Gadamer (VM): sentido hermenêutico

É interessante ver que esta frase se encontra num contexto hermenêutico, como aliás, nesse escrito erudito, a sapientia Salomonis representa o último objeto e a mais elevada instância do conhecimento. Trata-se do capítulo sobre a utilização (usus) do sensus communis. Aqui Oetinger volta-se contra a teoria hermenêutica dos wolffianos. Mais importante do que todas as regras hermenêuticas, é que seja um sensu plenus. Uma tal tese é, naturalmente, um extremo espiritualista, possui, no entanto, seu fundamento lógico no conceito da vita, ou seja, do sensus communis. Seu sentido hermenêutico pode ser ilustrado através da frase: “As ideias que se encontram nas Escrituras Sagradas e nas obras de Deus são tanto mais frutuosos e puros quanto o individual se reconhece no todo e o todo no individual”. O que se gostava de denominar de intuition, nos séculos XIX e XX, é aqui reconduzido ao seu fundamento metafísico, isto é, à estrutura do ser vivo e orgânico, que em cada indivíduo quer ser o todo: cyclus vitae centrum suum in corde habet, quod infinita simul percipit per sensum communem (praef.). VERDADE E MÉTODO PRIMEIRA PARTE 1.

É claro que poder-se-ia tentar escapar dessa consequência, dizendo que basta saber que os textos religiosos só devem ser compreendidos como textos que respondem à questão a respeito de Deus. Não exigir-se-ia do intérprete nenhuma motivação religiosa. Mas qual seria a opinião de um marxista, que considera que toda afirmação religiosa só é compreendida, quando é revelada como jogo de interesses das relações de domínio social? Evidentemente o marxista não aceitará o pressuposto de que a existência humana como tal é movida pela questão a respeito de Deus. Esse pressuposto só vale para aquele que já reconheceu nisso a alternativa da crença ou não-crença face ao Deus verdadeiro. Por isso tenho a impressão de que o sentido hermenêutico da pré-compreensão teológica é, ele próprio, teológico. A própria história da hermenêutica mostra como o questionamento de um texto está determinado por uma pré-compreensão muito concreta. A hermenêutica moderna, como disciplina protestante, tem, enquanto arte da interpretação da Escritura, uma relação polêmica para com a tradição dogmática da igreja católica e sua doutrina da justificação pelas obras. Tem pois, ela própria, um sentido dogmático e confessional. Isso não quer dizer que uma hermenêutica teológica desse tipo parta (338) de preconceitos dogmáticos, de tal modo que somente lê no texto o que ela própria aí colocou. Antes, ela própria se põe realmente em jogo. Mas o que pressupõe é que a palavra da Escritura atinge verdadeiramente, e que somente a compreende aquele a quem a sua verdade afeta, quer na fé, quer na dúvida. Nesse sentido, a aplicação é a primeira. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 2.

Todo escrito é, como já vimos, uma espécie de fala alheada, que necessita da reconversão de seus signos à fala e ao sentido. Essa reconversão se coloca como o verdadeiro sentido hermenêutico, porque através da escrita ocorre ao sentido uma espécie de auto-alheamento. O sentido do que foi dito tem de voltar a ser enunciado unicamente com base na literalidade transmitida pelos signos escritos. Ao inverso do que ocorre com a palavra, a interpretação do escrito não dispõe de outra ajuda. Por isso é, aqui, tão importante a “arte” de escrever. É assombroso até que ponto a palavra falada se interpreta a si mesma, pelo modo de falar, o tom, a cadência etc, assim como pelas circunstâncias nas quais se fala. VERDADE E MÉTODO TERCEIRA PARTE 1.

Esse é o interesse dogmático positivo que cunha a conceituação de Bultmann e não o interesse por um Iluminismo progressista. Seu conceito de mito é um conceito puramente descritivo. Traz consigo algo de histórico e casual e, por mais fundamental que seja o problema teológico alojado no conceito de uma desmitologização do Novo Testamento, trata-se de uma questão de exegese prática, que não atinge em hipótese alguma o princípio hermenêutico de toda exegese. Seu sentido hermenêutico restringe-se sobretudo a constatar que não se pode fixar dogmaticamente nenhum conceito determinado de mito, pelo qual se pudesse determinar de uma vez por todas o que o Iluminismo científico poderia e o que não poderia expurgar da Sagrada Escritura como mero mito para o homem moderno. Não é a partir da ciência moderna, mas positivamente a partir da aceitação do querigma, a partir da reivindicação interna da fé, que se deve determinar o que seja um mero mito. Um outro exemplo dessa “desmitologização” é precisamente a grande liberdade que possuía e promovia o poeta grego diante da tradição mítica de seu povo. Também essa liberdade não é “Iluminismo”. O poeta exerce sua força espiritual e seu direito crítico baseado num fundamento religioso. Basta lembrar-nos de Píndaro ou de Ésquilo. Isso explica a necessidade de se refletir sobre a relação entre fé e compreensão, à luz da liberdade do jogo. VERDADE E MÉTODO II COMPLEMENTOS 9.

Os debates que travei com os mais jovens, sobretudo com Habermas, ensinaram-me que a intentio obliqua do crítico da ideologia detecta “preconceitos conservadores” também nos destaques que eu faço. Analisando essa opinião supostamente justificada, comprovei qual o sentido hermenêutico poderia ter o preconceito conservador, ou seja, conscientizar sobre as muitas pressuposições evidentes de que se lança mão sempre que se dá diálogo. Giegel cita meu conservadorismo, que eu reconheço. Mas ele interrompe a citação onde principia sua tese. Essa postula que assim se possibilitam determinados conhecimentos. O meu interesse estava unicamente na possibilidade de conhecimento. Mas a única coisa sobre o que se pode discutir é se realmente é verdade o que eu penso ter averiguado com esses pressupostos. Giegel, partindo de seus pressupostos antagônicos, parece-me chegar ao mesmo resultado e concordar plenamente comigo de que Habermas atribui um falso poder à reflexão. O que o levou a criticar Habermas foram provavelmente as mesmas experiências a que eu me referi, embora com valoração oposta. Ele concretiza essa crítica justamente no revisionismo de Bernstein. Por isso faz sentido que Giegel, a partir de sua concepção de hermenêutica, alegue contra ela: “a hermenêutica provavelmente não poderá despertar desse sonho (da solidariedade que une a todos) pela contracrítica, mas apenas pelo desenvolvimento da própria luta revolucionária”. Não me parece que essa frase contenha alguma contribuição para o debate… VERDADE E MÉTODO II OUTROS 19.