Heidegger oferece uma descrição fenomenológica completamente correta, quando descobre no suposto “ler” o que “lá está” a pré-estrutura da compreensão. Oferece também um exemplo para o fato de que disso se segue uma tarefa. Em Ser e tempo concretiza a proposição universal, que ele converte em problema hermenêutico, na questão do ser. Com o fim de explicitar a situação hermenêutica da questão do ser, segundo posição prévia, visão prévia e concepção prévia, examina criticamente a questão que ele coloca à metafísica, em momentos essenciais, onde a história da metafísica sofreu uma guinada. 1476 VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 2.
E evidente que não se trata de uma exigência hermenêutica no sentido tradicional do conceito de hermenêutica. Pois isso não quer dizer que a investigação tenha que desenvolver um questionamento de história efeitual paralelo ao questionamento direto da compreensão da obra. A exigência tem um cunho teorético. A consciência histórica tem de se conscientizar de que, na suposta imediatez com que se orienta para a obra ou para a tradição, está sempre em jogo esse outro questionamento, ainda que de uma maneira despercebida e, por consequência, incontrolada. Quando procuramos compreender um fenômeno histórico a partir da distância histórica que determina nossa situação hermenêutica como um todo, encontramo-nos sempre sob os efeitos dessa história efeitual. Ela determina de antemão o que se mostra a nós de questionável e como objeto de investigação, e nós esquecemos logo a metade (306) do que realmente é, mais ainda, esquecemos toda a verdade deste fenômeno, a cada vez que tomamos o fenômeno imediato como toda a verdade. 1661 VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 2.
A consciência da história efeitual é em primeiro lugar consciência da situação hermenêutica. No entanto, o tornar-se (307) consciente de uma situação é uma tarefa que em cada caso reveste uma dificuldade própria. O conceito de situação se caracteriza pelo fato de não nos encontrarmos diante dela e, portanto, não podemos ter um saber objetivo dela. Nós estamos nela, já nos encontramos sempre numa situação, cuja iluminação é a nossa tarefa, e esta nunca pode se cumprir por completo. E isso vale também para a situação hermenêutica, isto é, para a situação em que nos encontramos face à tradição que queremos compreender. Também a iluminação dessa situação, isto é, a reflexão da história efeitual, não pode ser plenamente realizada, mas essa impossibilidade não é defeito da reflexão, mas encontra-se na essência mesma do ser histórico que somos. Ser histórico quer dizer não se esgotar nunca no saber-se. Todo saber-se procede de um dado histórico prévio, que chamamos, com Hegel, “substância”, porque suporta toda opinião e comportamento subjetivo e, com isso, prefigura e delimita toda possibilidade de compreender uma tradição em sua alteridade histórica. A partir disso a tarefa da hermenêutica filosófica pode ser caracterizada como segue: tem de refazer o caminho da fenomenologia do espírito hegeliana, até o ponto em que, em toda subjetividade, se mostra a substancialidade que a determina. 1667 VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 2.
Todo presente finito tem seus limites. Nós determinamos o conceito da situação justamente pelo fato de que representa uma posição que limita as possibilidades de ver. Ao conceito da situação pertence essencialmente, então, o conceito do horizonte. Horizonte é o âmbito de visão que abarca e encerra tudo o que é visível a partir de um determinado ponto. Aplicando-se à consciência pensante falamos então da estreitez do horizonte, da possibilidade de ampliar o horizonte, da abertura de novos horizontes etc. A linguagem filosófica empregou essa palavra, sobretudo desde Nietzsche e Husserl, para caracterizar a vinculação do pensamento à sua determinidade finita e para caracterizar, com isso, a lei do progresso de ampliação do âmbito visual. Aquele que não tem um horizonte é um homem que não vê suficientemente longe e que, por conseguinte, supervaloriza o que lhe está mais próximo. Pelo contrário, ter horizontes significa não estar limitado ao que há de mais próximo, mas poder ver para além disso. Aquele que tem horizontes sabe valorizar corretamente o significado de todas as coisas que caem dentro deles, segundo os padrões de próximo e (308) distante, de grande e pequeno. A elaboração da situação hermenêutica significa então a obtenção do horizonte de questionamento correto para as questões que se colocam frente à tradição. 1671 VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 2.
Já vimos antes, que isso se realiza como um processo de destacar (Abhebung). Consideremos um momento qual é o (311) conteúdo desse conceito de “destacar”. Destacar é sempre uma relação recíproca. O que deve ser destacado tem de destacar-se de algo, que, por sua vez, terá de destacar-se ele próprio daquele. Todo destacar algo torna simultaneamente visível aquilo que se destaca. Nós o descrevemos acima como o pôr em jogo os preconceitos. Partíamos então do fato de que uma situação hermenêutica está determinada pelos preconceitos que trazemos conosco. Estes formam assim o horizonte de um presente, pois representam aquilo mais além do qual já não se consegue ver. No entanto, importa que nos mantenhamos longe do erro de que o que determina e limita o horizonte do presente é um acervo fixo de opiniões e valorações, e que face a isso a alteridade do passado se destaca como um fundamento sólido. 1687 VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 2.
Mas se na realidade não existem esses horizontes que se destacam uns dos outros, por que falamos então de fusão de horizontes e não simplesmente da formação desse horizonte único que remonta sua fronteira às profundidades da tradição? Colocar essa questão implica admitir a peculiaridade da situação, na qual a compreensão se converte em tarefa científica, e admitir que é necessário uma vez elaborar esta situação como situação hermenêutica. Todo o encontro com a tradição realizado com consciência histórica experimenta por si mesmo a relação de tensão entre texto e presente. A tarefa hermenêutica consiste em não ocultar esta tensão em uma assimilação ingênua, mas em desenvolvê-la conscientemente. Esta é a razão por que o comportamento hermenêutico está obrigado a projetar um horizonte que se distinga do presente. A consciência histórica é consciente de sua própria alteridade e por isso destaca o horizonte da tradição com respeito ao seu próprio. Mas, por outro lado, ela mesma não é, como já procuramos mostrar, senão uma espécie de superposição sobre uma tradição que continua atuante, e por isso ela recolhe em seguida o que acaba de destacar, com o fim de intermediar-se consigo mesma na unidade do horizonte histórico que alcança dessa maneira. 1691 VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 2.
Se, a modo de conclusão, colocarmos em relação com o nosso questionamento a descrição aristotélica do fenômeno ético, em particular, da virtude do saber moral, então a análise aristotélica se nos apresenta como uma espécie de modelo dos problemas inerentes à tarefa hermenêutica. Também nós tínhamos nos convencido de que a aplicação não é uma parte última e eventual do fenômeno da compreensão, mas que o determina desde o princípio e no seu todo. Tampouco aqui a aplicação consistia em relacionar algo geral e prévio com uma situação particular. O intérprete que se confronta com uma tradição procura aplicá-la a si mesmo. Mas isso tampouco significa que o texto transmitido seja, para ele, algo dado e compreendido como um algo geral que pudesse ser empregado posteriormente para uma aplicação particular. Pelo contrário, o intérprete não pretende outra coisa que compreender esse geral, o texto, isto é, compreender o que diz a tradição e o que faz o sentido e o significado do texto. E para compreender isso ele não deve querer ignorar a si mesmo e a situação hermenêutica concreta, na qual se encontra. Está obrigado a relacionar o texto com essa situação, se é que quer entender algo nele. 1769 VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 2.
Bem outra é a função do historiador do direito. Aparentemente, a única coisa que ele tem em mente é o sentido originário da lei, qual seu valor e intenção no momento em que foi promulgada. Mas como chegará a reconhecer isso? Ser-lhe-ia possível compreendê-lo sem se tornar primeiro consciente da mudança de circunstâncias que separa aquele momento da atualidade? Não estaria obrigado a fazer exatamente o mesmo que o juiz, ou seja, distinguir o sentido originário do conteúdo de um texto legal desse outro conteúdo jurídico em cuja pré-compreensão vive como homem atual? Nisso me parece que a situação hermenêutica é a mesma, tanto para o historiador como para o jurista, ou seja, ante todo e qualquer texto todos nos encontramos numa determinada expectativa de sentido imediato. Não há acesso imediato ao objeto histórico capaz de nos proporcionar objetivamente seu valor posicionai. O historiador tem que realizar a mesma reflexão que deve orientar o jurista. 1789 VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 2.
Com isto prelineia-se o caminho da investigação que segue: deveremos indagar pela estrutura lógica da abertura que caracteriza a consciência hermenêutica, recordando o significado que convinha ao conceito de pergunta na análise da situação hermenêutica. É claro que em toda experiência encontra-se pressuposta a estrutura da pergunta. Não se fazem experiências sem a atividade do perguntar. O conhecimento de que algo é assim, e não como acreditávamos primeiramente pressupõe evidentemente a passagem pela pergunta se é assim ou de outro modo. A abertura que está na essência da experiência é, logicamente falando, esta abertura do “assim ou de outro modo”. Tem a estrutura da pergunta. E tal como a negatividade dialética da experiência encontrava sua perfeição na ideia de uma experiência consumada, na qual nos fazíamos inteiramente conscientes de nossa finitude e limitação, também a forma lógica da pergunta e a negatividade que lhe é inerente encontram sua consumação numa negatividade radical: no saber que não se sabe. É a famosa docta ignorantia socrática que abre a verdadeira superioridade da pergunta na negatividade extrema da aporia. Teremos, pois, que nos aprofundar na essência da pergunta, se quisermos esclarecer em que consiste o modo peculiar de realização da experiência hermenêutica. 1979 VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 2.
É claro que isto não quer dizer que a situação hermenêutica, face aos textos, seja idêntica à que se coloca entre duas pessoas numa conversação. No caso de textos, trata-se de “manifestações vitais fixadas duradouramente”, que devem ser entendidas, o que significa que um parceiro da conversação hermenêutica, o texto, só pode chegar a falar através do outro, o intérprete. Somente por ele se reconvertem os signos escritos de novo em sentido. Ao mesmo tempo, e em virtude dessa reconversão à compreensão, o próprio tema, de que fala o texto, vem à linguagem. Tal como nas conversações reais, é o assunto comum que une as partes entre si, nesse caso o texto e o intérprete. Tal como o tradutor somente torna possível, na qualidade de intérprete, o acordo numa conversação, em virtude do fato de participar na coisa de que está tratando, também face ao texto, é pressuposto ineludível do intérprete que ele participe de seu sentido. 2099 VERDADE E MÉTODO TERCEIRA PARTE 1.
Na análise do processo hermenêutico, havíamos concluído que a obtenção do horizonte da interpretação é, na realidade, uma fusão horizôntica. Isto se vê confirmado também a partir da linguisticidade da interpretação. Através da interpretação o texto tem de vir à fala. Todavia, nenhum texto, como também nenhum livro fala, se não falar a linguagem que alcance o outro. Assim, a interpretação tem de encontrar a linguagem correta, se é que quer fazer que o texto realmente fale. Por isso, não pode haver uma interpretação correta “em si”, porque em cada caso se trata do próprio texto. A vida histórica da tradição consiste na sua dependência a apropriações e interpretações sempre novas. Uma interpretação correta em si seria um ideal sem pensamentos incapaz de conhecer a essência da tradição. Toda interpretação está obrigada a entrar nos eixos da situação hermenêutica a que pertence. 2159 VERDADE E MÉTODO TERCEIRA PARTE 1.
Mas ao mesmo tempo a correspondência entre dialética hermenêutica e filosófica, que parece derivar-se da construção dialética da individualidade em Schleiermacher e da construção dialética da totalidade em Hegel, não é uma correspondência verdadeira. Pois nessa equiparação desconhece-se a essência da experiência hermenêutica e a finitude radical que lhe subjaz. É claro que toda interpretação tem que começar por algum ponto. Não obstante, seu ponto de partida não é arbitrário. Na realidade não se trata de um começo real. Já vimos como a experiência hermenêutica implica sempre o fato de que, o texto que se trata de compreender, falar a uma situação que está determinada por opiniões prévias. Isso não é uma desfocagem lamentável que obstaculize a pureza da compreensão, mas, a condição de sua possibilidade, que caracterizamos como a situação hermenêutica. Somente porque, entre aquele que compreende e seu texto, não existe uma concordância lógica e natural, é que se pode vir a participar, no texto, de uma experiência hermenêutica. Somente porque o texto tem de ser transladado, de sua distância para o que nos é próprio, é que ele tem algo a dizer para aquele que deseja entender. Somente porque o texto o exige, chega-se, portanto, à interpretação e apenas do modo como ele o requer. O começo aparentemente thético da interpretação é, na realidade, resposta, e como em toda resposta, também o sentido da interpretação se determina a partir da pergunta que se colocou. À dialética da interpretação sempre precedeu a dialética de pergunta e resposta. É esta que determina a compreensão como um acontecer. 2543 VERDADE E MÉTODO TERCEIRA PARTE 3.
Essa relação mostra-se no fato de que o mero deixar e manter o que está ali diante de nós não deixa de ser verdade, isto é, revela-o como é, mas também delineia de antemão o que a partir dali se pode perguntar com sentido e o que se pode manifestar num conhecimento progressivo. Não é possível simplesmente progredir no conhecimento, sem abrir mão de certas verdades. Não se trata de uma relação quantitativa, de tal modo que se pudesse afirmar sempre apenas um âmbito finito de nosso saber. Quando perguntamos pela verdade não está em questão apenas o fato de que, ao mesmo tempo em que reconhecemos uma verdade, a encobrimos e esquecemos, mas de que estamos sempre presos nos limites de nossa situação hermenêutica. Isso, porém, significa que não conseguimos conhecer muita coisa do que é verdadeiro, uma vez que, sem o saber, estamos sempre limitados por preconceitos. Algo como a “moda” dá-se também na praxis do trabalho científico. VERDADE E MÉTODO II PRELIMINARES 4.
Heidegger empreendeu uma descrição fenomenológica plenamente correta ao revelar a estrutura prévia da compreensão na presumida “leitura” daquilo que “está ali”. Ele também deu um exemplo de que dali surge uma tarefa. Em Ser e tempo, concretizou na questão pelo ser o enunciado universal, elevado a um problema hermenêutico (cf. Ser e tempo, vol. II, p. 104s). Para explicitar a situação hermenêutica da pergunta pelo ser segundo a posição prévia, visão prévia e concepção prévia, examinou criticamente a questão por ele dirigida à metafísica, em momentos decisivos da história da metafísica. Com isso, acabou fazendo o que a consciência histórico-hermenêutica exige para todos os casos. Uma compreensão efetuada com consciência metodológica não buscará simplesmente confirmar suas antecipações, mas tomar consciência delas, a fim de controlá-las e com isso alcançar a compreensão correta a partir das coisas elas mesmas. É o que pensa Heidegger, quando exige que na elaboração da posição prévia, visão prévia e concepção prévia se “assegure” o tema científico a partir das coisas elas mesmas. VERDADE E MÉTODO II PRELIMINARES 5.
Mas o que faz a reflexão hermenêutica quando é efetiva? Qual a relação da reflexão histórico-efeitual com a tradição da qual ela se torna consciente? Minha tese é de que — e penso que ela seja a consequência necessária do reconhecimento de nosso condicionamento histórico-efeitual e de nossa finitude — a hermenêutica nos ensina a perceber o dogmatismo presente na contradição entre a tradição viva e “natural” e a apropriação reflexiva da mesma. Ai esconde-se um objetivismo dogmático que deforma também o conceito de reflexão. O sujeito que reflete, mesmo nas ciências da compreensão, não consegue evadir-se do contexto histórico-efeitual de sua situação hermenêutica, visto que sua compreensão sempre está implicada nesse acontecer. O historiador, mesmo aquele da chamada ciência crítica, está tão longe de desfazer-se das tradições vivas, por exemplo das tradições nacionais, que, enquanto historiador nacional, acaba ao contrário formando-as e conformando-as pela sua atuação. E o mais importante: quanto mais conscientemente reflete sobre seu condicionamento hermenêutico tanto mais atua. Droysen, que desmascarou a “objetividade eunuca” dos historiadores em sua ingenuidade hermenêutica, atuou decisivamente em favor de uma consciência nacional da cultura burguesa do século XIX — em todo caso, teve muito mais influência do que a consciência épica de Ranke, que buscava educar para uma apoliteia estatal. A compreensão é, ela mesma, um acontecimento. Só um historicismo ingênuo e irrefletido poderia considerar as ciências histórico-hermenêuticas como algo absolutamente novo, (241) capaz de eliminar o poder da tradição. Através do aspecto da estruturação da linguagem, como um fenômeno capaz de sustentar toda compreensão, procurei demonstrar inequivocamente a mediação constante pela qual sobrevive a tradição social. VERDADE E MÉTODO II OUTROS 18.
Vamos explicitar concretamente esse pensamento. A reflexão efetuada pela hermenêutica filosófica seria crítica no sentido de que descobriria o objetivismo ingênuo onde se encontra enredada a autocompreensão das ciências históricas, orientada nas ciências da natureza. Aqui a crítica da ideologia lança mão da reflexão hermenêutica interpretando o caráter de preconceito de toda compreensão como uma crítica da sociedade. Ou a reflexão hermenêutica descobre falsos embasamentos (Hypostasierungeri) de palavras no estilo que fazia Wittgenstein ao criticar os conceitos da psicologia remontando à situação hermenêutica originária onde a fala está referida à práxis. Também essa crítica ao enfeitiçamento da linguagem retifica nossa autocompreensão, de tal modo que essa pode ajustar-se melhor às nossas experiências. Mas a hermenêutica produz reflexão crítica, por exemplo, quando defende a linguagem compreensível contra falsas pretensões da lógica, que busca importar determinados critérios de cálculo enunciativo a textos filosóficos, demonstrando (Carnap ou Tugendhat) que, quando Heidegger ou Hegel falam sobre o nada, essa fala seria absurda por não cumprir certas precondições lógicas. Nesse caso, a hermenêutica filosófica pode demonstrar que essas objeções não correspondem à experiência hermenêutica ficando aquém do que se deve compreender. O “nada nadificante”, p. ex., não expressa como pensa Carnap um sentimento, mas um movimento do pensamento que deve ser compreendido. A reflexão hermenêutica parece-me ser produtiva onde alguém por exemplo examina o modo de argumentação socrático nos diálogos platônicos a partir da perspectiva de seu rigor lógico. Nesse caso, a reflexão hermenêutica pode descobrir que o processo comunicativo que se dá no desenrolar dos diálogos socráticos é um processo da compreensão e do entendimento, que não é atingido pela busca de conhecimento do analista lógico. Em todos esses casos, a crítica reflexiva reporta-se a uma instância representada pela experiência hermenêutica e sua realização na linguagem. Eleva à consciência crítica o scopus dos enunciados presentes e qual o esforço hermenêutico exigido para sua pretensão da verdade. VERDADE E MÉTODO II OUTROS 19.
Mesmo assim, a situação hermenêutica na relação social dos interlocutores é bem diferente da que se dá na relação analítica. Quando conto um sonho a alguém sem ser movido por uma intenção analítica ou por meu papel de paciente, a comunicação não tem o sentido de introduzir uma interpretação analítica do sonho. Se fizer isso, o ouvinte não atina com o scopus hermenêutico. A intenção é antes compartilhar os jogos inconscientes da própria fantasia onírica, do mesmo modo que na fantasia por exemplo participamos das lendas ou no caso da imaginação poética. Essa reivindicação hermenêutica é legítima e nada tem a ver com a resistência que é um fenômeno bem conhecido dentro da análise. É perfeitamente justificável rechaçar a atitude de alguém que não leve em conta essa situação hermenêutica descrita e, em vez de compreender por exemplo as poesias oníricas de Jean Paul como jogos significativos da imaginação, trata de interpretá-los como uma (260) gravidade significativa do simbolismo inconsciente de uma biografia entulhada. É oportuna aqui a crítica hermenêutica à legitimidade da psicologia profunda, e não se limita de modo algum a fantasias estéticas. Quando alguém, por exemplo, procura convencer argumentativamente um outro sobre uma questão política, tomado de uma emoção apaixonada e uma veemência beirando a irritação, sua pretensão hermenêutica será escutar contra-argumentos e não ver suas emoções serem analisadas por vias da psicologia profunda, segundo a máxima de que “quem se irrita jamais tem razão”. Mais adiante voltaremos a discutir essa relação entre reflexão psicanalítica e hermenêutica e os perigos de uma confusão desses dois “jogos de linguagem”. VERDADE E MÉTODO II OUTROS 19.
O que mais me admira na defesa que Strauss faz da filosofia clássica é seu esforço por compreendê-la como uma unidade, de modo que a oposição extrema entre Platão e Aristóteles tanto em relação à forma quanto ao sentido da questão pelo bem parece não lhe causar preocupações. Os primeiros estímulos que recebi de Heidegger tornaram-se fecundos entre outras coisas porque involuntariamente me ajudaram a penetrar mais fundo no problema hermenêutico da Ética a Nicômaco. Não creio, de modo algum, que este seja um uso indevido do pensamento aristotélico. Isso nos ensina, antes, como podemos extrair dali um possível ensinamento, uma crítica do universal-abstrato, nos moldes como essa crítica se tornou determinante para a situação hermenêutica com o surgimento da (423) consciência histórica, sem precisar do extremismo dialético hegeliano e por conseguinte sem a consequência insustentável representada no conceito do saber absoluto. VERDADE E MÉTODO II ANEXOS 27.
O que tem me ocupado nos últimos anos e o que tenho buscado em diversas conferências ainda não publicadas (Bild und Wort; Das Sein des Gedichteten; Von der Wahrheit des Wortes; Philo-sophical, poetical, religious speaking = Imagem e palavra; O ser do poético; Sobre a verdade da palavra; Diálogo filosófico, poético e religioso) são os problemas hermenêuticos especiais dos textos eminentes. Esse tipo de texto fixa a pura ação de linguagem, e tem com isso um eminente relacionamento com o escrito. Nele, a linguagem está presente de tal modo que sua relação cognitiva com o dado está tão suspensa como a referência comunicativa no sentido da interpelação. Então, a situação hermenêutica geral básica da constituição e fusão de horizontes, a que dei um desenvolvimento conceitual expresso, deverá ser aplicada também a esses textos eminentes. Estou longe de afirmar que o modo como uma obra de arte fala à sua época e ao seu mundo (o que H.R. Jauss chama de sua “negatividade”) não ajuda a determinar seu significado, ou seja, o modo como ela nos fala. Este era realmente o núcleo da consciência da história dos efeitos, a saber, pensar a obra (Werk) e seu efeito (Wirkung) como a unidade de um sentido. O que descrevi como fusão de horizontes representa a forma como essa unidade se realiza. Esta não permite ao intérprete falar de um sentido originário de uma obra sem que na compreensão da mesma já não esteja sempre implicado o sentido próprio do intérprete. Toda vez que se pensar, por exemplo, que é possível “romper” o círculo da compreensão, através do método histórico-crítico (como pensou recentemente Kimmerle), se está ignorando essa estrutura hermenêutica fundamental. O que Kimmerle descreve, assim, é simplesmente o que Heidegger caracterizava como “entrar no círculo de maneira correta”, ou seja, não é uma atualização anacrônica e nem um acrítico puxar brasas para a sardinha das próprias opiniões prévias. A elaboração do horizonte histórico de um texto já é sempre uma fusão de horizontes. O horizonte histórico não pode ser erigido primeiramente por si. Isso é conhecido na hermenêutica mais recente como a problemática da compreensão prévia. VERDADE E MÉTODO II ANEXOS 29.
A situação hermenêutica donde eu parti nasceu do fracasso da tentativa de restauração do idealismo romântico. A pretensão de integrar as ciências empíricas da época moderna na unidade das ciências filosóficas, que encontrou sua expressão no conceito de uma “física especulativa” (conforme o título de uma revista), era absolutamente irrealizável. VERDADE E MÉTODO II ANEXOS 30.