Schleiermacher entende que estas só podem ser compreendidas adequadamente retrocedendo até a gênese das ideias. O que para Spinoza representa um caso extremo da compreensibilidade, obrigando, com isso, a um rodeio histórico, converte-se, para ele, no caso normal e constitui a pressuposição a partir da qual ele desenvolve a teoria da compreensão. O que ele encontra “de mais relegado e em parte até mesmo completamente abandonado” é “o compreender uma série de ideias ao mesmo tempo como um momento vital que irrompe, como um ato que está em conexão com muitos outros, inclusive de natureza (190) diferente”. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 1.
Essa discussão do conceito do clássico não pretende para si um significado autônomo, porém gostaria de levantar uma questão: Essa mediação histórica do passado com o presente, tal como a realiza o conceito do clássico, estará presente em todo o comportamento histórico como substrato operante? Enquanto que a hermenêutica romântica pretendia ver na homogeneidade da natureza humana um substrato a-histórico para a sua teoria da compreensão, desligando com isso aquele que compreende congenialmente de todo condicionamento histórico, a autocrítica da consciência histórica acaba levando a reconhecer mobilidade histórica não somente no acontecer, mas também no próprio compreender. O compreender deve ser pensado menos como uma ação da subjetividade do que como um retroceder que penetra em um acontecer da tradição, no qual é o que tem de fazer-se ouvir na teoria hermenêutica, demasiado dominada pela ideia de um procedimento, de um método. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 2.
Face a isso, a descrição e a fundamentação existencial do círculo hermenêutico, devidas a Heidegger, representam uma mudança decisiva. E claro que a teoria da hermenêutica do século XIX falava da estrutura circular da compreensão, mas sempre inserida na moldura de uma relação formal entre o individual e o todo, assim como de seu reflexo subjetivo, a antecipação intuitiva do todo e sua explicação subsequente no individual. Segundo essa teoria, o movimento circular da compreensão vai e vem pelos textos, e quando a compreensão dos mesmos se completa, ele é suspenso. Consequente, a teoria da compreensão de Schleiermacher culmina numa teoria do ato adivinhatório, mediante o qual o intérprete se funde por inteiro no autor e resolve, a partir daí, tudo o que é estranho ou estranhável no texto. Heidegger, pelo contrário, descreve esse círculo de uma forma tal que a compreensão do texto se encontre determinada, continuamente, pelo movimento de concepção prévia da pré-compreensão. O círculo do todo e das partes não se anula na compreensão total, mas nela alcança sua mais autêntica realização. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 2.
Hoje em dia parece uma tese paradoxal tentar renovar a velha verdade e a velha unidade das disciplinas hermenêuticas ao nível da ciência moderna. O passo que levou à moderna metodologia espiritual-científica supõe-se que era precisamente sua desvinculação com respeito a qualquer liame dogmático. A hermenêutica jurídica tinha se separado do conjunto de uma teoria da compreensão, porque tinha um objetivo dogmático, enquanto que, na direção inversa, a hermenêutica teológica se integrou na unidade do método histórico-filológico, precisamente ao se desfazer de sua vinculação dogmática. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 2.
Na analítica de Heidegger, portanto, o círculo hermenêutico ganha uma significação totalmente nova. A estrutura circular da compreensão manteve-se, na teoria que nos precedeu, sempre nos quadros de uma relação formal entre o individual e o todo ou de seu reflexo subjetivo: a antecipação divinatória do todo e sua explicitação consequente no caso singular. Segundo esta teoria, portanto, o movimento circular oscilava no texto e acabava suspenso com sua completa compreensão. A teoria da compreensão culminava num ato divinatório que se transferia totalmente ao autor e, a partir dali, procura dissolver tudo que é estranho ou causava estranheza no texto. Heidegger, pelo contrário, reconhece que a compreensão do texto permanece sempre determinada pelo movimento pré-apreensivo da compreensão prévia. O que Heidegger descreve dessa forma não é outra coisa do que a tarefa de concretização da consciência histórica. Junto com essa concretização, exige-se tomar consciência das próprias opiniões prévias e preconceitos e realizar a compreensão guiada pela consciência histórica, de forma que a apreensão da alteridade histórica e o emprego que ali se faz dos métodos históricos não consista simplesmente em deduzir o que a ela se atribuiu de antemão. VERDADE E MÉTODO II PRELIMINARES 5.
A hermenêutica tem, em todo caso, uma temática própria. Apesar de sua generalidade, não pode ser integrada legitimamente na lógica. Em certo sentido, partilha com a lógica a universalidade. Em outro, chega, porém, a superá-la. É claro que todo conjunto enunciativo pode ser considerado do ponto de vista de sua estrutura lógica: As regras da gramática, da sintaxe e finalmente as leis da dedução lógica podem sempre ser empregadas aos contextos do discurso e do pensamento. Raras são, contudo, as vezes em que um conjunto discursivo realmente vivo satisfaz as exigências estritas da lógica de enunciado. O discurso e o diálogo não são “enunciados” no sentido de um juízo lógico, cuja univocidade e significado pode ser comprovado e verificado por todos, mas têm seu lado ocasional. Eles se dão num processo comunicativo, no qual o monólogo do discurso científico e o processo de demonstração representam apenas um caso especial. O modo de realizar-se da linguagem é o diálogo, mesmo que seja o diálogo da alma consigo mesma, que é como Platão caracteriza o pensamento. Nesse sentido, enquanto teoria da compreensão e do entendimento, a hermenêutica congrega a máxima generalidade. Compreende todo enunciado não apenas em sua validade lógica, mas como resposta a uma pergunta. Isto significa, porém, que aquele que compreende, precisa compreender a pergunta, e uma vez que a compreensão precisa alcançar seu sentido a partir de sua história motivacional, precisa ir necessariamente além do conteúdo do enunciado concebido pela lógica. No fundo, isto já estava presente na dialética do espírito de Hegel, tendo sido retomado por B. Croce, Collingwood e outros. Vale a pena ler, na Autobiography de Collingwood, o capítulo sobre The logic of question and answer (A lógica de pergunta e resposta). Mas mesmo uma análise puramente fenomenológica não pode furtar-se ao fato de que não existem percepções nem juízos isolados. Foi o que demonstrou fenomenologicamente H. Lipp, em sua Hermeneutische Logik (Lógica hermenêutica), à base da teoria husserliana das intencionalidades anônimas, desenvolvendo uma análise na linha do conceito existencial de mundo, de Heidegger. Na Inglaterra, Austin desenvolveu, em sentido análogo, a virada do Wittgenstein tardio. VERDADE E MÉTODO II PRELIMINARES 8.
A história da compreensão não é menos antiga e honorável. Se quisermos reconhecer a hermenêutica onde ela aparece como uma verdadeira arte de compreender, então, se não quisermos começar com o Nestor da Ilíada, temos de começar com Ulisses. Poderíamos apelar para o fato de que o novo movimento de educação da sofística impulsionou de fato a interpretação de frases poéticas famosas, adornando-as artificialmente como exemplos pedagógicos. Junto com Gundert, poderíamos até contrapor a esta hermenêutica uma hermenêutica socrática. Mas isso está longe de ser uma teoria da compreensão, e parece ser característico para o surgimento do problema hermenêutico a eliminação de um distanciamento, a superação de uma alteridade e a construção de uma ponte entre o outrora e o agora. Nesse sentido, seu momento característico foi a época moderna, que ganhou consciência de sua distância em relação aos tempos passados. Algo disso já se encontrava na pretensão teológica de compreensão da Bíblia, própria da Reforma, e de seu princípio da sola scriptura, mas encontrou um real desenvolvimento na medida em que o Iluminismo e Romantismo geraram uma consciência histórica, que estabeleceu uma relação cindida com toda tradição. Outra consequência se deu pelo fato de a história da teoria hermenêutica ter-se orientado na tarefa da interpretação das “manifestações vivas expressas por escrito”, mesmo que a elaboração teórica da hermenêutica de Schleiermacher tenha incluído a compreensão no modo como se dá no trato oral da conversação. A retórica, ao contrário, voltava-se para a imediaticidade do efeito do discurso, e mesmo tendo trilhado também os caminhos da escrita artística e desenvolvido a teoria do estilo e os estilos, sua verdadeira realização não se dá na leitura mas no dizer. A posição intermédia do discurso proclamado já denuncia a tendência de basear a arte do discurso em recursos artísticos fixados por escrito, desligando-os da situação originária. Aqui se inicia a influência recíproca com a poética, cujos objetos de linguagem alcançam um tal grau de pureza artística que sua transformação da oralidade para a escritura e vice-versa se dá sem perdas. VERDADE E MÉTODO II OUTROS 18.
A obstinação de Löwith em passar ao largo do sentido transcendental das proposições de Heidegger sobre a compreensão parece-me equivocada num duplo sentido: Não percebe que Heidegger descobriu algo que se dá em toda compreensão e que não pode ser negado como tarefa. Além do mais, não percebe que a violência presente em muitas interpretações de Heidegger não procede dessa teoria da compreensão. Trata-se, antes, de um abuso produtivo dos textos, que denuncia uma falta de consciência hermenêutica. O que confere uma ressonância, além dos limites, a certas páginas do texto é evidentemente o predomínio do próprio interesse no assunto. O comportamento impaciente de Heidegger com relação a textos da tradição não é tanto consequência de sua teoria hermenêutica. Seu comportamento se parece, antes, com o dos grandes continuadores da tradição espiritual, os quais, antes da formação da consciência histórica, apropriavam-se “acriticamente” da tradição. O que provocou a crítica filológica contra Heidegger, nesse caso, foi o fato de ele adaptar-se aos padrões científicos e procurar legitimar também filologicamente sua apropriação produtiva da tradição. Ao invés de invalidar as razões de sua análise da compreensão, isso acaba confirmando-as. Faz parte do compreender, sempre, o fato de a opinião a ser compreendida dever afirmar-se frente à violência da 83] orientação de sentido que domina o intérprete. O esforço hermenêutico se faz necessário justamente porque somos interpelados pela coisa ela mesma. Se não formos interpelados por esta, jamais compreenderemos a tradição, a não ser na total indiferença da interpretação psicológica ou histórica em relação à coisa em questão, indiferença que surge quando não compreendemos mais. VERDADE E MÉTODO II ANEXOS EXCURSO IV