(100) O que foi produzido alcança o seu fim, o que foi feito fica pronto, quando satisfazem à finalidade que lhe foi determinada. Mas de que maneira deve-se imaginar, agora, o padrão de perfeição de uma obra de arte? Por mais racional e sobriamente que se encare a “produção” artística — muita coisa do que denominamos obra de arte não se destina, absolutamente, ao uso, e nenhuma delas ganha, através de uma tal finalidade a medida do seu estar pronta. Nesse caso, o ser da obra de arte se apresenta apenas como uma interrupção de um processo de formação que, virtualmente, aponta para além de si? Será que, em si mesmo, não poderá, de forma alguma, consumar-se? VERDADE E MÉTODO PRIMEIRA PARTE 1.
Se quisermos saber o que é a verdade nas ciências do espírito, teremos então de dirigir a questão da filosofia ao conjunto dos procedimentos das ciências do espírito, da mesma forma que Heidegger a dirigiu à metafísica e tal qual nós a dirigimos à consciência estética. Não iremos ter de aceitar a resposta da auto-evidência das ciências do espírito, mas teremos de indagar o que é, na verdade, a sua compreensão. Na preparação dessa pergunta de longo alcance o que poderá servir, em especial, será a indagação sobre a verdade da arte, justamente porque inclui a compreensão da experiência da obra de arte, ou seja, representa até mesmo um fenômeno hermenêutico, e não, certamente, no sentido de um método científico. A compreensão pertence, antes, ao próprio encontro com a obra de arte, de maneira que apenas do ponto de vista do modo de ser da obra de arte é que se pode aclarar essa pertença. VERDADE E MÉTODO PRIMEIRA PARTE 1.
Para isso, escolhemos, como primeiro ponto de partida, um conceito que desempenhou importante papel na estética: o conceito do jogo. No entanto, o que nos importa é libertar esse conceito de seu significado subjetivo, que apresenta em Kant e em Schiller e que domina toda a nova estética e toda a nova antropologia. Quando, em correlação com a experiência da arte, falamos de jogo, jogo não significa aqui o comportamento ou muito menos o estado de ânimo daquele que cria ou daquele que usufrui e, sobretudo, não significa a liberdade de uma subjetividade que atua no jogo, mas o próprio modo de ser da obra de arte. Havíamos reconhecido na análise da consciência estética que a contraposição de uma consciência estética e de um objeto não corresponde ao estado das coisas. É esse o motivo por que nos é importante o conceito do jogo. VERDADE E MÉTODO PRIMEIRA PARTE 2.
Nossa indagação quanto à natureza do próprio jogo não poderá, por isso, encontrar nenhuma resposta, se é que a estamos esperando da reflexão subjetiva de quem joga. Em vez disso perguntamos pelo modo de ser do jogo como tal. Já tínhamos visto que não é a consciência estética, mas a experiência da arte e, com isso, a questão pelo modo do ser da obra de arte que terá de ser objeto de nossa ponderação. Mas justo isso a experiência da arte, que temos de fixar contra a nivelação da consciência estética, ou seja, que não é um objeto que se posta frente ao sujeito que é por si. A obra de arte tem, antes, o seu verdadeiro ser em se tornar uma experiência que irá transformar aquele que a experimenta. O “sujeito” da experiência da arte, o que fica e persevera, não é a subjetividade de quem a experimenta, mas a própria obra de arte. Encontra-se aí justamente o ponto em que o modo de ser do jogo se torna significante. Pois o jogo tem uma natureza própria, independente da consciência daqueles que jogam. O jogo encontra-se também lá, sim, propriamente lá onde nenhum ser-para-si da subjetividade limita o horizonte temático e onde não existem sujeitos que se comportam ludicamente. VERDADE E MÉTODO PRIMEIRA PARTE 2.
É sobretudo desse sentido medial do jogo que só então resulta a relação com o ser da obra de arte. A natureza, na medida em que existe sem finalidade e intenção, inclusive sem esforço, e enquanto é um jogo que sempre se renova, pode, por isso mesmo, surgir como um modelo da arte. Nas palavras de Friedrich Schlegel: “Todos os jogos sagrados da arte são apenas reproduções remotas do jogo infinito do mundo, da obra de arte que se forma eternamente”. VERDADE E MÉTODO PRIMEIRA PARTE 2.
Seja como for, a “simultaneidade” convém ao ser da obra de arte. Ela perfaz a natureza do “tomar-parte”. Não é a simultaneidade da consciência estética. Pois essa simultaneidade significa o ser-ao-mesmo-tempo e a igual-validade (Gleich-Gültigkeit) de diversos objetos estáticos da vivência numa consciência. A “simultaneidade”, ao contrário, significa aqui que algo individual, por mais remota que seja sua origem, na sua representação, alcança plena atualidade. A simultaneidade não é, pois, uma forma de acontecimento na consciência, mas uma tarefa para a consciência e um desempenho que será exigido dela. É constituída de maneira a se prender de tal forma à coisa em causa que esta se torna “simultânea”, o que significa, porém, que toda intermediação é subsumida em total atualidade. VERDADE E MÉTODO PRIMEIRA PARTE 2.
Nesse sentido, a simultaneidade convém principalmente à (133) ação cúltica, como também à anunciação na pregação. O sentido do tomar-parte é, aqui, a genuína participação no próprio acontecimento salvífico. Ninguém pode duvidar que a diferenciação estética, por exemplo, da “bela” cerimónia ou da “boa pregação”, rente à reivindicação que nos é dirigida, encontra-se fora do lugar. No entanto, eu afirmo que, no fundo, a mesma coisa vale para a experiência da arte. Também aqui a intermediação tem de ser pensada como sendo total. Nem o ser-para-si do artista que cria — por exemplo, sua biografia — nem o ser-para-si do ator que representa uma obra, nem mesmo o ser-para-si do espectador, que acolhe o espetáculo, nenhum deles possui, em face do ser da obra de arte, uma legitimação própria. VERDADE E MÉTODO PRIMEIRA PARTE 2.
No que diz respeito à primeira pergunta, é somente aqui que o conceito da representação se emaranha com o conceito do quadro, que se vincula com o seu quadro original. Nas artes transitórias, das quais partimos, falamos, é verdade, de representação, mas não de quadro. A representação aparecia, nesse caso, ao mesmo tempo dupla. Tanto a obra literária como a sua reprodução, como por exemplo, no palco, é representação. E foi para nós de importância decisiva que a verdadeira experiência da arte passasse por entre a duplicação dessas representações, sem as diferenciar. O mundo que aparece no jogo da representação não está posicionado como uma cópia de seu ser. E tão-somente a reprodução, p. ex., a encenação no palco, não é uma cópia, ao lado da qual o quadro originário do próprio drama manteria seu ser-para-si. O conceito da mimesis, que foi empregado para ambas as formas de representação, não significa tanto o ato de copiar (Abbildung), como a manifestação do representado. Sem a mimesis da obra, o mundo não está aí, do mesmo modo como ele está na obra, e sem a reprodução, a obra de sua parte, não está aí. Na representação se realiza, assim, a presença do representado. Iremos reconhecer como justificado o significado fundamental desse entrelaçamento ontológico do ser original e reprodutivo com a primazia metódica que demos às artes transitórias, caso a compreensão que ali obtivemos se preserve nas artes plásticas. É claro que aí não podemos falar da reprodução como sendo genuíno ser da obra. O quadro, antes, enquanto original, rejeita o ser reproduzido. Parece claro, da mesma maneira, que o copiado na cópia possui um ser independente do quadro, e isso de tal maneira que o quadro em contraste com o representado parece ser um ser inferiorizado. Emaranhamo-nos assim na problemática ontológica do quadro original e da cópia. VERDADE E MÉTODO PRIMEIRA PARTE 2.
Partimos do seguinte: que o modo de ser da obra de arte é representação e nos indagamos como se torna verificável o sentido da representação, naquilo que denominamos quadro. A representação não pode, aqui, significar ato de copiar. Teremos de determinar mais de perto o modo de ser do quadro, procurando diferenciar a maneira pela qual, nele, a representação se vincula a um quadro originário, da relação da ação de copiar, o vínculo da cópia com o quadro original. VERDADE E MÉTODO PRIMEIRA PARTE 2.
O que importa reconhecer é que aquilo que chamamos de ocasionalidade não representa, de forma alguma, uma redução da exigência artística e da univocidade artística de tais obras. Pois, o que se apresenta à subjetividade estética como “irrupção do tempo no jogo” e que na era da arte vivencial apareceu como uma redução do significado estético de uma obra. É, na verdade, apenas o reflexo subjetivo daquela relação ontológica que elaboramos acima. Uma obra de arte pertence tão estreitamente àquilo com o qual tem relação, que enriquece o ser daquele outro como que através de um novo acontecimento do ser. No quadro, ser-fixado; na poesia, ser-tratado; ser meta de uma alusão, do ponto de vista do palco, isso tudo não são efemeridades, que permanecem distanciadas do ser, mas representações desse próprio ser. O que dissemos de modo geral acima sobre a valência de ser do quadro inclui também esse momento ocasional. Assim, apresenta-se o momento da ocasionalidade, que vem ao encontro nos fenômenos citados, como um caso de exceção de uma relação geral, que convém ao ser da obra de arte: a fim de experimentar a continuidade da determinação de seu significado a partir da “ocasião” de seu vir à representação. VERDADE E MÉTODO PRIMEIRA PARTE 2.
Mas, basicamente, também as formas de arte especificamente ocasionais, p. ex., a parabase na comédia antiga ou a caricatura na luta política, que tomaram por alvo uma “ocasião” plenamente determinada — e, finalmente, também o portrait — são formulações da ocasionalidade geral, que faz jus à obra de arte através do fato de que se determina novamente de ocasião em ocasião. Mesmo a determinação única à qual, nesse sentido restrito, se preenche um momento ocasional na obra de arte, ganha no ser da obra de arte uma participação na universalidade, que a torna capaz de uma nova realização — de maneira que a singularidade de sua relação de ocasião torna-se indissociável, mas a relação na própria obra, tornada portrait, torna-se independente da singularidade de sua relação com o quadro original e, mesmo assim, contém-no em si mesmo, ao superá-lo. VERDADE E MÉTODO PRIMEIRA PARTE 2.
Na realidade, o conceito da decoração tem de ser liberado dessa oposição ao conceito da arte vivencial e encontrar seu fundamento na estrutura ontológica da representação, que já elaboramos como modo de ser da obra de arte. Bastará recordar que o adorno, o decorativo são, por seu sentido originário, o belo como tal. Vale a pena reconstruir esse antigo conhecimento. Tudo o que é adorno, e adorna, está determinado pela sua relação com o que ele adorna, com aquilo em que ele é, com aquilo que é seu portador. Não possui um conteúdo estético próprio, o qual somente a posteriori receberia um condicionamento restritivo através da relação para com seu portador. Inclusive Kant, que pode ter alentado essa opinião, leva em conta, na sua conhecida assertiva contra as tatuagens, que um adorno só é tal, quando é conveniente ao portador e lhe cai bem. Forma parte do gosto, não somente que se saiba apreciar que algo é bonito em si, mas também que se saiba o âmbito onde ele pertence e onde não. O adorno não é primeiramente uma coisa para si, que mais tarde se acrescenta a uma outra, mas pertence ao representar-se de seu portador. Do adorno tem-se de dizer também, que pertence à representação; a representação, porém, é um acontecimento ôntico, é re-presentação. Um adorno, um ornamento, uma plástica colocada num local preferencial são re-presentativos no mesmo sentido em que o é, por exemplo, a própria igreja em que foram feitos. VERDADE E MÉTODO PRIMEIRA PARTE 2.
Por isso, a despeito de todas as delimitações de fronteiras estéticas, no nosso contexto, o conceito mais amplo da literatura torna-se válido. Assim como nos foi dado mostrar que o ser da obra de arte é um jogo, que só se cumpre na sua recepção pelo espectador, pode-se dizer, dos textos em geral, que somente na sua compreensão se produz a retransformação do rastro de sentido morto, em sentido vivo. É necessário, portanto, que se pergunte se o que já demonstramos com relação à experiência da arte pode ser afirmado também para a compreensão dos textos em conjunto, portanto, também os que não são obras de arte. Já tínhamos visto que a obra de arte só alcança seu preenchimento na representação que ela encontra, e isto nos tinha obrigado a concluir que toda obra de arte literária só pode se realizar inteiramente pela leitura. Sendo assim, será que isso vale também para a compreensão de todo texto? Será que o sentido de todo texto se realiza somente em sua recepção por quem o compreende? Dito de outra forma, será que o compreender faz parte do acontecer de sentido de um texto — tal qual faz parte da música o fazer-com-que-se-torne-audível? Pode-se chamar ainda de compreensão, quando nos comportamos com relação ao sentido de um texto com tanta liberdade como o artista re-produtivo, com respeito ao seu modelo? VERDADE E MÉTODO PRIMEIRA PARTE 2.
Reconhecemos agora que foi precisamente esse movimento especulativo, o que tivemos em mente tanto na crítica da consciência estética, como na da consciência histórica, com que iniciamos a nossa análise da experiência hermenêutica. O ser da obra de arte não era um ser em si, do qual se distinguisse sua reprodução ou a contingência de sua manifestação; somente em uma tematização secundária, tanto de um como de outro, pode chegar a essa “distinção estética”. Tampouco o que vem ao encontro de nosso conhecimento histórico, a partir da tradição ou como tradição — histórica ou filológicamente — , o significado de um evento ou o sentido de um texto era um objeto em si, fixo, que se tivesse meramente que constatar. Também a consciência histórica encerrava em si, na realidade, a mediação de passado e presente. Ao reconhecer a lingüisticidade como o médium universal dessa mediação, nossa colocação de seus pontos de partida concretos, a critica à consciência estética e histórica, e a hermenêutica que se teria que pôr em seu lugar, adquiriu a dimensão de um questionamento universal. Pois a relação humana com o mundo é lingüística e portanto compreensível em geral e por princípio. Nesse sentido, a hermenêutica é, como vimos, um aspecto universal de filosofia e não somente a base metodológica das chamadas ciências do espírito. VERDADE E MÉTODO TERCEIRA PARTE 3.
Trata-se pois da metafísica platônico-neoplatônica da luz, com a qual se vincula a doutrina cristã da palavra, do verbum creans, a que antes nos dedicamos detidamente. E se designamos a estrutura ontológica do belo como o aparecer, em virtude do qual as coisas se mostram em sua medida e em seu contorno, isso vale na mesma medida para o âmbito inteligível. A luz que faz com que tudo apareça de maneira que seja luminoso e compreensível em si mesmo, é a luz da palavra. Em conseqüência, a metafísica da luz é o fundamento da estreita relação entre o aparecer do belo e a evidência do compreensível . Foi justamente essa relação que orientou nosso questionamento hermenêutico. Gostaria de recordar, nesse ponto, como a análise do ser da obra de arte nos tinha conduzido ao questionamento da hermenêutica, e como esta tinha se ampliado até converter-se num questionamento universal. Isso tudo deu-se sem qualquer consideração paralela da metafísica da luz. Se considerarmos agora o parentesco desta, com nosso questionamento, ajudar-nos-á o fato de que a estrutura da luz pode ser separada, evidentemente, da representação metafísica de uma fonte luminosa sensório-espiritual, ao estilo do pensamento neoplatônico cristão. Isso já pode ser apreciado na interpretação dogmática do relato da criação, em Santo Agostinho. Este observa que a luz foi criada antes da distinção das coisas e da criação dos corpos celestes que a emitem. Ele põe uma ênfase especial no fato de que a criação inicial do céu e da terra tem lugar ainda sem a palavra divina. Deus só fala pela primeira vez ao criar a luz. E esse falar, pelo qual se nomeia e se cria a luz, é interpretado por ele como um vir à luz espiritual, que tornará possível a diferença entre as coisas formadas. Só pela luz a massa informe e primeira do céu e da terra adquire a capacidade de configurar-se em muitas formas diferentes. VERDADE E MÉTODO TERCEIRA PARTE 3.