A grande suposição é a dinâmica de realização de realidade, de toda realidade possível, como a estrutura bipolar “res cogitans versus res extensa”, isto é, sujeito versus objeto. Cabe dizer também: sujeito e, isto é, mais objeto. As substâncias são autônomas — ou seja, cada qual é, de fato, substância. Uma, a cogitans, é ativa; a outra, a extensa, é passiva. Uma, a ativa, é constituinte, estruturante; a outra, a passiva, é constituída, estruturada. Enfim, o sujeito ativo, o cogito, é o autor, a causa do real. O real é objeto, isto é, é posição ou posicionamento (objetivação) do sujeito. Eu penso, isto é, eu constituo, eu estruturo, eu ponho, eu realizo — enfim eu como realidade e verdade. E esse “eu” não será ele, enquanto a grande suposição, também a grande presunção? E, por isso, o grande erro?
Bem, mas o que estamos nós subpensando para insinuar e mesmo afirmar isso?
Diz-se: eu penso, eu ando, eu escrevo. Eu… Eu… O caminho feito por nós até aqui autoriza-nos e mesmo nos impõe que se pergunte: haverá “eu” fora do pensar, por exemplo? Ou do andar? Ou do escrever? Isto é, pré e “sub-existirá”, dado e pronto como sujeito e substância, um eu inteira e absolutamente “antes”, (181) ou seja, fora de um (todo e qualquer) interesse ou verbo possível?! É isso que está suposto e subdito ao se falar da autonomia e da substancialidade do cogito respectivamente do eu. Presume-se, isto é, estima-se demais, a sua sub e “pré-existência”. Assim, sujeito e objeto ou sujeito versus objeto é presunção. Como?
Já vimos que, assim como no romance ou no drama, o “eu” se faz, vem a ser, tal como o personagem (lembremos Don Quijote!), a saber, na teia, no enredo, no urdimento e na urdidura, quer dizer, na ação, como ação. O “eu” não é o sujeito (o autor, a causa sub e pré-jacente) da ação, mas, se se quer e obedecendo ao aceno da formulação, antes, ele é obra dela, do interesse ou do verbo, do qual ele se torna, sim, o protagonista — o primeiro e o principal da contenda, do acontecimento, que é o interesse ou o verbo. Por isso, o começo é o verbo. Comentando, interpretando e traduzindo esta fala, Goethe, na voz de Fausto, sentencia: no começo era a ação, a atividade — “Im Anfang war die Tat!”1.
O homem, antes de ser um “eu”, este ou aquele, é tão-só (!) a possibilidade de ser numa possibilidade, quer dizer, num verbo (ação, atividade) possível. Tal possibilidade sempre já se deu, sempre já se abriu e aconteceu antes do próprio homem, isto é, do sujeito, do eu e das coisas mesmas. E o modo de ser ou a dimensão que se abriu e que se constitui “na realidade da liberdade como possibilidade para possibilidade”2 e que é o lugar e a hora do homem e do real. Este modo de ser, em sendo abertura, é relação arcaico-originária e constitui-se como radical transcendência ou o interesse da vida, da existência. A atitude, porém, que põe o cogito como sujeito e (182) como substância desconhece e desconsidera inteiramente tal experiência de transcendência, que perfaz o enraizamento, a gênese e a estória de todo real, inclusive e principalmente do homem e de todo e qualquer eu possível. O “eu” é epígono. Ele não tem o direito do primeiro, isto é, do princípio, do fundamento.
[FOGEL, Gilvan. Conhecer é Criar. Ijuí: Unijuí, 2005]- Cf. Goethe, J.W. Fausto. Parte I, V. 1.237.[↩]
- Cf. Kierkegaard, S. Conceito de angústia. Cap. I, § 5.[↩]