa o aparecer considerado por si mesmo, não qualquer coisa, mas o princípio de toda a coisa, a manifestação originária na qual tudo o que é suscetível de existir advém na (parviens dans) condição de fenômeno e, assim, de ser para nós.
Porém, Descartes introduziu o conceito de consciência com um tal grau de profundidade que o seu alcance primeiro não pôde ser preservado nem verdadeiramente apercebido, nem sequer no momento de sua retomada pela fenomenologia contemporânea que, no entanto, pretendia lhe dar o seu pleno desenvolvimento – nem sequer, digamos, pelo próprio Descartes. Será que se prestou suficiente atenção ao fato, incansavelmente repetido, de que o cogito se cumpre apenas com a epoché do mundo, com a retirada não só de tudo o que é, mas da fenomenalidade do mundo como tal, a saber, o Dimensional extático do qual o pensamento aufere a sua possibilidade e com o qual está de acordo desde a Grécia? O que Descartes buscou com tanta paixão, não se obtém, então, nem como a abertura de um Aberto outorgada por uma Natureza originária, nem sob a forma da ἰδέα de Platão, de sua percepção dita cartesiana ou da representação dos modernos – mas precisamente pela recusa deles e como o seu totalmente outro, o totalmente outro da ek-stasis*. Segundo Descartes, “eu penso” significa tudo, menos pensamento. “Eu penso” significa a vida, aquilo que o autor da Segunda Meditação denominava “alma”.
Infelizmente, as aspirações científicas de Descartes, ou melhor, sua pretensão filosófica, aliás, legítima em si, de fundar a própria ciência assegurando-se de suas condições e conferindo-lhe assim um alicerce “certo”, sobrepuseram-se ao projeto primitivo, desviando-o de suas metas verdadeiras e relegando-o finalmente ao esquecimento. Fracassou o esforço de uma fenomenologia radical capaz de discernir, no seio mesmo do puro Genealogia da psicanálise: o começo perdido (42) aparecer e sob a fenomenalidade do visível, uma dimensão mais profunda na qual a vida se alcança a si mesma antes do surgimento do mundo. Em vez de suscitar investigações decisivas, perdeu-se simplesmente nada menos do que aquilo que implicava o fato extraordinário de o conceito de consciência, ao fazer sua entrada na cena filosófica, desdobrar-se misteriosamente a ponto de designar, ao mesmo tempo, o visível e o invisível, essa revelação mais antiga à qual adveio (parviens dans) tão-somente na epoché do mundo. Assim, produziu-se o desvio historial pelo efeito do qual foi abandonada a via aberta em direção ao Começo, ao passo que a “filosofia da consciência” se engajava em uma direção oposta que conduzia ao mundo e ao seu saber, a uma teoria transcendental do conhecimento e da ciência, tornando possível, por sua vez, o domínio das coisas e o universo da técnica. Será por acaso que se encontra precisamente em Kant o âmbito no qual essa filosofia da consciência alcança o estatuto de uma teoria elaborada do universo objetivo, sob a forma de uma ontologia da representação – quer dizer, da experiência entendida como a relação de um sujeito com um objeto em geral? Será por acaso que a crítica da alma cartesiana se torna sistemática, vedando definitivamente ao homem de nosso tempo o acesso ao que constitui, de uma só vez, o seu ser mais interior e a essência originária do ser nele? (MHPsique)
Original
Quand donc le concept d’inconscient fît-il son apparition dans la pensée moderne ? En même temps que celui de conscience et comme son exacte conséquence. C’est Descartes qui a introduit le concept de conscience avec le sens qu’il a pour nous — non plus celui de conscience morale, lequel se rapportait à la façon de juger de l’homme et de sa dignité, d’évaluer sa place dans l’échelle des êtres et dans le cosmos. L’homme n’était alors qu’une réalité dont il importait de reconnaître les caractères, notamment les plus éminents. Avec Descartes au contraire le concept de conscience reçoit la signification ontologique radicale conformément à laquelle il désigne l’apparaître considéré pour lui-même, non pas quelque chose mais le principe de toute chose, la manifestation originelle en laquelle tout ce qui est susceptible d’exister parvient dans la condition de phénomène et ainsi d’être pour nous.
Seulement Descartes a introduit le concept de conscience à un degré de profondeur tel que sa portée première n’a pu être préservée ni véritablement aperçue, pas même lors de sa reprise par la phénoménologie contemporaine qui prétendait cependant lui donner son plein développement — pas même, ajouterons-nous, par Descartes lui-même. A-t-on prêté suffisamment attention au fait, inlassablement répété, que le cogito ne s’accomplit qu’avec l’épochè du monde, avec la mise hors jeu non seulement de tout ce qui est mais de la phénoménalité du monde comme tel, à savoir le Dimensional extatique auquel la pensée emprunte sa possibilité et s’accorde depuis la Grèce. Ce que Descartes a recherché passionnément ne s’obtient donc ni comme l’ouverture d’un Ouvert octroyée par une Nature originelle, ni sous la (7) forme de l’ἰδέα de Platon, de la perception soi-disant cartésienne ou de la représentation des modernes — mais précisément par leur rejet et comme le tout autre qu’elles, le tout autre de l’ek-stasis. Je pense chez Descartes veut tout dire sauf la pensée, je pense veut dire la vie, ce que l’auteur de la Seconde Méditation appelait l’« âme ».
Malheureusement les visées scientifiques de Descartes ou plutôt sa prétention philosophique, d’ailleurs légitime en soi, de fonder la science elle-même en s’assurant de ses conditions et en lui conférant ainsi une assise « certaine », se superposèrent au projet primitif, le détournant de ses buts véritables et le repoussant finalement dans l’oubli. L’effort d’une phénoménologie radicale capable de discerner, au sein même du pur apparaître et sous la phénoménalité du visible, une dimension plus profonde où la vie s’atteint elle-même avant le surgissement du monde, tourna court. Ce qu’impliquait ce fait extraordinaire que le concept de conscience, faisant son entrée sur la scène philosophique, se dédoublât mystérieusement au point de désigner à la fois le visible et l’invisible, cette révélation plus ancienne à laquelle on ne parvient que dans l’épochè du monde, au lieu de susciter des recherches décisives, fut tout simplement perdu. Ainsi s’est produite la déviance historiale par l’effet de laquelle la voie frayée vers le Commencement fut abandonnée tandis que la « philosophie de la conscience » s’engageait dans une direction opposée qui conduisait au monde et à son savoir, à une théorie transcendantale de la connaissance et de la science, rendant possible à leur tour la maîtrise des choses et l’univers de la technique. Est-ce par hasard si c’est précisément chez Kant où cette philosophie de la conscience s’élève, sous la forme d’une ontologie de la représentation c’est-à-dire de l’expérience entendue comme le rapport d’un sujet à un objet en général, à une théorie élaborée de l’univers objectif, que la critique de l’âme cartésienne se fait systématique, interdisant définitivement à l’homme de notre temps l’accès à ce qui constitue à la fois son être le plus intérieur et l’essence originelle de l’être en lui ? (MH1985)