Isso se mostra também no uso da linguagem. A redução de Kant, do conceito de gênio ao artista, que tratamos acima, não conseguiu se impor. Ao contrário, no século XIX o conceito de gênio elevou-se a um conceito de valor universal e experimentou — em união com o conceito da criatividade — uma verdadeira apoteose. Era o conceito romântico-idealista da produção inconsciente, que suportou esse desenvolvimento e que alcançou uma enorme repercussão através de Schopenhauer e da filosofia do inconsciente. É verdade que mostramos que uma tal posição preferencial sistemática do conceito do gênio em contraste com o conceito do gosto respondia, de forma alguma, à estética kantiana. Porém a preocupação essencial de Kant veio a produzir uma fundamentação da estética que é autônoma e liberta do padrão do conceito, e de maneira alguma chegou a colocar a questão relativa à verdade no âmbito da arte, mas, fundamentou o julgamento estético sobre o a priori subjetivo do sentimento vital, a harmonia de nossa capacidade para “o conhecimento como tal”, que perfaz a essência comum do gosto e do gênio, anteposto ao irracionalismo e ao culto do gênio do século XIX. A doutrina de Kant sobre a “elevação do sentimento vital” no prazer estético promoveu o desenvolvimento do conceito “gênio” para um conceito de vida abrangente, principalmente depois que Fichte havia elevado o ponto de vista do gênio e a produção genial a um ponto de vista universal e transcendental. Assim aconteceu que o neokantianismo, na medida em que procurava derivar tudo que tivesse valor de objeto da subjetividade transcendental, terminou caracterizando o conceito de VIVÊNCIA como a genuína realidade do consciente. VERDADE E MÉTODO PARTE I 1
Se agora pesquisarmos, em prosseguimento à história da palavra, a história do conceito de “VIVÊNCIA”, podemos concluir do que precedeu que o conceito de VIVÊNCIA de Dilthey contém claramente dois momentos, o panteístico e mais ainda o positivista, a VIVÊNCIA e mais ainda seu resultado. Isso não é, certamente, nenhum acaso, mas uma consequência de sua posição intermediária entre a especulação e o empirismo, do qual ainda voltaremos a nos ocupar em pormenores. Como o que importa a ele é justificar o trabalho das ciências do espírito, do ponto de vista cognitivo-teórico, domina-o por toda parte o motivo do verdadeiramente dado. E pois um motivo cognitivo-teórico ou, melhor, o motivo da própria teoria do conhecimento que motiva sua formação do conceito e que corresponde ao processo linguístico, em cujo encalço nos encontrávamos acima. Como o distanciamento da VIVÊNCIA e a fome de VIVÊNCIA, que atingem a partir do sofrimento causado pela complicada aparelhagem da civilização, alterada pela revolução industrial, fazem a palavra “VIVÊNCIA” alcançar o uso comum da linguagem, da mesma forma o novo distanciamento que a consciência histórica toma com relação à tradição, designa o conceito da VIVÊNCIA em sua função cognitivo-teórica. Isso caracteriza pois o desenvolvimento das ciências do espírito no século XIX, mostrando que não somente externamente reconhecem as ciências da natureza como modelo mas que partindo do mesmo fundamento que vive moderna na natureza, desenvolvem, com ela, o mesmo patos de experiência e pesquisa. Se a estranheza que a era da mecânica tinha de experimentar face à natureza como mundo natural, encontrou sua expressão epistemológica no conceito da autoconsciência e na regra da certeza na “perception clara e distinta”, que foi transformada em método, as ciências do espírito do século XIX experimentaram uma estranheza semelhante face ao mundo histórico. As criações espirituais do passado, da arte e da história não pertencem mais ao conteúdo auto-evidente do presente, mas se tornaram objetos e situações dadas (Gegebenheiten) propostos como tarefa à pesquisa, a partir dos quais pode-se atualizar um passado. E assim como o conceito do dado, que guia também a cunhagem do conceito de VIVÊNCIA de Dilthey. VERDADE E MÉTODO PARTE I 1
As situações dadas (Gegebenheiten) no terreno das ciências do espírito são aliás de um gênero especial, e é isso que Dilthey quer formular através do conceito da “VIVÊNCIA”. Partindo da caracterização que Descartes dá ao res cogitans, ele determina o conceito da VIVÊNCIA através da reflexividade, através da interioridade, e quer, com base nessa forma especial da situação dada, justificar epistemologicamente o conhecimento do mundo histórico. As situações dadas primárias, a que retrocedem a interpretação dos objetos históricos, não são dados de experimentação e de medição, mas unidades de significado. E isso o que o conceito da VIVÊNCIA quer dizer: as configurações de sentido, que nos vêm ao encontro nas ciências do espírito, mesmo que nos apareça como muito estranhas e incompreensíveis, deixam-se reconduzir a unidades últimas do dado na consciência, unidades que já nada mais contêm de estranho, objetivo, nem mesmo necessitado de interpretação. Trata-se das unidades vivenciais, que são em si mesmas unidades de sentido. VERDADE E MÉTODO PARTE I 1
Esse conceito de vida é imaginado teleologicamente: Vida é, para Dilthey, produtividade, sem mais nem menos. Na medida em que a vida se objetiva em imagens dos sentidos, todo o entendimento de sentido é “uma retro-transposição das objetivações da vida na vivacidade espiritual, da qual são procedentes”. É assim que o conceito da VIVÊNCIA forma o fundamento epistemológico para todo o conhecimento do que seja objetivo. VERDADE E MÉTODO PARTE I 1
Semelhantemente universal é a função epistemológica que possui o conceito de VIVÊNCIA na fenomenologia de Husserl. Na 5â investigação lógica (22 capítulo) diferencia-se expressamente o conceito de VIVÊNCIA fenomenológica da popular. A unidade da VIVÊNCIA não é entendida como uma parte da corrente real da experiência de um eu, mas como uma relação intencional. A unidade de sentido chamada “VIVÊNCIA” é também aqui uma unidade teleológica. Somente existem vivências na medida em que nelas algo se experimenta ou é intencionado. É verdade que Husserl reconhece também vivências não-intencionais, mas essas restringem-se, como momentos materiais, à unidade de sentido de vivências intencionais. Desse ponto de vista, o conceito de VIVÊNCIA, em Husserl, transforma-se num título abrangente para todos os atos do consciente, cuja estrutura essencial é a intencionalidade. VERDADE E MÉTODO PARTE I 1
Vê-se assim que, em Dilthey, como em Husserl, na filosofia da vida, tal como na fenomenologia, o conceito da VIVÊNCIA se mostra, de início, como um conceito puramente epistemológico. Em ambos ele é reivindicado com a sua significação teleológica, mas não é determinado conceitualmente. Que é a vida que se manifesta na VIVÊNCIA, significa apenas que é a última coisa a que tornamos a voltar. Para essa cunhagem conceitual, do ponto de vista do desempenho, a história da palavra forneceu uma certa legitimação. Pois vimos que uma significação condensadora e intensiva faz parte da formação da palavra VIVÊNCIA. Quando algo é denominado ou avaliado como uma VIVÊNCIA, isso ocorre através de sua significação associada à unidade de sentido total. O que vale como VIVÊNCIA é realçado tanto por outras vivências — nas quais se experimenta algo diferente — bem como pelo restante do decurso da vida — no qual “nada” é experimentado. O que vale como uma VIVÊNCIA não é mais meramente uma fugaz torrente passageira na torrente da vida consciente — é vista como unidade e ganha, através disso, uma nova maneira de ser una. Nesse sentido é muito compreensível que a palavra apareça na literatura biográfica e que se origine, ao final das contas, do uso autobiográfico. O que se pode denominar VIVÊNCIA constitui-se na lembrança. Aludimos com isso ao conteúdo significante que, para quem teve a VIVÊNCIA, fica como uma posse duradoura. É isso o que ainda legitima o discurso da VIVÊNCIA intencional e da estrutura teleológica, que o consciente possui. Por outro lado, porém, há no conceito da VIVÊNCIA também a contraposição da vida para com o conceito. A VIVÊNCIA possui uma acentuada imediaticidade, que se subtrai a todas as opiniões sobre o seu significado. Tudo o que foi vivenciado é auto-vivência e colabora para perfazer seu significado o fato de que este pertence à unidade do “auto”, contendo assim uma correlação insubstituível e imprescindível com o todo dessa vida. Nesse sentido e de acordo com a natureza da coisa, não desabrocha nele o que se pode obter por intermédio dele e se pode fixar como seu significado. A reflexão autobiográfica ou biográfica, em que se determina seu conteúdo significante, fica fundida no todo do movimento da vida e continua acompanhando-a ininterruptamente. Ser assim tão determinada, a ponto de a gente não conseguir dar conta dela, é, por assim dizer, a maneira de ser da VIVÊNCIA. Nietzsche diz: “Nos homens profundos as vivências duram longo tempo”. Com isso ele quer dizer o seguinte: elas não são esquecidas rapidamente, sua elaboração é um longo processo e justamente nisso reside seu ser específico e seu significado e não somente no conteúdo, como tal, experimentado originariamente. O que denominamos enfaticamente de VIVÊNCIA significa pois algo inesquecível e insubstituível, que é basicamente inesgotável para uma determinação compreensível de seu significado. VERDADE E MÉTODO PARTE I 1
Visto filosoficamente, a ambiguidade que apontamos no conceito da VIVÊNCIA significa que esse conceito não se realiza no papel que lhe é atribuído, isto é, de ser a última situação dada (Gegebenheit) e fundamento de todo o conhecimento. Há ainda algo totalmente diferente no conceito da “VIVÊNCIA”, que exige reconhecimento e que indica uma problemática não superada: seu relacionamento interno com a vida. VERDADE E MÉTODO PARTE I 1
Se pusermos à prova a exata determinação daquilo que aqui se chama vida e o que disso é atuante no conceito da VIVÊNCIA, teremos o seguinte: a relação da vida e da VIVÊNCIA não é a de um geral para um particular. A unidade da VIVÊNCIA, determinada pelo seu conteúdo intencional, encontra-se, antes, numa relação direta com o todo, com a totalidade da vida. Bergson fala da représentation do todo, e justamente assim é o conceito da relação recíproca, utilizado por Natorp, uma expressão para a relação “orgânica” entre a parte e o todo, que se encontra aqui. Foi principalmente Georg Simmel que analisou o conceito da vida sob esse aspecto, como “a vida estendendo seus tentáculos para além de si mesma”. VERDADE E MÉTODO PARTE I 1
A representação do todo na VIVÊNCIA do momento vai certamente além do fato de sua determinação, feita pelo seu próprio objeto. Toda VIVÊNCIA é, nas palavras de Schleiermacher, “um momento da vida infinita”. Georg Simmel, que não somente acompanhou a ascensão da palavra “VIVÊNCIA” até se tornar uma expressão da moda, mas que, em boa parte, foi disso co-responsável, vê o que há de marcante no conceito da VIVÊNCIA justamente no fato de que “o objetivo não somente se torna imagem e representação, como no conhecer, mas também momentos do próprio processo de vida”. Alude certa vez ao fato de que, cada VIVÊNCIA tem algo de aventura. Mas o que vem a ser uma aventura? A aventura não é, de forma alguma, apenas um episódio. Os episódios são casos singulares que se enfileiram uns aos outros, que não possuem nenhuma correlação interna e que justamente por esse motivo não têm um significado duradouro. A aventura, ao contrário, embora também interrompa o curso costumeiro das coisas, se relaciona positiva e significativamente com a correlação que interrompe. Por isso a aventura permite que se sinta a vida no todo, na sua amplidão e na sua força. Nisso reside o fascínio da aventura. Dispensa as condicionalidades e os compromissos sob os quais se encontra a vida costumeira. Ousa partir rumo ao que é incerto. VERDADE E MÉTODO PARTE I 1
Na medida em que a VIVÊNCIA estética, como dissemos acima, representa exemplarmente o conteúdo do conceito da VIVÊNCIA, é compreensível que o conceito desta seja determinante para a fundamentação do ponto de vista da arte. A obra de arte é compreendida como a consumação da representação simbólica da vida, a caminho da qual já se encontra igualmente toda a VIVÊNCIA. É por isso que ela mesma é caracterizada como objeto da VIVÊNCIA estética. Para a estética, isso tem como consequência que a chamada arte vivencial aparece como a verdadeira arte. VERDADE E MÉTODO PARTE I 1
A mesma aporia ocorre quando, em lugar de partir do conceito do gênio, parte-se do conceito da VIVÊNCIA estética. Esse problema já foi levantado pela dissertação fundamental de Georg von Lukács, A relação sujeito-objeto na estética. Ele confere à esfera estética uma estrutura heracíítica, e com isso quer dizer o seguinte: a unidade do objeto estético não chega a ser uma situação dada real. A obra de arte é apenas uma forma do vazio, o mero ponto nodal na possível maioria das vivências estéticas, nas quais se encontra apenas o objeto estético. Como se vê, há absoluta descontinuidade, isto é, decomposição da unidade do objeto estético na multiplicidade de vivências, uma consequência necessária da estética da VIVÊNCIA. Vinculando-se à ideia de Lukács, Oskar Becker chegou à seguinte formulação: “Vista temporalmente, a obra é apenas um momento (isto é, agora), é ‘agora’ esta obra, e já agora não é mais!” Isso, de fato, é algo consequente. A fundamentação da estética na VIVÊNCIA conduz à absoluta pontualidade, que suspende tanto a unidade da obra de arte como a identidade do artista consigo mesmo e a identidade de quem a compreende ou a usufrui. VERDADE E MÉTODO PARTE I 1
O que aqui continua sendo decisivo é que essa ocasionalidade referida está incluída na exigência da própria obra e que, por exemplo, não é imposta a ela, como necessidade, primeiramente por seus intérpretes. É justamente por isso que tais formas de arte, como o portrait, nas quais isso já está fixado, não encontram um lugar certo na estética fundamentada sobre o conceito de VIVÊNCIA. Um portrait, p. ex., contém em seu próprio conteúdo de imagem a relação para com a imagem originária. Com isso não se pensa apenas que o quadro foi pintado realmente segundo esta imagem originária, mas que intenciona a esta. VERDADE E MÉTODO PARTE I 2
Reside na natureza das coisas que, tendo em vista a tarefa que se nos propõe, o idealismo especulativo oferece melhores possibilidades do que Schleiermacher e a hermenêutica que a ele se vincula. É que no idealismo especulativo o conceito do dado, da positividade, tinha sido submetido a uma profunda crítica — e justamente a ela é que Dilthey havia atentado apelar para a sua filosofía da vida. Ele escreve: “Através de que designa Fichte o início de algo novo? Pelo fato de que parte da contemplação intelectual do eu, porém concebendo-o não como uma substância, um ser, um dado, mas exatamente através dessa contemplação, isto é, desse difícil aprofundamento do eu em si próprio, o concebe como vida, atividade, energia, e por consequência, mostra nele a realização de conceitos energéticos como oposição etc”. Da mesma forma, Dilthey acabou reconhecendo no conceito hegeliano do espírito a vitalidade de um genuíno conceito histórico. Nessa mesma direção atuam alguns de seus contemporâneos, como já destacamos na análise do conceito da VIVÊNCIA: Nietzsche, Bergson, este já um tardio seguidor da crítica romântica contra a forma de pensar da mecânica, e Georg Simmel. Mas foi somente Heidegger que tornou consciente, de uma maneira geral, a radical exigência que se coloca ao pensamento em virtude da inadequação do conceito de substância para o ser e o conhecimento histórico. Somente através dele é que se liberou a intenção filosófica de Dilthey. Para o seu trabalho, Heidegger se engatou na investigação da intencionalidade da Fenomenologia de Husserl, que representa a ruptura mais decidida, na medida em que não é o platonismo extremo, como o via Dilthey. VERDADE E MÉTODO PARTE II 1
A orientação “epistemológica” já havia mudado, especialmente sob a influência da “lógica indutiva” de J.St. Mill. Quando Dilthey defendeu a ideia de uma psicologia “compreensiva”, contra a psicologia experimental sustentada por Herbart e Fechner, já partilhava do ponto de partida geral da “experiência”, sustentado pelo “princípio da consciência” e do conceito de VIVÊNCIA. Também lhe serviram de constante advertência tanto o pano de fundo histórico-filosófico e histórico-teológico que alicerçava a lúcida historiografia do historiador J.G. Droysen, como a crítica acirrada que fazia seu amigo, o luterano especulativo Yorck von Wartenburg, ao historicismo ingênuo de sua época. Ambos contribuíram para que a evolução tardia de Dilthey tomasse um novo rumo. O conceito de VIVÊNCIA, que representou para ele a base psicológica para sua hermenêutica, foi complementado pela distinção entre a expressão e significado. Essa complementação ocorreu em parte pela influência da crítica ao psicologismo desenvolvida por Husserl nos “prolegomena” às suas Investigações lógicas e de sua teoria platonizante do significado, e em parte pelo realinhamento com a teoria hegeliana do espírito objetivo, que Dilthey procede, sobretudo em virtude de seus estudos sobre a época da juventude de Hegel. Tudo isso produziu frutos no século XX. Os trabalhos de Dilthey foram prosseguidos por G. Misch, B. Groethuysen, E. Spranger, Th. Litt, J. Wach, H. Freyer, E. Rothacker, O. Bollnow, entre outros. O historiador jurídico E. Betti fez uma síntese da tradição idealista da hermenêutica desde Schleiermacher, chegando a Dilthey e seguindo mais adiante. VERDADE E METODO II PRELIMINARES 8
E o que dizer do sentido e da interpretação de acontecimentos históricos? A consciência dos contemporâneos é de tal natureza que aqueles que “vivenciam” a história não sabem como esta lhes acontece. Dilthey, pelo contrário, mantém-se até o fim fiel às consequências sistemáticas de seu conceito de VIVÊNCIA, como reza o modelo de biografia e autobiografia para a teoria formulada por Dilthey, acerca do contexto da história dos efeitos. Também a acirrada crítica feita por R.G. Collingwood à consciência metodológica positivista permanece presa à estreiteza subjetivista do problema, à medida que, lançando mão do instrumental dialético do hegelianismo de Croce com sua teoria do reenactment, fundamenta como caso modelar para a compreensão histórica a execução posterior de planos elaborados. Nesse ponto, Hegel foi mais consequente. Sua pretensão de se conhecer a razão na história fundamentava-se num conceito do “espírito”, cujo traço essencial é dar-se “no tempo” e a determinação do conteúdo dar-se apenas por sua história. Decerto, também para Hegel, havia os “indivíduos que participam da história do mundo”, por ele caracterizados como “encarregados do negócio do espírito universal”, e cujas decisões e paixões coincidiam com o que “se dava no tempo”. Esses casos excepcionais, porém, não definem para ele o sentido da compreensão histórica, sendo definidos como exceções a partir da concepção do filósofo acerca do que é o historicamente necessário. A saída que pretende atribuir ao historiador uma congenialidade com seu objeto, já tentada por Schleiermacher, certamente não traz resultado algum. Isso transformaria a história universal num espetáculo estético. Seria, por um lado, exigir demais do historiador e, por outro, subestimar sua tarefa de confrontar o próprio horizonte com o do passado. VERDADE E METODO II PRELIMINARES 8
Mas convém mencionarmos outro contexto, a saber, a relação problemática em que se encontra hoje a poética frente à retórica. Isso contém um aspecto hermenêutico. Em suas origens e até os dias de Kant e da destronização da retórica pela estética do gênio e pelo conceito de VIVÊNCIA, ambas as disciplinas estavam fraternalmente unidas, ambas existiam como artes da linguagem, isto é, formas de uso artístico e livre do discurso. Mas havia nelas um prejulgamento que acabou sendo dissipado. Nessa tradição compreendeu-se a linguagem da poesia e a linguagem do discurso artístico a partir do conceito de ornatus. Mas isso significa que a linguagem simples da vida prática representa o exemplo autêntico da linguagem. E, pelo menos desde Vico, Hamann e Herder, a evidência desse enfoque do problema acabou sendo esquecida. Se a poesia representa a linguagem matriz do gênero humano, poderá nos ensinar a respeito da essência da linguagem muito mais do que nos ensinam as ciências que estudam as línguas enquanto idiomas estrangeiros em sua existência alienada nos moldes de meios de comunicação e de informação. Ora, a relação entre poesia e hermenêutica encontra-se em dificuldades por causa do predomínio do jacobismo técnico-industrial, uma vez que a compreensibilidade da obra poética (como a da obra pictórica ou plástica) é considerada um preconceito “clássico”. Parece-me que, atualmente, a tarefa da hermenêutica continua sendo justamente explicar essas figuras de compreensibilidade deficientes (basta recordar as obras de um grupo de investigação sobre hermenêutica, aparecidas nos últimos anos sob o título Poetik und Hermeneutik (Poesia e hermenêutica)). VERDADE E METODO II ANEXOS 28