Haar: o apelo da consciência

Alves

Heidegger parte da «voz da consciência» (Stimme des Gewissens) como de um dado de facto pertencente à «auto-interpretação quotidiana do Dasein». É necessário evitar estabelecer aqui uma equivalência rápida entre Gewissen e a consciência moral, como faz a «tradução» Vezin. Pois a Gewissen é precisamente posta em relação com o estar-em-dívida e é considerada como «condição de possibilidade existencial para o bem e o mal morais» (S.Z. p. 286) e, portanto, como pré-moral. O Dasein ouve uma voz ou um apelo (Ruf) que o leva a compreender «qualquer coisa» (etwas) (S.Z. p. 269) sobre o que ele próprio tem de ser (e não, estranhamente, tem de fazer!) na sua própria situação («o apelo não fornece um poder-ser ideal, universal, compreensível» (S.Z. p. 280)). A este apelo, estritamente singular portanto, encontra-se ligado um obscuro sentimento de falta ou dívida (a palavra Schuld tem dois sentidos). Este apelo é, além disso, estranho, inquietante. Esta estranheza está ligada em parte ao facto de ele ser silencioso. Ele não se exprime num discurso articulado. «A consciência apela apenas calando-se, quer dizer, vem do silêncio de inquietante-estranheza» (S.Z. p. 296). Enfim — este é o carácter mais desconcertante numa primeira abordagem do apelo — o apelo não vem expressamente de nós mesmos. «Isso» apela, contra a nossa espera, mesmo contra o nosso desejo (S.Z. p. 276). Assim a irrupção no Dasein desta «voz estranha» (fremde Stimme) (S.Z. p. 277) parece interromper, mesmo interditar, o movimento de auto-apropriação, de autopossibilitação que o ser-para-a-morte tinha de súbito levado ao seu auge: como poderá o Dasein ser mestre de si mesmo sé é habitado por uma voz estranha?

Ora a análise não deixa espaço para dúvidas sobre a natureza desta voz.No início do jogo, ela revela-lhe o sentido, um sentido desprovido de mistério e de qualquer efeito de desapossamento. Quem é com efeito chamado? O Dasein quotidiano, ainda disperso na Gente. A que se dirige a voz? «Ao Si mesmo» (Auf das eigene Selbst) (S.Z. p. 273). O mistério é apenas aparente. O chamamento só parece estranho porque é escutado a partir de uma situação banal, corrente, na qual o Dasein deixou de ser ele mesmo, porque é escutado por um Dasein que não é si-mesmo. O chamamento convoca, contudo, o Dasein a si mesmo de uma forma bem estranha: não diz nada! A voz da consciência não fala, não indica o que é necessário fazer em tal ou tal caso. Não enuncia nenhuma ordem, nenhuma máxima moral, nenhum imperativo categórico ou hipotético (trata-se aqui de uma evidência fenomenológica incontestável)? 1 A voz só pode ser silenciosa e indeterminada? Porquê? Será que a consciência «não se diz» sempre qualquer coisa? Quando eu me digo por exemplo: «Devia estar a trabalhar»; devo agradecer a fulano»; «devo fazer uma visita a um amigo»; «é necessário que mude de conduta (ou de roupa!)», não se tratará de apelos de consciência? — Embora assim seja, o apelo (48) não pode vir do próprio Dasein. «Na consciência, o Dasein chama-se a si mesmo» (S.Z. p. 276).

«O Dasein é simultaneamente apelante e apelado» (S.Z. p. 277). É ilusório interpretar a força apelante ou o apelante (Rufer) como «uma potência estranha que invadiría o Dasein» (S.Z. p. 275), como «um ente que não teria o cáracter do Dasein». «Atribui-se a esta potência um possuidor, a menos que não a tomemos como uma pessoa (Deus) que anuncia a sua presença» (Ibid.). Ora o Dasein está apenas perante a voz. Ninguém, nem Deus nem outro para além de si, se dirige a ele nele. Heidegger afirma a autonomia da voz ou, antes, a sua auto-afecção, a sua auto-logia. A consciência não é a «imortal e celeste voz» de Rousseau, nem a voz de Deus, nem a da natureza. Ela é apenas «apelo do Cuidado» que dispõe da totalidade do Dasein como ser-em-antecipação-de-si, já aí, já lançado. A dívida é voltada para uma anterioridade inalcançável do Dasein que este tem contudo de assumir. Pois se o apelo não fala, se a voz não diz nada, ela dá contudo qualquer coisa a compreender O que compreende o Dasein? Ele compreende primeiro que «deve» qualquer coisa, que está «em dívida», não por causa de tal ou tal situação, de tal ou tal acto, mas desde sempre. Ele compreende em seguida (e simultaneamente) que é necessário que retome e projecte, até ao seu mais longínquo futuro, esta dívida arqui-antiga e assim, ao não poder aboli-la, a transfigure. Da unidade do seu estar-em-dívida assumido e do projecto nascerá o ser-resoluto: «ao projectar-se taciturno, próximo da angústia, para o ser em dívida perante si mesmo, chamamos ser-resoluto» (Entschlossenheit) (S.Z. p. 297). (p. 47-49)

Original

Heidegger part de la «voix de la conscience» (Stimme des Gewissens) comme d’une donnée de fait appartenant à «l’auto-interprétation quotidienne du Dasein». Il faut se garder d’établir ici une équivalence rapide entre le Gewissen et la conscience morale, comme le fait la «traduction» Vezin. Car le Gewissen sera précisément mis en relation avec Vêtre-en-dette et considéré comme «condition de possibilité existentiale pour le bien et le mal “moraux”» (S. Z. p. 286) et donc comme pré-moral. Le Dasein entend une voix ou un appel (Ruf) qui lui fait comprendre «quelque chose» (etwas) (S. Z. p. 269) sur ce qu’il a à être lui-même (et non pas, étrangement, à faire !) dans sa propre situation («l’appel ne donne pas un pouvoir-être idéal, universel, à comprendre» (S. Z. p. 280)). A cet appel, strictement singulier donc, est lié un obscur sentiment de faute ou de dette (le mot Schuld a les deux sens). Cet appel est en outre étrange, inquiétant. Cette étrangeté est liée en partie au fait qu’il est silencieux. Il ne s’exprime pas dans un discours articulé. «La conscience appelle seulement en se taisant, c’est-à-dire vient du silence de l’inquiétante-étrangeté» (S. Z. p. 296). Enfin — c’est le caractère le plus déroutant au premier abord de l’appel — l’appel ne vient pas expressément (46) de nous-mêmes. «Cela» appelle, contre notre attente, voire contre notre gré (S. Z. p. 276). Ainsi l’irruption dans le Dasein de cette «voix étrangère» (fremde Stimme) (S. Z. p. 277) semble interrompre voire interdire, le mouvement d’auto-appropriation, d’auto-possibilisation, que l’être-pour-la-mort avait d’emblée poussé à son comble. Comment le Dasein pourrait-il être maître de lui-même s’il est habité par une voix étrangère ?

Or l’analyse ne laisse pas de doute sur la nature de cette voix. D’entrée de jeu, elle en révèle le sens, un sens dépourvu de mystère et de tout effet de dépossession. Qui en effet est appelé ? C’est le Dasein quotidien, toujours déjà dispersé dans le On. Vers quoi la voix l’appelle-t-elle ? «Vers le Soi propre» (Auf das eigene Selbst) (S. Z. p. 273). Le mystère n’est qu’apparent. L’appel paraît seulement étranger, parce qu’il est entendu depuis une situation banale, courante, dans laquelle le Dasein n’est pas lui-même, parce qu’il est entendu par un Dasein non propre. L’appel convoque tout de même le Dasein à lui-même d’une bien étrange façon : il ne dit rien ! La voix de la conscience ne parle pas, n’indique pas ce qu’il faut faire en tel ou tel cas. Elle n’énonce aucun commandement, aucune maxime morale, aucun impératif catégorique ou hypothétique (s’agit-il ici d’une évidence phénoménologique incontestable ?2 La voix ne peut-elle être que silencieuse et indéterminée ? Pourquoi ? Est-ce que la conscience ne «se dit» pas toujours quelque chose ? Quand je me dis par exemple : «je devrais être en train de travailler» ; «je dois remercier un tel» ; «je dois faire une visite à un ami» ; «il faut que je change de conduite» (ou de vêtements !)», ne s’agit-il (47) pas d’appels de la conscience ?. — Quoi qu’il en soit, l’appel ne peut venir que du Dasein lui-même. «Dans la conscience, le Dasein s’appelle lui-même» (S. Z. p. 276).

«Le Dasein est à la fois l’appelant et l’appelé» (S. Z. p. 277). Il est illusoire d’interpréter la force appelante ou l’appelant (Rufer) comme «une puissance étrangère qui envahirait le Dasein» (S. Z. p. 275), comme «un étant qui n’aurait pas le caractère du Dasein». «On assigne à cette puissance un possesseur, à moins que l’on ne la prenne elle-même pour une personne (Dieu) qui annonce sa présence» (Ibid.). Or le Dasein est seul face à la voix. Personne, ni Dieu ni un autre qui lui-même ne s’adresse à lui en lui. Heidegger affirme l’autonomie de la voix ou plutôt son auto-affection, son auto-logie. La conscience n’est pas l’«immortelle et céleste voix» de Rousseau, ni la voix de Dieu, ni celle de la nature. Elle est seulement «l’appel du Souci», qui monte de la totalité du Dasein comme être-en-avant-de-soi, déjà là, déjà jeté. La «dette» est tournée vers une antériorité irrattrapable du Dasein que celui-ci a cependant à assumer. Car si l’appel ne parle pas, si la voix ne dit rien, elle donne pourtant quelque chose à comprendre. Que comprend le Dasein ? Il comprend d’abord qu’il «doit» quelque chose, qu’il est «en dette», non pas à cause de telle ou telle situation, ou de tel ou tel acte, mais depuis toujours. Il comprend ensuite (et simultanément) qu’il faut qu’il reprenne et projette jusqu’à son plus lointain avenir cette dette archi-ancienne et ainsi la transfigure, sans pouvoir l’abolir. De l’unité de l’être-en-dette assumé et du projet naîtra l’être-résolu : «le se-projeter taciturne, prêt à l’angoisse, vers l’être en dette le plus propre, nous l’appelons l’être-résolu» (Entschlossenheit) (S. Z. p. 297). (p. 45-47)

  1. Para Husserl, pelo contrário, a voz da consciência fala-se sempre a si mesma, explicitamente, dizendo, por exemplo, «tu agiste mal», mas «não se comunica nada», pois ela imagina-se apenas a servir-se de palavras. Esta capta na realidade imediatamente a sua própria intenção de significação, sem ter necessidade de signos (Ière Recherche logique, parágrafo 8, trad. francesa p. 44). Cf. Derrida, La voix et le phénomène, cap. VI.[]
  2. Pour Husserl, au contraire, la voix de la conscience se parle toujours à elle-même, explicitement, en disant par exemple «tu as mal agi», mais «ne se communique rien», car elle s’imagine seulement se servir de mots ; elle saisit en réalité immédiatement sa propre intention de signification, sans avoir besoin de signes (1ère Recherche logique, § 8, trad. fr. p. 44). Cf. Derrida, La voix et le phénomène, chap. VI.[]