Desde a Regra I encontramos estes termos associados a outros que lhe são equivalentes: intellectus, bona mens, naturale rationis lumen, humana Sapientia, universalis Sapientia, scientia, e, na Regra II, cognitio certa et evidens – e o seu conteúdo é claro: é a evidência, ou melhor, a sua condição, a luz natural, isto é, transcendental – a humana Sapientia é imediatamente dada como universalis Sapientia – que é visada. Essa luz é transcendental enquanto fundamento de todo conhecimento possível, de toda ciência, de sua evidência e de sua certeza, ela constitui identicamente, na efetividade de sua fenomenalidade própria, a essência da ratio e a do intellectus. O contexto da Segunda Meditação confirma essa interpretação. A elucidação do conceito de espírito – mens – faz com que este apareça como o poder fundamental de nosso conhecimento e tal poder é, efetivamente, um intellectus, uma inspectio do espírito – abstração feita de toda contribuição específica do sentido ou da imaginação – ou ainda, uma ratio, caso se entenda por ela a capacidade de o espírito aperceber as ideias que estão nele como ideias puras, quer se trate da ideia de extensão, quer se trate (73) da ideia de substância pensante, quer dizer, da ideia adequada de homem.
Mas tais considerações estão presentes apenas no fim da Meditação ou das Regras. A Primeira Meditação e o início da Segunda, todo o processo fenomenológico de elucidação que leva à posição do sum, ignora a definição de mens como intellectus, ou melhor, a rejeita desde o seu fundamento. Um tal processo, vale lembrar, é o da dúvida que anula o conjunto dos saberes antropológicos ou científicos tão-somente porque faz estremecer o seu fundamento comum, a saber, essa luz transcendental, essa Sapientia universalis da qual a Regra I dizia que “permanece sempre una e sempre a mesma, por mais diferentes que sejam os objetos aos quais ela se aplica, e que não recebe mais variação desses objetos, do que a luz do sol da variedade de coisas que ilumina”1. O que é atingido pela redução e posto por ela entre parênteses é, portanto, o horizonte ontológico reconhecido em sua heterogeneidade e em sua irredutibilidade ao ente ao mesmo tempo que sua condição de seu conhecimento, é a possibilidade última de entender e de compreender, de aperceber conteúdos ideais. Enquanto a dúvida natural se apoiava sobre razões, aqui é o conjunto delas que varre a dúvida metafísica e a ratio sofre, por sua vez, um estremecimento em seus alicerces. Se o pensamento deve constituir o fundamento estável e absoluto, tal como busca o cartesianismo do começo, então a sua definição como “animus, intelectus sive ratio” é decididamente impossível.
Do mesmo modo, uma tal definição é secretamente tributária de uma outra problemática que não a do cogito, problemática que reaparece no final da Segunda Meditação. A mens não é mais, então, examinada por Descartes em si mesma, na imediatidade de seu aparecer, mas como a condição do conhecimento do corpo, ou melhor, como a essência deste: “nós conhecemos o corpo tão-somente pela faculdade de entender (a solo intellectu) que se encontra em nós”2. É justamente o “conhecimento do corpo”, na medida em que encontra o seu fundamento na ek-stasis do ver e enquanto ver puro – “inspeção do espírito” –, é a essência do videre que está circunscrita, caracterizada, elucidada durante toda análise do pedaço de cera ou dos homens que passam na rua com seus chapéus: uma tal análise, sabe-se, não é justamente a do corpo, de um corpo qualquer, da extensão, mas, pelo contrário, a do conhecimento do corpo, isto é, mais precisamente, da análise do entendimento. Mas o “conhecimento do corpo” – que permanece, inclusive, problemático em si mesmo, não podendo como tal, constituir o começo –, remete necessária e (74) incansavelmente 3 ao “conhecimento da alma” da qual a essência mais originária exibe-se no cogito. O fato de que a mens cartesiana não seja redutível ao intueri do intelectus e da ratio, é o que atestam não somente as teses mais fundamentais de Descartes, mas ainda este texto: “não me compete duvidar de que o espírito (mens), assim que é infundido no corpo da criança, comece a pensar e que, desde esse instante, saiba que possa pensar (simulque sibi suæ cogitationis conscia sit)”4. A menos que suponhamos que o ser mais essencial do homem consiste na atividade matemática e que, desde o ventre de sua mãe, esteja ocupado em preparar o seu ingresso na escola Politécnica, é preciso realmente reconhecer que o pensamento, aqui em questão, não é um entendimento stricto sensu, mas a revelação sob sua forma mais originária, a imanência muda de seu primeiro ser a si na afetividade do puro sentir-se a si mesmo. [MHPsique:73-74]
- FA, I, p. 78; AT, X, p. 360.[↩]
- FA, II, p. 429 ; AT, IX, p. 26.[↩]
- Esta remissão não é somente constante no fim da Segunda Meditação, ela é reafirmado nas Repostas às Quintas Objeções: “De onde se vê claramente que não há coisa pela qual se conheça tanto atributos quanto nosso espírito, porque ainda que se conheça deles nas outras coisas, pode-se tanto contá-las no espírito daquele que os conhece; e portanto sua natureza é mais conhecida do que aquela de alguma outra coisa” (FA, II, p. 802; AT, VIII, p. 360). Cf. também Principes, II, p. II (FA, III, p. 97; AT, IX, II, p. 29).[↩]
- Réponses aux Quatrièmes Objections, FA, II, p. 691 ; AT, VIII, p. 246.[↩]