Gadamer (VM): tema hermenêutico

Mas o fenômeno universal da estrutura de linguagem humana desenvolve-se também em outras dimensões. Assim, o tema hermenêutico atinge outras concatenações que determinam a experiência de mundo que o homem faz pela linguagem. Muitos desses temas aparecem em Verdade e método I. Ali apresentei o tema da consciência da história dos efeitos como uma elucidação consciente da ideia da linguagem humana em algumas fases de sua história. Mas, como demonstrou Johannes Lohmann em seu livro Philosophie und Sprachwissenschaf (Filosofia e ciência da linguagem) e em seu comentário sobre meu ensaio em Gnomon, essa consciência atinge também outras dimensões. No conceito de linguagem que eu próprio esbocei, Lohmann amplia sua “cunhagem no âmbito do pensamento ocidental”, a ponto de abranger a escala gigantesca da historia da linguagem tanto para frente quanto para trás. Para trás, rastreando a “procedência do ‘conceito’ como o veículo intelectual da ‘subsunção’ atual dos objetos dados sob uma forma pensada” (714), reconhecendo a forma gramatical do conceito no tipo radical-flexivo do antigo indo-germânico, que encontra sua expressão mais clara na cópula — assim surge a possibilidade da teoria como a criação mais própria do Ocidente. Para frente, explicitando novamente a história do pensamento ocidental pelo desenvolvimento das formas de linguagem; essa história do pensamento ocidental é o que torna possível a ciência moderna no sentido de disponibilizar o mundo pela passagem da tipologia de linguagem radical-flexiva para a tipologia verbal-flexiva. VERDADE E MÉTODO II OUTROS 18.

Esses conselhos gerais não nivelam a peculiaridade da exigência que faz a Sagrada Escritura, que justamente pela sua aplicação ganha o destaque correto. “Deve-se observar que esse livro não contém somente um tipo de doutrina, como costuma ocorrer na maioria dos livros, mas dois tipos: a lei e o evangelho. Ambos se opõem por natureza, mas coincidem na medida em que a lei revela nossa condição pecadora e ajuda assim indiretamente na aceitação do perdão (outorgado por meio do Redentor)”. Também esse é um tema hermenêutico. Significa que a Bíblia requer uma forma especial de apropriação: a aceitação da boa-nova pelo crente. É este o scopus a partir de onde se deve ler a Sagrada Escritura, mesmo que alguém a aborde como mero historiador ou como ateu, a partir de um ponto de vista marxista, por exemplo, que considera “falsa” toda religião. Esse tipo de texto deve ser compreendido — como qualquer outro — à luz de sua intenção. VERDADE E MÉTODO II OUTROS 20.

Nesse sentido, a dimensão da teoria da ciência foi radicalmente ultrapassada. Nessa teoria, desde Dilthey até Betti o pensamento idealista foi utilizado em função da hermenêutica. Schleiermacher já havia destacado a conexão interna existente entre falar, compreender e interpretar, dissolvendo a vinculação tradicional do tema hermenêutico a “manifestações vitais fixadas por escrito” (Dilthey). Com isso, restituiu o caráter hermenêutico ao diálogo vivo. Mas também no estreitamento epistemológico que hermenêutica voltou a sofrer no século XIX não se puderam esconder as dificuldades que se opunham a uma teoria geral da interpretação inspirada no idealismo. O fato de a hermenêutica jurídica, que reivindica uma função legislativa, dever conectar-se à área da metodologia hermenêutica das ciências do espírito tornava-se tão obscuro como o sentido reprodutivo da interpretação que desempenha papel tão importante no teatro e na música. Ambos indicam para além da problemática inerente à teoria da ciência. Isso vale também para a teologia. Pois, mesmo que a hermenêutica teológica não lance mão de nenhuma outra fonte de inspiração ou de revelação para o ato de compreensão da Sagrada Escritura, o acontecimento querigmático da interpretação da Bíblia, como se dá na pregação ou no cuidado pastoral individual, enquanto fenômeno hermenêutico, não pode ser simplesmente desqualificado nem reduzido à problemática científica da teologia. Desse modo, foi preciso interrogar qual a necessidade de se abordar a unidade do problema hermenêutico num âmbito que ultrapassa a teoria da ciência e apreender o fenômeno da compreensão e da interpretação em um sentido mais originário. Mas então deveríamos ultrapassar também a ampliação universal da hermenêutica feita por Schleiermacher e sua fundamentação na unidade do pensamento e da fala. Isso porque deveríamos englobar também a hermenêutica jurídica, que antes estava estreitamente ligada à hermenêutica teológica, porque ambas incluíam “interpretação” e aplicação, isto é, o emprego de algo normativo ao caso particular. VERDADE E MÉTODO II ANEXOS 28.