O que começa em um sentido radical? O ser, seguramente, se é verdade que nada seria se o ser já não tivesse desdobrado, de antemão, a sua própria essência, a fim de concentrar em si mesmo, em sua essência assim previamente desdobrada, tudo o que é. Em que reside mais precisamente a iniciação do começo radical? O que já está aí antes de toda coisa no justo momento em ela aparece a não ser o próprio aparecer enquanto tal? O aparecer, só ele, constitui a iniciação do começo, não enquanto forma o aparecer da coisa e a sua vinda começante ao ser: um tal começo ainda é tão-somente o começo do ente. Inicial, no sentido mais originário, o aparecer é inicial enquanto aparece a si mesmo e em si mesmo. Só nessa medida, o aparecer é idêntico ao ser e o funda, dado que se ilumina e se acende e que esse rasto luminoso, como iluminação não de outra coisa, mas de si mesmo, como aparecer do aparecer, expulsa o nada e toma o seu lugar. É a efetividade fenomenológica do aparecer em sua capacidade de constituir por si mesmo uma aparência, é essa pura aparência como tal que é o ser. Ela é o começo, não o primeiro dia, mas o absolutamente primeiro. O aparecer como tal, Descartes, em sua linguagem, denomina “pensamento”. Precisamente no momento em que Descartes foi capaz de considerar o pensamento em si mesmo, quer dizer, o aparecer para si mesmo, quando rejeitou todas as coisas para reter apenas o fato da aparência delas — sejamos mais precisos: no momento em que rejeitou as coisas e a aparência delas, com a qual elas estão sempre mais ou menos misturadas e confundidas na consciência ordinária, para não mais considerar senão essa aparência pura, abstração feita de tudo o que aparece nela, — foi então, com efeito, que acreditou poder encontrar o que buscava, o começo radical, o ser: eu penso, eu sou.
Cinco observações nos permitirão ir mais longe nessa difícil repetição 1 do cogito. A primeira é que ele escapa, em todo caso, à objeção feita por Heidegger em Ser e tempo2, a saber, que o começo cartesiano não é radical, pois supõe algo antes dele, isto é, uma pré-compreensão ontológica ao menos implícita, pois se eu não soubesse, ao menos confusamente, o que é o ser, como poderia alguma vez dizer “eu sou”? Mas Descartes não (53) diz “eu sou”, ele diz “logo eu sou”. Longe de surgir sem pressuposição, sua afirmação resulta da elaboração sistemática do prévio indispensável somente a partir do qual a pressuposição do ser é possível. Esse prévio é tão-somente o aparecer, o qual Descartes nomeia “pensamento”. A determinação desse prévio é o conteúdo mesmo do cogito. “Nós somos nisso mesmo que pensamos”3.
Um tema constante nas Meditações, assim como nas Respostas às objeções inconsistentes que lhe foram endereçadas, é que a posição do sum resulta da posição do pensamento. Por um lado, o aparecer abre o campo no qual chega à revelação de si, de tal maneira que esse campo é constituído por ele e por sua revelação. Por outro lado, o ser não é nada mais que aquilo que fulgura como a efetividade fenomenológica desse campo. Desse modo, em “eu penso, logo eu sou”, logo significa uma definição fenomenológica do ser pela efetividade dessa revelação do aparecer em si mesmo e como tal. Daí que Descartes apenas podia encolher os ombros diante das objeções dos que, tais como Gassendi, declaravam que também poderiam concluir a existência a partir de não importa qual de suas ações consideradas indiferentemente: Enganais-vos por completo porque, dentre estas ações, não há sequer alguma da qual eu esteja inteiramente certo, e aqui refiro-me a esta certeza metafísica da qual unicamente tratamos, exceto o pensamento. Por exemplo, esta consequência “eu passeio, logo eu sou”, só seria razoável quando o conhecimento interior que eu tenho dela fosse um pensamento do qual só esta conclusão estaria certa…4 Ir, como faz o cogito, do pensamento ao ser, não é simplesmente pressupô-lo ou deixar o seu conceito indeterminado, é indicar a direção de sua essência. Em Descartes enraíza-se, então, a ideia de algo como uma ontologia fenomenológica.
Ao ser, Descartes em sua linguagem, denomina substância, coisa. Aquilo que significa o substancialismo no cartesianismo do começo, não o das Regras, mas o da Segundo meditação, o que se iguala ao Começo e, nesse momento inaudito e único do pensamento ocidental, identifica-se (54) com o surgimento inaugural do aparecer, torna-se transparente. “Coisa”, na expressão “coisa que pensa”, não indica nada para além do aparecer na atualidade de sua efetuação, como se aparecer designasse uma simples aparência, um fenômeno – Shein, Ersheinung – deixando ainda atrás de si a realidade, revelando-a de modo mediato, quer dizer, ocultando-a, algo que, em seu mostrar-se, remete a alguma coisa de outro que, por sua vez, não se mostra, não se manifesta. “Coisa pensante” designa antes o que se mostra no mostrar-se, ao passo que o que se mostra não é alguma coisa, mas o próprio mostrar-se. A “alguma coisa da substância”, a “coisa”, é apenas a aparição do próprio aparecer e seu brilho.
Para saber o que é uma coisa, algo, o ser, Descartes não vê como necessária a consideração dos animais, das plantas, das ideias — dado que nada disso existe depois da dúvida. Para ele, é suficiente tomar nota da fulguração do aparecer e de sua Parusia 5. Uma “coisa que pensa” nada mais é do que o resplendor do clarão, a luz que se ilumina, a substancialidade desta coisa é a efetividade fenomenológica, a materialidade da fenomenalidade como tal. É ainda novamente contra Gassendi, talvez também contra toda asserção da consciência natural, que Descartes direciona a sua a ironia exasperada: Admira-me também que sustentais que possa não estar no espírito a ideia do que, em geral, nomeia-se coisa, e isso ‘caso não se encontrem juntas nele também as ideias de um animal, de uma planta, de uma pedra e de todos os universais’, como se, para conhecer que eu sou uma coisa que pensa, eu devesse conhecer os animais e as plantas, posto que eu devo conhecer o que se nomeia coisa ou, então, o que é, em geral, uma coisa 6. Ao referir subitamente a ideia de coisa à coisa que pensa e ao pretender fundá-la exclusivamente sobre essa última, Descartes não rejeita somente, de maneira explícita, toda interpretação do ser a partir do ente e como ser do ente. Ele faz com que sejam dados os primeiros passos de uma disciplina inteiramente nova, aquela que, depois dele, não seria quase nada desenvolvida, e à qual denominaremos doravante como fenomenologia material. Nessa fenomenologia, não é o fato de aparecer que é considerado, em relação ao que aparece, por si mesmo e em sua diferença radical, mas é seu conteúdo que é explicitamente e exclusivamente levado em conta, (55) todavia, enquanto conteúdo ontológico e puro conteúdo fenomenológico. Nesse ponto, encontra-se o que significa, inicialmente, a ideia de res cogitans, porquanto ela é uma coisa da qual toda essência é pensar, quer dizer, da qual a substancialidade e a materialidade são a substancialidade e a materialidade pura como tais, e nada mais.
Com efeito, não importa que, depois desse reconhecimento do Começo em sua inicialidade, uma queda fatal se produza no pensamento de Descartes, que o pensamento não seja mais que o atributo principal de uma substância que está além dele, que o conceito adequado de substância seja reservado a Deus, ao passo que o próprio pensamento seja tão-somente uma substância criada, do mesmo modo que o corpo e, assim, justaposta a ele, tal como se pode entender aqui, no interior de um edifício constituído com a ajuda de construções transcendentes. Do mesmo modo, também não importa a questão de saber se esse desvio das significações fenomenológicas originárias pertença ao pensamento próprio de Descartes ou se fora soterrado pelas concepções teológicas e escolásticas das quais, todavia, era dado por tarefa afastar 7. Contentemo-nos em observar que toda a separação introduzida no seio de nosso ser entre o seu mostrar-se e o que nele se furta, de modo principial, à fenomenalidade, não teria o seu advento somente no momento em que pela primeira vez, no alvorecer da filosofia moderna, a psique se encontrava eideticamente definida. Porquanto a desmoralização inextinguível da psique implicaria, em primeiro lugar, a ruína de toda essa problemática. Pois se o desdobramento da essência do ser em um reino efetivo não se confunde mais com a fulguração do aparecer nem com a matéria fenomenológica pura desta fulguração, de que modo produzir ainda o cogito e, do fato de que o aparecer se manifesta em mim, como formular, apesar disso, a proposição do ser no sum? E o que seria, enfim, esse ser heterogêneo ao aparecer, definido por essa heterogeneidade, a não ser semelhante a tudo o que se encontra em si, desse modo, separado da fenomenalidade — ao ente, ou seja, semelhante ao ente? De novo, o ser vai receber sua medida do que é: um animal, uma planta, uma ideia, um deus.
- No sentido heideggeriano de compreensão do termo latino repetere, como um voltar a procurar, como a retomada de uma busca na qual, ao contrário de ser simplesmente a legitimação do antigo, o novo pode também se manifestar (N. do T.).[↩]
- Niemeyer, Halle, 1941, p. 24.[↩]
- Principes, I, 8; FA, III, p. 95; AT, IX, II, p. 28; grifo nosso.[↩]
- Réponses aux Cinquièmes Objections, FA, II, p. 797 ; AT, VIII, p. 352.[↩]
- O termo Parusia (παροὐσία (parousia)) origina-se do grego, significando uma nova vinda ou visita. (N. do T.)[↩]
- FA, II, p. 805; AT, VII, p. 362.[↩]
- Sobre a persistência no cartesianismo de elementos colhidos da tradição e especialmente da escolástica, reportaremo-nos aos trabalhos de seus principais comentadores, Etienne Gilson, Jean Laporte, Henri Gouhier, Martial Guéroult, Ferdinand Alquié, assim como aos de Jean-Luc Marion (Sur l’ontologie grise de Descartes, Vrin, 1975; Sur la théologie blanche de Descartes, Paris, PUF, 1981).[↩]