Graham Harman (2002:83-84) – a teoria des-munda

O relato de 1919 sobre a gênese da teoria também tem um toque familiar. Aqui, como mais tarde, somos informados de que a teoria nos arranca do interior do mundo e, de alguma forma, des-munda a coisa sobre a qual se teoriza. O ambiente é composto de objetos e ações — de situações. Em um ensaio anexado ao texto do próprio curso 1, Heidegger fala do conhecimento como a extinção do caráter situacional da experiência, transformando-o em um dado objetivo ao custo de cortá-lo pela raiz. A vida não é um conjunto de ocorrências presentes, mas um acontecimento (Ereignis). Como diz Heidegger, em seu já conhecido tom de voz: “A relação do eu-situação com a vida não é mera orientação para meros objetos”. 2 A vida é sempre um estado real de coisas, um cenário. Poderíamos facilmente dizer que ela é composta do que a antiga comédia italiana chamava de lazzi, gags ou situações vividas de uma força imediata e irredutível (“Colombina flerta com o pirata espanhol”; “Pierrot mastiga hóstias sagradas”).3 A principal diferença é que esses cenários cômicos já são abertamente visíveis para o espectador do teatro, ao passo que, em primeira instância, a vida é entregue a uma situação sem nem mesmo saber que esse é o caso.

A vida é puro acontecimento; Erlebnis é Ereignis, totalmente investido de sentido. O conhecimento interrompe esse evento e o converte em mero Vorgang, melhor traduzido aqui como “ocorrência” em vez do usual “processo”: “Acontecimento objetivado, acontecendo como algo objetivo ou algo conhecido, chamaremos pelo nome de ocorrência.” Vista como tal ocorrência, a vida é sempre apenas uma sombra de Ereignis. Encontrar uma entidade como o objeto representado do conhecimento requer uma espécie de des-vida, um des-distanciamento ou des-severação: “O objetivo, o conhecido, é, como tal, separado (ent-fernt), afastado da autêntica experiência vivida.”4

(…) Vista como ocorrência, a vida já está reduzida a uma forma de mera representação (Vorgang = Vorstellen). Mas a vida, no sentido mais verdadeiro, é de fato Ereignis. Isso leva Heidegger a fazer um jogo de palavras que exige que traduzamos momentaneamente Ereignis com a incômoda frase “acontecimento de apropriação”: “As experiências vividas são acontecimentos de apropriação, na medida em que vivem a partir do que é próprio (eigen) e vivem a vida somente dessa maneira.” O ‘próprio’ nesse contexto é o próximo, o que o mundo em si realmente é — uma proximidade no sentido autêntico. Assim, não há quase nenhuma necessidade de pular para os ensaios de tecnologia de Heidegger para obter exemplos de versões falsas de proximidade (por exemplo, rádio, filme ou foguete). Já em 1919, fomos informados de que a teoria em si é incapaz de compreender a experiência vivida em seu caráter mais adequado ou mais próximo: “Uma ciência das experiências vividas, então, teria de objetivá-las; isto é, teria de despojá-las de seu caráter não objetal como experiência e evento vividos”. O Ereignis de nosso ambiente é combatido pela atitude teórica, ‘que, de acordo com seu sentido, só é possível como uma destruição da experiência vivida do ambiente’. Assim, a teoria funciona rasgando a conexão do Umwelt. Esse processo recebe vários nomes: é um desviver ou um des-significar. De forma ainda mais inovadora, Heidegger o chama de des-historicização (ent-geschichtlichen).

[HARMAN, Graham. Tool-Being. Heidegger and the Metaphysics of Objects. Chicago: Open Court, 2002]
  1. Zur Bestimmung der Philosophie (GA56-57), pp. 205-14, “Über das Wesen des akademischen Studiums.”[]
  2. GA56-57:206[]
  3. This reference to the commedia dell’arte is obviously my own, not Heidegger’s.[]
  4. Here I make use of MacQuarrie and Robinson’s earlier rendering of Entfernung as “de-severance,” rather than the more recently popular translation of “de-distancing.” In the present passage, which does not talk about spatiality at all, “de-severance” seems to be a more effective choice.[]