Gadamer (VM): palavra

Para o conteúdo da palavra “formação”, que nos é familiar, a primeira importante constatação é a de que o antigo conceito de uma “formação natural”, que se refere à aparência externa (a formação dos membros, uma figura bem formada), e sobretudo à configuração produzida pela natureza (p. ex., “formação de montanha”), foi naquela época quase inteiramente desvinculado do novo conceito. Formação integra agora, estreitamente, o conceito de cultura, e designa, antes de tudo, especificamente, a maneira humana de aperfeiçoar suas aptidões e faculdades. Através de Kant e de Hegel completa-se o cunho que Herder deu ao nosso conceito. Kant ainda não utiliza a palavra “formação” nesse contexto. Ele fala da “cultura” da faculdade (ou da “aptidão natural”), que, como tal, é um ato de liberdade do sujeito atuante. É por isso que, entre os deveres para consigo mesmo, cita o de não deixar enferrujar seus talentos, sem, nesse caso, utilizar a palavra “formação”. Hegel, ao contrário, já fala de formar-se e de formação ao acolher o mesmo pensamento kantiano do dever para consigo mesmo, e Wilhelm von Humboldt, com a capacidade auditiva que o celebriza, já percebe perfeitamente uma diferença de significado entre cultura e formação: “Quando nós, porém, em nosso idioma dizemos formação, estamos com isso nos referindo a algo ao mesmo tempo mais íntimo, ou seja, à índole que vem do conhecimento e do sentimento do conjunto do empenho espiritual e moral, a se derramar harmonicamente na sensibilidade e no caráter”. Aqui, formação não significa mais cultura, isto é, aperfeiçoamento de faculdades e de talentos. A ascensão da palavra formação desperta, mais do que isso, a antiga tradição mística, segundo a qual o homem traz em sua alma a imagem de Deus segundo a qual ele foi criado, e tem de desenvolvê-la em si mesmo. O equivalente latino para formação é formatio e corresponde noutros idiomas, p. ex., no inglês (em Shaftesbury) a form e formation. Também no alemão existem as correspondentes derivações do conceito de forma, p. ex., Formierung e Formation, há muito tempo em concorrência com a palavra Bildung (formação). Forma vem sendo inteiramente desvinculada de seu significado técnico desde o aristotelismo da Renascença, sendo interpretada de uma maneira puramente dinâmica e natural. Da mesma forma, o triunfo da palavra formação sobre forma não parece só acaso. Porque em “formação” (Bildung) encontra-se a palavra “imagem” (Bild). O conceito da forma fica recolhido por trás da misteriosa duplicidade, com a qual a palavra “imagem” (Bild) abrange ao mesmo tempo “cópia” (Nachbild) e “modelo” (Vorbild). VERDADE E MÉTODO PRIMEIRA PARTE 1.

Corresponde, no entanto, a uma freqüente transferência do devir para o ser, o fato de que a formação (Bildung) (assim também a palavra “Formation” dos nossos dias) designa mais o resultado desse processo de devir do que o próprio processo. A transferência, aqui, é bastante compreensível, porque o resultado da formação não se produz na forma de uma finalidade técnica, mas nasce do processo interno de constituição e de formação e, por isso, permanece em constante evolução e aperfeiçoamento. Não é por acaso que, nesse particular, a palavra formação se iguala à palavra grega physis. Formação não conhece, como tampouco a natureza, nada exterior às suas metas estabelecidas. (Será mantida a desconfiança que a palavra e o assunto “meta de formação” merece, por ser, como tal, uma formação secundária. No fundo, formação não pode ser meta, não pode ser, como tal, desejada, a não ser na temática refletida do educador.) É justamente nisso que o conceito de formação supera o mero cultivo de aptidões pré-existentes, do qual ele deriva. O cultivo de uma aptidão é o desenvolvimento de algo já existente, de maneira que o exercício e a manutenção dela é um mero meio para o fim. Assim, o material de ensino de um manual lingüístico é um simples meio, e não, um fim. Sua aquisição serve apenas à perícia lingüística. Na formação, ao contrário, no que e através do que alguém será instruído, pode também ser inteiramente assimilado. Nesse sentido, tudo que ela assimila, nela desabrocha. Mas na formação aquilo que foi assimilado não é como um meio que perdeu sua função. Antes, nada desaparece na formação adquirida, mas tudo é preservado. A formação é um conceito genuinamente histórico, e é justamente o caráter histórico da “preservação” o que importa para a compreensão das ciências do espírito. VERDADE E MÉTODO PRIMEIRA PARTE 1.

A pesquisa do surgimento da palavra “vivência” (Erlebnis) na escrita alemã conduz ao surpreendente resultado de que, diferentemente de “vivenciar” (Erleben), somente se tornou usual nos anos 70 do século XIX. No século XVIII ela absolutamente ainda não existe, mas também Schiller e Goethe não a conhecem. O mais antigo comprovante parece ser uma carta de Hegel. Mas também dos anos trinta e quarenta só vim a conhecer, até o momento, ocorrências muito isoladas (de Tieck, Aléxis e Gutzkow). Da mesma forma, parece ser rara a palavra nos anos cinqüenta e sessenta, somente aparecendo de repente, com maior freqüência nos anos setenta. Sua introdução geral no uso lingüístico comum está vinculada, pelo que parece, à sua aplicação na literatura biográfica. VERDADE E MÉTODO PRIMEIRA PARTE 1.

Como se trata aqui de uma formação secundária da palavra “vivenciar” que já é mais antiga e que já se encontra freqüentemente na época de Goethe, deve-se extrair o motivo para essa nova formação da palavra da análise do significado de “vivenciar”. Vivenciar significa, de início, “ainda estar vivo, quando algo acontece”. A partir daí a palavra “vivenciar” passa a carregar o tom da imediaticidade com que se abrange algo real — ao contrário daquilo que se pensa saber, mas para o qual falta a credencial da vivência própria, quer o tenhamos recebido de outros, ou venha do ouvir falar, quer o tenhamos deduzido, intuído (gemutmasst). O vivenciado (das Erlebte) é sempre o que nós mesmos vivenciamos (das Selbsterlebté). VERDADE E MÉTODO PRIMEIRA PARTE 1.

Corresponde a essa dupla direção do significado de “vivenciar” o fato de que a literatura biográfica é que por primeiro deu cidadania à palavra “vivência”. A essência da biografia, principalmente a dos artistas e dos poetas do século XIX, é pois: a partir da vida, se compreende a obra. Sua contribuição reside justamente na mediação de ambas as direções do significado que diferenciamos na palavra “vivência”, e correspondentemente, em reconhecê-las como uma conexão produtiva: Algo se transforma em vivência na medida em que não somente foi vivenciado, mas que o seu ser-vivenciado teve uma ênfase especial, que lhe empresta um significado duradouro. O que, dessa maneira, vem a ser uma “vivência” ganha um status de ser totalmente novo na expressão da arte. O título de um livro de Dilthey, Das Erlebnis und die Dichtung, que se tornou famoso, dá uma fórmula pregnante a essa conexão. De fato, foi Dilthey quem primeiro atribuiu a essa palavra uma função conceitual, que em breve viria elevar-se a uma palavra favorita da moda e à denominação de um conceito de valor tão elucidativo, tanto que muitos idiomas europeus a assimilaram como um estrangeirismo. Permita-se, porém, supor que o verdadeiro acontecido na própria vida do idioma, sedimentou no realce terminológico, que a palavra encontra em Dilthey. VERDADE E MÉTODO PRIMEIRA PARTE 1.

Entrementes, e de uma forma bastante feliz, pode-se isolar, em Dilthey, os motivos atuantes na nova cunhagem lingüística e conceitual da palavra “vivência”. O título do livro, Das Erlebnis und die Dichtung é, saiba-se, tardio (1905). A primeira versão da dissertação de Goethe que se encontra nele, que Dilthey havia publicado em 1877, mostra, é verdade, já uma certa utilização da palavra “vivência”, mas nada ainda da solidez terminológica que o conceito teria mais tarde. Vale a pena examinar mais detidamente as pré-formas do sentido tardio da vivência, fixado conceitualmente. Não parece acaso que seja justamente numa biografia de Goethe (e numa dissertação sobre ela), onde de repente se encontra a palavra com freqüência. Goethe, como nem um outro, seduz à formulação dessa palavra, porque suas poesias recebem sua compreensibilidade, em um novo sentido, a partir do que ele vivenciou. Aliás, de si mesmo ele disse que todas as suas poesias têm o caráter de uma grande confissão. A biografia de Goethe escrita por Hermann Grimm segue esse enunciado como um princípio metódico, acontecendo assim que utilize freqüentemente a palavra “vivências”. VERDADE E MÉTODO PRIMEIRA PARTE 1.

No entanto, mesmo nos primeiros trabalhos de Dilthey nota-se uma certa insegurança no significado da palavra vivência. Verifica-se isso bastante bem, principalmente num trecho em que Dilthey, nas edições posteriores, faz desaparecer a palavra vivência: “Em correspondência ao que ele vivenciou e, de acordo com a sua ignorância do mundo, ele co-fantasiou como vivência”. De novo volta-se a falar de Rousseau. Mas uma vivência co-fantasiada já não quer se adequar corretamente ao sentido originário da palavra “vivenciar” — nem mesmo quanto ao uso que Dilthey deu à sua própria linguagem científica mais tarde, onde vivência significa justamente o imediatamente dado, que é o último material para toda a configuração de uma fantasia. A cunhagem da palavra “vivência” lembra, claramente, a crítica ao racionalismo do Aufklärung, que, partindo de Rousseau, deu validade ao conceito da vida. Deve ter sido a influência de Rousseau sobre o classicismo alemão que deu vigor ao padrão do “ser vivenciado”, possibilitando assim a formação da palavra “vivência”. O conceito da vida forma, porém, também o pano de fundo metafísico, que sustenta o pensamento especulativo do idealismo alemão, e que desempenha um papel fundamental tanto para Fichte como para Hegel, mas também para Schleiermacher. Em face da abstração do entendimento, bem como em face da particularidade da percepção ou da representação, esse conceito implica a vinculação à totalidade, e ao infinito. Isso é o que se pode perceber nitidamente no tom da palavra vivenciada até os nossos dias. VERDADE E MÉTODO PRIMEIRA PARTE 1.

O apelo de Schleiermacher ao sentimento vivo contra o frio racionalismo do Aufklärung, a proclamação de Schiller a favor da liberdade estética contra o mecanismo da sociedade, a oposição de Hegel da vida (mais tarde: do espírito) contra a “positividade”, foram o tom antecipador de um protesto contra a moderna sociedade industrial que, no início do nosso século, fizeram ascender as palavras de ordem vivência e vivenciar a um tom quase religioso. O levante do movimento da juventude contra a formação burguesa e suas formas de vida encontrava-se sob esse signo. A influência de Friedrich Nietzsche e de Henri Bergson atuou nessa direção. Mas também um “movimento espiritual” como o que envolveu Stefan George e, não por último, a fineza sismográfica, com a qual o filosofar de Georg Simmel reagiu a esses processos, testemunham a mesma coisa. E assim que a filosofia de vida dos nossos dias se vincula aos seus antecessores românticos. A rejeição à mecanização da vida na existência de massa da atualidade acentua a palavra ainda hoje com uma tal auto-evidência que mantém totalmente encobertas suas implicações conceituais. VERDADE E MÉTODO PRIMEIRA PARTE 1.

Assim ter-se-á de entender a cunhagem do conceito por parte de Dilthey a partir da pré-história romântica da palavra, e lembrar-se-á que Dilthey foi o biógrafo de Schleiermacher. É claro que a palavra “vivência” ainda não se encontra em Schleiermacher, nem mesmo, pelo que parece, a palavra “vivenciar”. Mas o que não falta são sinônimos, que ocupam o círculo do significado da palavra vivência, permanecendo sempre visível o pano de fundo panteístico. Cada ato permanece ligado com um momento de vida da infinitude da vida, que se manifesta nele. Tudo que é finito é expressão, representação do infinito. VERDADE E MÉTODO PRIMEIRA PARTE 1.

Se agora pesquisarmos, em prosseguimento à história da palavra, a história do conceito de “vivência”, podemos concluir do que precedeu que o conceito de vivência de Dilthey contém claramente dois momentos, o panteístico e mais ainda o positivista, a vivência e mais ainda seu resultado. Isso não é, certamente, nenhum acaso, mas uma conseqüência de sua posição intermediária entre a especulação e o empirismo, do qual ainda voltaremos a nos ocupar em pormenores. Como o que importa a ele é justificar o trabalho das ciências do espírito, do ponto de vista cognitivo-teórico, domina-o por toda parte o motivo do verdadeiramente dado. E pois um motivo cognitivo-teórico ou, melhor, o motivo da própria teoria do conhecimento que motiva sua formação do conceito e que corresponde ao processo lingüístico, em cujo encalço nos encontrávamos acima. Como o distanciamento da vivência e a fome de vivência, que atingem a partir do sofrimento causado pela complicada aparelhagem da civilização, alterada pela revolução industrial, fazem a palavra “vivência” alcançar o uso comum da linguagem, da mesma forma o novo distanciamento que a consciência histórica toma com relação à tradição, designa o conceito da vivência em sua função cognitivo-teórica. Isso caracteriza pois o desenvolvimento das ciências do espírito no século XIX, mostrando que não somente externamente reconhecem as ciências da natureza como modelo mas que partindo do mesmo fundamento que vive moderna na natureza, desenvolvem, com ela, o mesmo patos de experiência e pesquisa. Se a estranheza que a era da mecânica tinha de experimentar face à natureza como mundo natural, encontrou sua expressão epistemológica no conceito da autoconsciência e na regra da certeza na “perception clara e distinta”, que foi transformada em método, as ciências do espírito do século XIX experimentaram uma estranheza semelhante face ao mundo histórico. As criações espirituais do passado, da arte e da história não pertencem mais ao conteúdo auto-evidente do presente, mas se tornaram objetos e situações dadas (Gegebenheiten) propostos como tarefa à pesquisa, a partir dos quais pode-se atualizar um passado. E assim como o conceito do dado, que guia também a cunhagem do conceito de vivência de Dilthey. VERDADE E MÉTODO PRIMEIRA PARTE 1.

Vê-se assim que, em Dilthey, como em Husserl, na filosofia da vida, tal como na fenomenologia, o conceito da vivência se mostra, de início, como um conceito puramente epistemológico. Em ambos ele é reivindicado com a sua significação teleológica, mas não é determinado conceitualmente. Que é a vida que se manifesta na vivência, significa apenas que é a última coisa a que tornamos a voltar. Para essa cunhagem conceitual, do ponto de vista do desempenho, a história da palavra forneceu uma certa legitimação. Pois vimos que uma significação condensadora e intensiva faz parte da formação da palavra vivência. Quando algo é denominado ou avaliado como uma vivência, isso ocorre através de sua significação associada à unidade de sentido total. O que vale como vivência é realçado tanto por outras vivências — nas quais se experimenta algo diferente — bem como pelo restante do decurso da vida — no qual “nada” é experimentado. O que vale como uma vivência não é mais meramente uma fugaz torrente passageira na torrente da vida consciente — é vista como unidade e ganha, através disso, uma nova maneira de ser una. Nesse sentido é muito compreensível que a palavra apareça na literatura biográfica e que se origine, ao final das contas, do uso autobiográfico. O que se pode denominar vivência constitui-se na lembrança. Aludimos com isso ao conteúdo significante que, para quem teve a vivência, fica como uma posse duradoura. É isso o que ainda legitima o discurso da vivência intencional e da estrutura teleológica, que o consciente possui. Por outro lado, porém, há no conceito da vivência também a contraposição da vida para com o conceito. A vivência possui uma acentuada imediaticidade, que se subtrai a todas as opiniões sobre o seu significado. Tudo o que foi vivenciado é auto-vivência e colabora para perfazer seu significado o fato de que este pertence à unidade do “auto”, contendo assim uma correlação insubstituível e imprescindível com o todo dessa vida. Nesse sentido e de acordo com a natureza da coisa, não desabrocha nele o que se pode obter por intermédio dele e se pode fixar como seu significado. A reflexão autobiográfica ou biográfica, em que se determina seu conteúdo significante, fica fundida no todo do movimento da vida e continua acompanhando-a ininterruptamente. Ser assim tão determinada, a ponto de a gente não conseguir dar conta dela, é, por assim dizer, a maneira de ser da vivência. Nietzsche diz: “Nos homens profundos as vivências duram longo tempo”. Com isso ele quer dizer o seguinte: elas não são esquecidas rapidamente, sua elaboração é um longo processo e justamente nisso reside seu ser específico e seu significado e não somente no conteúdo, como tal, experimentado originariamente. O que denominamos enfaticamente de vivência significa pois algo inesquecível e insubstituível, que é basicamente inesgotável para uma determinação compreensível de seu significado. VERDADE E MÉTODO PRIMEIRA PARTE 1.

No conceito do símbolo ressoa, porém, um pano de fundo metafísico, que se afasta totalmente do uso retórico da alegoria. É possível ser conduzido, a partir do sensorial, ao divino. Pois o sensorial não é mera nadidade e treva, mas emanação e reflexo do verdadeiro. O conceito moderno de símbolo é desprovido dessa sua função gnóstica, e não é o seu bastidor metafísico compreensível. A palavra “símbolo” só pode ser elevada da sua aplicação originária, enquanto documento, sinal de reconhecimento, senha, conceito filosófico de um misterioso sinal, indo parar, com isso, na proximidade do hieróglifo, cuja decifração só alcançam os iniciados, porque o símbolo não é adoção qualquer de um signo ou a criação de um signo, mas pressupõe uma correlação metafísica do visível com o invisível, essa “coincidência” de duas esferas, encontra-se na base de todas as formas do culto religioso. Da mesma forma, a versão encontra-se nas proximidades da estética. O simbólico, segundo Solger, caracteriza uma “existência em que, de alguma forma, a idéia é reconhecida”, portanto, a íntima unidade do ideal e do fenômeno, que é específica para a obra de arte. O alegórico, ao contrário, só deixa surgir essa unidade significante através da indicação a um outro, fora de si. VERDADE E MÉTODO PRIMEIRA PARTE 1.

É somente através disso que o que denominamos transformação de configuração alcança seu completo sentido. A transformação e transformação no verdadeiro. Não é enfeitiçamento no sentido da bruxaria, que está esperando a palavra salvadora e retransformadora, mas ela mesma é a salvação e a retransformação no verdadeiro ser. Na representação do jogo (espetáculo) resulta o que é. Nela será sacado e trazido à luz aquilo que, noutras ocasiões, sempre se encobre e se retrai. Quem sabe perceber a comédia e a tragédia da vida sabe também se subtrair à sugestão das finalidades que escondem o jogo (espetáculo) que é jogado (representado) conosco. VERDADE E MÉTODO PRIMEIRA PARTE 2.

A aplicação à teologia de Lutero reside no fato de que a reivindicação da fé existe desde a anunciação e que na pregação volta a ser validada sempre de novo. A palavra da pregação produz exatamente a mesma intermediação total que, de outro modo, cabe à ação cúltica — por exemplo, na santa missa. Ainda veremos que a palavra também é invocada noutras ocasiões, a fim de realizar a intermediação da simultaneidade, e que por isso, no problema da hermenêutica, cabe-lhe a condução. VERDADE E MÉTODO PRIMEIRA PARTE 2.

Agora experimentamos, através de Aristóteles, que a representação da ação trágica causa um efeito específico no espectador. A representação atua através de eleos e phobos. A tradução tradicional dessas afecções por “compaixão” e “temor” deixa transparecer uma tonalidade demasiadamente subjetiva. Consoante Aristóteles, não se trata, de modo algum, de compaixão e nem mesmo de avaliação da compaixão, feita cada vez diferente durante esses séculos, e muito menos ainda se pode entender o temor como um estado de ânimo da interioridade. Ambas são, antes, ocorrências que surpreendem e arrastam consigo os homens. Eleos é a desolação (Jammer) que advém a alguém em face daquilo que denominamos de desolador. É assim que o destino de Édipo desola alguém (o exemplo que Aristóteles sempre tem diante dos olhos). A palavra alemã Jammer (desolação) vem a ser um bom equivalente, pelo motivo de que não significa uma mera interioridade, mas também, a sua expressão. Correspondentemente, Phobos não é apenas um estado de ânimo, mas, como diz Aristóteles, uma ducha fria, a ponto de deixar congelado o sangue e a pessoa, vítima de um calafrio. Na maneira especial com que aqui, dentro da característica da tragédia, se fala de Phobos em vinculação com Eleos, Phobos significa o espanto de tremor que se apossa de quem estamos vendo ir, às pressas, de encontro à sua ruína, e por esse alguém trememos. A desolação e o tremor são formas de êxtase, do estar-fora-de-si, que atestam o desterro daquilo que se desenrola diante de alguém. VERDADE E MÉTODO PRIMEIRA PARTE 2.

Até esse ponto, examinamos essa “ontologia” do quadro usando relações profanas. É notório, porém, que somente o quadro religioso permite que sobressaia inteiramente o verdadeiro poder de ser do quadro. Pois é da manifestação do divino que se afirma alcançar sua plasticidade tão-somente através da palavra e da imagem. O significado do quadro religioso é, portanto, exemplar. Nele torna-se indubitável que o quadro não é a cópia de um ser retratado, mas, de acordo com o ser, se comunica com o retratado. A partir desse exemplo torna-se compreensível que a arte, ela mesma, e num sentido [148] universal, proporciona um crescimento de plasticidade ao ser. A palavra e a imagem não são meras ilustrações subseqüentes, mas, permitem que o que representam seja assim inteiramente o que é. VERDADE E MÉTODO PRIMEIRA PARTE 2.

Com isso, possibilitou a criação de tipos fixos, na medida em que incumbiu e liberou a arte plástica para a configuração e o aperfeiçoamento dos mesmos. Como a palavra poética proporciona uma primeira unidade à consciência religiosa, que, por extensão, abrange o culto local, ela apresenta uma nova tarefa à arte plástica. Pois o poético mantém sempre uma não-fixação peculiar, ao trazer algo à representação na universalidade espiritual da língua, que fica ainda aberto a um preenchimento da fantasia, segundo o gosto. Somente a arte plástica fixa, e só nesse sentido, cria os tipos. Isso vale justamente, também quando não confundimos a criação do “quadro” da divindade com a invenção de deuses e nos mantemos livres da inversão da tese-da-imago-Dei do Gênesis, introduzida por Feuerbach. Essa inversão antropológica e reinterpretação da experiência religiosa, que se tornou dominante no século XIX, surge, antes, do mesmo subjetivismo que alicerça também o raciocínio da mais recente estética. VERDADE E MÉTODO PRIMEIRA PARTE 2.

Nesse sentido, parece-me de uma força de comprovação decisiva o fato de que mesmo uma pura consciência estética conhece o conceito da profanação. Ainda sente a destruição de obras de arte como um sacrilégio. (A palavra sacrilégio vive hoje ainda quase que somente no emprego de “sacrilégio-da-arte”.) Para a moderna religião da formação estética, isto é um traço característico, a que se poderia acrescentar vários outros testemunhos. É assim que, p. ex., também a palavra “vandalismo”, que, em si, recua até a Idade Média, veio a ser propriamente aceita somente na reação às destruições praticadas pelos jacobinos na Revolução Francesa. A destruição de obras de arte é como uma violação de um mundo protegido pela sacralidade. Portanto, nem mesmo uma consciência estética que tenha se tornado autônoma poderá negar que a arte é mais do que ele próprio quer ter por verdadeiro. VERDADE E MÉTODO PRIMEIRA PARTE 2.

Para começar, já teremos uma diferença interessante, caso minha impressão esteja correta, no fato de que Schleiermacher não fale tanto da incompreensão como de mal-entendido. O que ele tem em vista já não é mais a situação pedagógica da interpretação, que procura ajudar a compreensão do outro, do aluno. Ao contrário, nele a interpretação e a compreensão se interpretam tão intimamente como a palavra exterior e interior, e todos os problemas da interpretação são, na realidade, problemas da compreensão. Trata-se apenas da subtilitas intelligendi, não da subtilitas explicando (para não falar da applicatio). Mas, Schleiermacher faz, sobretudo, uma diferenciação expressa entre a praxis mais laxista da hermenêutica, segundo a qual a compreensão se realiza por si mesma, e a praxis mais estrita que parte da idéia de que o mal-entendido se produz por si mesmo. Sobre essa diferença fundamentou seu desempenho próprio: desenvolver, em lugar de uma “agregação de observações”, uma verdadeira doutrina da arte do compreender. E isso significa algo fundamentalmente novo. A dificuldade de compreensão e do mal-entendido já não são levados em conta somente como momentos ocasionais, mas como momentos integradores que se procura desconectar previamente. Schleiermacher chega inclusive a definir que: “a hermenêutica é a arte de evitar o mal-entendido”. Para além da ocasionalidade pedagógica da prática da interpretação, a hermenêutica se eleva à autonomia deum método, pois “o mal-entendido se produz por [189] si mesmo, e a compreensão é algo que temos de querer e de procurar em cada ponto”. Evitar o mal-entendido — “Todas as tarefas estão contidas nesta expressão negativa”. Sua resolução positiva está, para Schleiermacher, num cânon de regras gramaticais e psicológicas de interpretação, que se afastam por completo de qualquer liame dogmático de conteúdo, inclusive na consciência do intérprete. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 1.

A partir disso pode-se entender o que Dilthey vincula à hermenêutica romântica. Com a sua ajuda consegue ele cobrir a diferença entre a essência histórica da experiência e a forma de conhecimento da ciência, ou melhor, pôr em consonância a forma de conhecimento das ciências do espírito com os padrões metodológicos das ciências da natureza. Já vimos acima que o que o levou a isso não foi uma adaptação externa. Reconhecemos agora que não o conseguiu sem descuidar a própria e essencial historicidade das ciências do espírito. Isso se torna claro no conceito de objetividade válida nas ciências da natureza. E por isso que Dilthey gosta de empregar a palavra “resultados” e de demonstrar pela descrição da metodologia das ciências do espírito sua igualdade de categoria com as ciências da natureza. Para isso a hermenêutica romântica veio-lhe ao encontro, na medida em que, como já vimos, esta própria não levava em conta a essência histórica da experiência. Pressupunha que o objeto da compreensão é o texto a ser decifrado e compreendido em seu sentido. Assim, todo encontro com um texto é, para ela, um auto-encontro do espírito. Todo texto é suficientemente estranho para representar uma tarefa, e, no entanto, suficientemente familiar para manter sua essencial possibilidade de resolução, mesmo quando não se saiba de um texto a não ser que é texto, escrito ou espírito. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 1.

“Preconceito” não significa pois, de modo algum, falso juízo, pois está em seu conceito que ele possa ser valorizado positivamente ou negativamente. É claro que o parentesco com o praejudicium latino torna-se operante nesse fato, de tal modo que, na palavra, junto ao matiz negativo, pode haver também um matiz positivo. Existem préjugés legitimes. Isso encontra-se muito distante de nosso atual tato lingüístico. A palavra alemã Vorurteil (preconceito) — da mesma forma que a francesa préjugé, mas ainda mais pregnantemente — parece ter-se restringido, pelo Aufklärung e sua crítica religiosa, ao significado de “juízo não fundamentado”. Somente a fundamentação, a garantia do método (e não o encontro com a coisa como tal) confere ao juízo sua dignidade. Aos olhos do Aufklärung, a falta de fundamentação não deixa espaço a outros modos de certeza, pois significa que o juízo não tem um fundamento na coisa, que é um juízo “sem fundamento”. Essa é uma conclusão típica do espírito do racionalismo. Sobre ele repousa o descrédito dos preconceitos em geral e a pretensão do conhecimento científico de excluí-los totalmente. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 2.

É justamente isso o que quer dizer a palavra “clássico”: que a sobrevivência da força de expressão imediata de uma obra é fundamentalmente ilimitada. Por mais que o conceito do clássico expresse distância e inacessibilidade e pertença à configuração da consciência de formação, também a “formação clássica” continuará contendo sempre algo da validez permanente do clássico. Mesmo a configuração da consciência de formação testemunha, no entanto, uma última comunidade e filiação ao mundo a partir do qual fala a obra clássica. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 2.

Vejamos agora o caso da hermenêutica teológica tal como [336] foi desenvolvido pela teologia protestante, na perspectiva de nosso problema. Aqui se pode apreciar claramente uma autêntica correspondência com a hermenêutica jurídica, já que também aqui a dogmática não reveste nenhum caráter de primazia. A verdadeira concreção da proclamação tem lugar na prédica, assim como a do ordenamento legal tem lugar no juízo. Mas aqui há uma importante diferença. Ao inverso do que ocorre no juízo jurídico, a prédica não é uma complementação produtiva do texto que interpreta. A mensagem da salvação não experimenta, em virtude da prédica, nenhum incremento de conteúdo que se possa comparar com a capacidade complementadora do direito que convém à sentença do juiz. Nem sequer se pode dizer que a mensagem de salvação só obtenha uma determinação precisa a partir da idéia do pregador. Ao contrário do que ocorre com o juiz, o pregador não fala ante a comunidade com autoridade dogmática. É verdade que na prédica se trata de interpretar uma verdade vigente. Mas esta verdade é anúncio, e o que se consegue não depende da idéia do pregador, mas da força da própria palavra, que pode chamar à conversão inclusive através de uma má prédica. O anúncio não pode ser separado de sua realização. Toda fixação dogmática da doutrina pura é secundária. A Sagrada Escritura é a palavra de Deus e isso significa que a Escritura mantém uma primazia absoluta face à doutrina dos que a interpretam. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 2.

É claro que poder-se-ia tentar escapar dessa conseqüência, dizendo que basta saber que os textos religiosos só devem ser compreendidos como textos que respondem à questão a respeito de Deus. Não exigir-se-ia do intérprete nenhuma motivação religiosa. Mas qual seria a opinião de um marxista, que considera que toda afirmação religiosa só é compreendida, quando é revelada como jogo de interesses das relações de domínio social? Evidentemente o marxista não aceitará o pressuposto de que a existência humana como tal é movida pela questão a respeito de Deus. Esse pressuposto só vale para aquele que já reconheceu nisso a alternativa da crença ou não-crença face ao Deus verdadeiro. Por isso tenho a impressão de que o sentido hermenêutico da pré-compreensão teológica é, ele próprio, teológico. A própria história da hermenêutica mostra como o questionamento de um texto está determinado por uma pré-compreensão muito concreta. A hermenêutica moderna, como disciplina protestante, tem, enquanto arte da interpretação da Escritura, uma relação polêmica para com a tradição dogmática da igreja católica e sua doutrina da justificação pelas obras. Tem pois, ela própria, um sentido dogmático e confessional. Isso não quer dizer que uma hermenêutica teológica desse tipo parta [338] de preconceitos dogmáticos, de tal modo que somente lê no texto o que ela própria aí colocou. Antes, ela própria se põe realmente em jogo. Mas o que pressupõe é que a palavra da Escritura atinge verdadeiramente, e que somente a compreende aquele a quem a sua verdade afeta, quer na fé, quer na dúvida. Nesse sentido, a aplicação é a primeira. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 2.

Do ponto de vista da teoria da ciência moderna teríamos de argumentar mais ou menos assim. Poderíamos apelar também ao valor paradigmático dos casos nos quais não é possível uma substituição imediata do destinatário original pelo intérprete, p. ex., quando um texto se dirige a uma pessoa determinada, ou parceiro de contrato, ou quem recebe uma conta ou um comando. Para entender plenamente o sentido de um texto desse tipo poderíamos nos pôr no lugar desse destinatário, e na medida em que esse deslocamento lograsse dar ao texto toda a sua concreção, poderíamos reconhecê-lo como um verdadeiro logro da interpretação. Mas esse deslocar-se ao lugar do leitor original (Schleiermacher) é coisa muito diferente da aplicação. Representa saltar por cima da tarefa de mediar o outrora e o hoje, o tu e o eu, que é o que queremos dizer com a palavra aplicação e que também a hermenêutica jurídica reconhece como sua tarefa. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 2.

Em suas inolvidáveis exposições, Platão mostra-nos em que consiste a dificuldade de sabermos o que não sabemos. É o poder da opinião, contra o qual é tão difícil chegar ao reconhecimento de que não se sabe. Opinião é o que reprime o perguntar. É-lhe inerente uma particular tendência expansionista. Ela gostaria de ser sempre opinião comum, e a palavra que entre os gregos designava a opinião, doxa, significa ao mesmo tempo a decisão alcançada pela maioria na reunião do conselho. Como é possível, então, chegar ao não saber e ao [372] perguntar? VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 2.

Assim, podemos apelar a Platão, quando colocamos em primeiro plano a referência à pergunta também para o fenômeno hermenêutico. Podemos fazê-lo tanto mais, pelo fato de que no próprio Platão já se mostra o fenômeno hermenêutico de uma certa forma. Sua crítica à escrita deveria ser analisada, uma vez, também sob o ponto de vista de que nela aparece uma conversão da tradição poética e filosófica de Atenas em literatura. Nos diálogos de Platão vemos como a “interpretação” de textos, cultivada nos discursos sofísticos, especialmente a interpretação da poesia para fins didáticos, atrai sobre si a repulsa platônica. Vemos também como Platão tenta superar a debilidade dos logoi, e sobretudo a dos escritos, através de sua própria poesia dialogada. A forma literária do diálogo devolve linguagem e conceito ao movimento originário da conversação. Com isso a palavra se protege de qualquer abuso dogmático. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 2.

O caráter originário da conversação se mostra também naquelas formas derivadas nas quais a correlação de pergunta e resposta fica oculta. A própria correspondência epistolar representa um interessante fenômeno de transição: é uma espécie de conversação por escrito, que, de algum modo, dilata o movimento do falar que passa ao largo do outro e de se pôr de acordo. A arte epistolar consiste em não deixar que a palavra escrita degenere em tratado, mas em dispô-la à contraposição do interlocutor. Mas também consiste, inversamente, em manter e satisfazer corretamente a medida de caráter definitivo que possui tudo quanto se diz por escrito. Pois a distância temporal que separa o envio de uma carta da recepção de sua resposta não é somente um fato externo, mas um fato que [375] cunha a forma de comunicação da correspondência de uma forma essencial, como uma forma especial da escrita. É significativo que o encurtamento dos prazos postais não somente não tenham conduzido a uma intensificação dessa forma de comunicação, mas que, pelo contrário, tenha favorecido a decadência da arte de escrever cartas. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 2.

Todo escrito é, como já vimos, uma espécie de fala alheada, que necessita da reconversão de seus signos à fala e ao sentido. Essa reconversão se coloca como o verdadeiro sentido hermenêutico, porque através da escrita ocorre ao sentido uma espécie de auto-alheamento. O sentido do que foi dito tem de voltar a ser enunciado unicamente com base na literalidade transmitida pelos signos escritos. Ao inverso do que ocorre com a palavra, a interpretação do escrito não dispõe de outra ajuda. Por isso é, aqui, tão importante a “arte” de escrever. É assombroso até que ponto a palavra falada se interpreta a si mesma, pelo modo de falar, o tom, a cadência etc, assim como pelas circunstâncias nas quais se fala. VERDADE E MÉTODO TERCEIRA PARTE 1.

A visão da imbricação interna de interpretação e compreensão permite também destruir a falsa romantização da imediatez que artistas e conhecedores cultivaram e cultivam sob o signo da estética do gênio. A interpretação não pretende pôr-se no lugar da obra interpretada. Não pretende, por exemplo, atrair para si a atenção pela força poética de sua própria expressão. Pelo contrário, lhe é inerente uma acidentalidade fundamental. E isso vale não somente para a palavra interpretadora, mas também para a interpretação reprodutiva. A palavra interpretadora tem sempre algo de acidental, na medida em que se encontra motivada pela pergunta hermenêutica, não somente no sentido da instância pedagógica a que se limitou a interpretação na época do Aufklärung, mas também porque a compreensão é sempre um verdadeiro acontecer. Do mesmo modo, a interpretação como reprodução é fundamentalmente acidental, isto é, o é não somente quando se executa, interpreta, traduz ou se lê algo para outros, exagerando com intenções didáticas. O fato de que, nesses casos, a reprodução seja interpretação num sentido especial e deítico, implicando um exagero demonstrativo e uma sobre-iluminação, não representa verdadeiramente uma diferença de princípio, mas meramente gradual, com respeito a qualquer outra interpretação reprodutiva. Por mais que seja o poema ou a própria composição a que ganha sua presença mímica em sua execução, qualquer execução está obrigada a pôr ênfase. Neste sentido, a diferença com respeito à enfatização demonstrativa da intenção didática já não é tão grande. Toda execução é interpretação. Em toda execução há sobre-iluminação. VERDADE E MÉTODO TERCEIRA PARTE 1.

Uma afirmação como essa não pode ser feita sem nos deixar perplexos. Pois com isso, a linguagem ganha tal proximidade com a razão, isto é, porém, com as coisas que nomeia, que se torna um verdadeiro enigma como pode haver diversas línguas, se todas elas parecem valer como igualmente próximas à razão e às coisas. Quem vive numa linguagem está penetrado com a insuperável adequação das palavras que ele usa para as coisas a que se refere., Parece impossível que outras palavras [406] de línguas estrangeiras estejam em condições de nomear as mesmas coisas de uma maneira igualmente adequada. A palavra certa parece poder ser sempre a própria e sempre somente uma única, tão certo como a coisa intencionada é sempre e cada vez uma. Já a tortura do traduzir repousa, em última análise, no fato de que as palavras originais parecem inseparáveis dos conteúdos a que se referem, de maneira que para tornar compreensível um texto é necessário circunscrevê-lo muitas vezes com amplos rodeios interpretativos, em vez de traduzi-lo. Quanto mais sensível se mostra nossa consciência histórica em suas reações, tanto mais intensamente parece sentir o intraduzível do que é estranho. Mas com isso a unidade íntima da palavra e da coisa se converte num escândalo hermenêutico. Como seria possível chegar simplesmente a compreender uma tradição estranha se estamos atados à língua que falamos? VERDADE E MÉTODO TERCEIRA PARTE 1.

A íntima unidade de palavra e coisa era, nos tempos primitivos, algo tão natural que o nome verdadeiro era experimentado como parte de seu portador e, quando não, ao representar o outro como substituto, era experimentado como ele mesmo. É significativo que, em grego, a expressão que significa “palavra”, onoma, signifique ao mesmo tempo nome, e em particular nome próprio, isto é, apelativo. A palavra é entendida imediatamente a partir do nome. O nome é o que é em virtude de que alguém se chama assim e atende por ele. Pertence ao seu portador. A correctura de um nome se confirma em que seu portador atende por ele. Parece, por conseqüência, que pertence ao próprio ser. VERDADE E MÉTODO TERCEIRA PARTE 2.

Pois bem, a filosofia grega se inicia precisamente com o conhecimento de que a palavra é somente nome, isto é, que não representa (vertreten) o verdadeiro ser. Esta é a erupção do perguntar filosófico dentro da pressuposição imediatamente indiscutida do nome. Fé na palavra e dúvidas a respeito da palavra são o que caracteriza a situação do problema sob o qual o pensamento da ilustração grega considerava a relação entre palavra e coisa. Através dela o modelo do nome se converte em antimodelo. O nome que se outorga e que pode ser mudado é o que motiva que se duvide da verdade da palavra. Pode-se falar da correctura dos nomes? Mas não se tem de falar da correctura das palavras, isto é, exigir a unidade de palavra e coisa? E não foi um dos pensadores mais profundos da Antigüidade, Heráclito, quem descobriu o sentido profundo do jogo de palavras? Este é o pano de fundo de que surge o Crátilo de Platão, o escrito básico do pensamento grego sobre a linguagem, que abrange a extensão dos problemas, de tal modo que a discussão grega posterior, que só nos é conhecida de maneira muito incompleta, quase não acrescenta nada de essencial. VERDADE E MÉTODO TERCEIRA PARTE 2.

Mas também o limite da teoria da semelhança é claro: não se pode criticar a linguagem por referência às coisas, no sentido de que as palavras não as reproduziram corretamente. A linguagem não está aí como um simples instrumento de que lançamos mão, ou que construímos para nós, com o fim de comunicar e fazer distinções com ele. Ambas as interpretações das palavras partem de sua existência e de sua manualidade e deixam estar as coisas como o que é conhecido de antemão. Justamente por isso, elas já de antemão começam demasiado tarde. Teríamos de nos perguntar se Platão, ao mostrar a insustentabilidade interna dessas duas posições extremas, procura na realidade questionar um pressuposto que lhes seja comum. [411] Na minha opinião, a intenção de Platão é muito clara, e creio que nunca se poderá acentuar isto suficientemente, face à interminável usurpação de Crátilo a favor dos problemas sistemáticos da filosofia da linguagem: com essa discussão das teorias lingüísticas contemporâneas, Platão pretende mostrar que na linguagem, na pretensão da correctura lingüística (orthotes ton onomaton), não se pode alcançar nenhuma verdade pautada na coisa (aletheia ton onton), e o ente tem de ser conhecido sem as palavras (aneu ton onomaton), puramente a partir dele mesmo (auto ex eauton) (Crátilo, 438a-439b). Com isso se desloca radicalmente o problema para um novo nível. A dialética, a que aponta esse contexto, pretende evidentemente confiar o pensamento a si mesmo e a seus verdadeiros objetos (Gegenstände), abrindoas “idéias”, de maneira tal que, com isso, se supere o poder das palavras (dynamis ton onomaton) e sua tecnificação demoníaca na arte da argumentação sofística. A superação do âmbito das palavras (onomata), pela dialética não quer dizer, obviamente, que exista realmente um conhecimento isento de palavras, mas, unicamente, que o que abre o acesso à verdade não é a palavra, mas pelo contrário: que a “adequação” da palavra só se poderia julgar a partir do conhecimento das coisas. VERDADE E MÉTODO TERCEIRA PARTE 2.

Seja qual for o caso, onde Platão supera o nível de discussão do Crátilo, apontando para a sua própria dialética, tampouco encontramos outra relação com a linguagem do que a que já se discutiu a esse nível: ferramenta, cópia e produção, e julgamento da mesma a partir do modelo original, a partir das próprias coisas. Portanto, mesmo quando não reconhece ao âmbito das palavras (onomata) nenhuma função cognitiva autônoma, e precisamente quando exige a superação desse âmbito, retém o horizonte de questionamento em que se coloca a questão da “correctura” dos nomes. Inclusive quando não quer saber de uma correctura natural destes (como no contexto da sétima carta), continua mantendo, como padrão, uma relação de semelhança (omoion): cópia e modelo original continuam sendo para ele o modelo metafísico pelo qual ele pensa toda a relação com o noético. A arte do artesão tão bem quando a do demiurgo divino, a arte do orador tão bem quanto a do dialético filosófico copia no seu médium o verdadeiro ser das idéias. Sempre há uma distância (apexei). ainda que o verdadeiro dialético consiga por si mesmo superar essa distância. O elemento do verdadeiro discurso continua sendo a palavra (onoma e rema), a mesma palavra na qual a verdade se oculta até o irreconhecível e mesmo até sua completa anulação. VERDADE E MÉTODO TERCEIRA PARTE 2.

[414] Não obstante isso, a argumentação socrática contra Crátilo, na medida em que se mantém fiel ao esquema do encontrar e impor nomes, contém uma série de perspectivas que não conseguem se impor. O fato de que a palavra seja um instrumento que se erige para o trato docente e diferenciador das coisas, portanto, que seja um ente que pode adequar-se e corresponder mais ou menos a seu próprio ser, fixa a questão da essência das palavras de uma maneira que não carece de problemas. O trato com as coisas de que se fala aqui é a revelação da coisa intencionada. A palavra é correta quando representa a coisa, isto é, quando é uma representação (mimesis). Não se trata, naturalmente, de uma representação imitadora, no sentido de uma cópia direta, de modo que se reproduzisse o fenômeno audível e visível, mas é o ser (ousia), aquilo que se honra com a designação de “ser” (einai), que tem de ser revelado pela palavra. Mas então, temos que indagar se os conceitos que são empregados na conversação, os conceitos da mimema, ou os da deloma, compreendidos como mimema são corretos para isso. VERDADE E MÉTODO TERCEIRA PARTE 2.

O fato de que a palavra, que nomeia um objeto, nomeie-o como aquele que ele é, porque ela própria possui o significado, pelo qual o intencionado é nomeado, não implica necessariamente uma relação de cópia. Na essência do mimema prejaz certamente o fato de que nela se represente também algo diferente do que ele mesmo representa. A mera imitação, o “ser como”, contém pois, sempre, a possibilidade de insertar a reflexão sobre a distância ontológica entre a imitação e seu modelo. A palavra, porém, nomeia a coisa de uma maneira muito mais íntima ou espiritual do que se houvesse aqui uma distância de similitude, um copiar mais ou menos correto. Crátilo tem toda a razão quando se pronuncia contra isso. Tem-na também quando diz que, na medida em que uma palavra é uma palavra, tem de ser “correta”, corretamente “existente”. Se não o é, se não tem significado, não difere em nada do som que produz o bronze ao ser golpeado. Não tem o menor sentido se falar, nesse caso, de falsidade. VERDADE E MÉTODO TERCEIRA PARTE 2.

Obviamente que também pode ocorrer que não se chame a alguém pelo seu nome correto, porque pode ser que o tenhamos confundido com outro, ou que não se empregue a “palavra correta” para uma coisa, porque esta não é conhecida. Mas então o que é incorreto não é a palavra, mas o seu emprego. Só aparentemente se refere à coisa para a qual é empregada. Na realidade ela é a palavra adequada para outra coisa diferente, e para esta, sim, é correta. Também aquele que aprende a língua estrangeira e procura fixar o vocabulário, isto é, o significado das palavras que lhe são desconhecidas, pressupõe sempre que essas possuam seu verdadeiro significado, que o dicionário extrai do uso lingüístico e transmite. Poderão ser confundidas essas significações, mas isso não significará senão [415] que as palavras “corretas” são mal empregadas. Por conseguinte, tem sentido falar de uma perfeição absoluta da palavra, pois que entre sua manifestação sensível e seu significado não existe, em absoluto, relação sensível, nem por conseqüência, distância. Tampouco Crátilo teria tido motivo para deixar-se submeter de novo ao jugo do esquema da cópia. Para a cópia, vale efetivamente quem sem ser mera duplicação do original, se parece com ele, e portanto, é outra coisa e remete para esse outro que representa, em virtude de sua similitude imperfeita. Entretanto, para a relação da palavra com o seu significado isso não tem, evidentemente, validez alguma. Nesse sentido, quando Sócrates reconhece que as palavras — diferentemente das pinturas (zoa) — não são somente corretas, mas também verdadeiras (alethe), é como se abrisse de repente uma verdade completamente oculta. Obviamente que a “verdade” da palavra não se apoia na correctura, em sua correta adequação à coisa, mas em sua perfeita espiritualidade, isto é, torna-se patente o sentido da palavra no seu som. Nesse sentido, todas as palavras “são” verdadeiras, isto é, seu ser se abre em seu significado, enquanto que as cópias são apenas mais ou menos parecidas, se se mede segundo o aspecto da coisa, são apenas mais ou menos corretas. VERDADE E MÉTODO TERCEIRA PARTE 2.

Todavia, em todo esse contexto, se desconhece que a verdade das coisas encontra-se posta na fala, o que significa, em última análise, está posta no intencionar (Meinen) uma idéia (Meinung) unitária sobre as coisas e não nas palavras, individualmente, nem sequer no acervo léxico completo de uma língua. Esse desconhecimento é que permite a Sócrates refutar os argumentos muito acertados de Crátilo, sobre a verdade da palavra, isto é, sua capacidade de significar. Face a ele, Sócrates lança mão do uso das palavras, isto significa, porém, da fala, do logos, com sua capacidade de ser verdadeiro ou falso. O nome ou a palavra parecem ser verdadeiros ou falsos na medida em que são usados verdadeiramente ou falsamente, isto é, na medida em que se subordinam (zuordnen) correta ou incorretamente ao ente. Entretanto, essa subordinação já não é mais a de palavra, mas já é logos, e pode encontrar sua expressão adequada nesse logos. Por exemplo, chamar a alguém de “Sócrates” quer dizer que esse homem se chama Sócrates. VERDADE E MÉTODO TERCEIRA PARTE 2.

Essa subordinação, que é logos, é pois, muito mais que a mera correspondência de palavras e coisas, tal como, em última análise, estaria correspondendo à teoria eleática do ser e como se pressupõe na teoria da cópia. Precisamente porque a verdade que o logos contém não é a da mera recepção (noein), não é um mero deixar aparecer o ser, mas coloca o ser sempre numa determinada perspectiva, reconhecendo e atribuindo-lhe algo, o portador da verdade, e, conseqüentemente também de seu contrário, não é a palavra (onoma), mas o logos. Daí segue-se também necessariamente que, a essa estrutura de relações, na qual o logos articula a coisa e precisamente com isso interpreta, lhe é inteiramente secundário seu caráter enunciativo, e, por conseguinte, sua vinculação à linguagem. Compreende-se que o verdadeiro paradigma do noético não é a palavra, mas o número, cuja designação é obviamente pura convenção e cuja “exatidão” consiste em que cada número se define por sua posição na série e é, por conseqüência, uma pura construção da inteligibilidade, um ens rationes, não no sentido de uma validez ôntica apequenada, mas no de sua perfeita racionalidade. Esse é o verdadeiro resultado a que faz referência o Crátilo, e cujas conseqüências são tão amplas que determinam, na realidade, todo o pensamento ulterior sobre a linguagem. VERDADE E MÉTODO TERCEIRA PARTE 2.

Se o âmbito do logos representa o do noético, na pluralidade de suas subordinações, a palavra se converte, tal como o número, em mero signo de um ser bem definido e, por conseqüência, conhecido de antemão. Com isso, o questionamento se inverte a partir de seu princípio. Agora já não se pergunta pelo ser ou pelo caráter medial das palavras partindo da coisa, mas sim, partindo do médio da palavra, pergunta-se pelo que e como medeia àquele que a usa. A essência do signo é que tem seu ser na função de seu emprego, e isto de tal modo que sua [417] aptidão consiste unicamente em ser um indicador. Por isso, nessa sua função, tem de se destacar do contexto em que se encontra e em que terá de ser tomado como signo, e justo com isso suspender o seu ser-coisa e embutir-se (desaparecer) no seu significado: é a abstração do próprio indicar. VERDADE E MÉTODO TERCEIRA PARTE 2.

[418] O Crátilo desfaz fundamentalmente a credibilidade da pergunta, justificada, que quer saber se a palavra não é nada mais que um “signo puro” ou se contém algo de “imagem”. Na medida em que leva ao absurdo a tese de que a palavra seja uma cópia, a única possibilidade que parece restar é a de que ela seja um signo. Esse é o resultado da discussão negativa do Crátilo, ainda que não apareça com uma diferenciação acentuada e seja selado através da referenciação do conhecimento à esfera inteligível, de maneira que a partir desse momento, em toda a reflexão sobre a linguagem, o conceito da imagem (eikon), é substituído pelo conceito do signo (semeion ou semainon). Isso não é somente uma alteração terminológica, mas expressa uma decisão em torno do pensamento do que é a linguagem, decisão que fez época. O fato de que o verdadeiro ser das coisas deva ser investigado “sem os nomes” quer dizer que no ser próprio das palavras como tais não existe acesso algum à verdade, por mais que qualquer buscar, perguntar, responder, ensinar, e distinguir esteja obrigado a realizar-se com os meios lingüísticos. Com isso fica dito também que o pensar se destaca de tal modo do ser próprio das palavras — tomando-as como simples signos, através dos quais traz à vista o designado, a idéia, a coisa — , que a palavra fica numa relação inteiramente secundária com a coisa. É um simples instrumento da comunicação, que extrai (ekferein) e apresenta (logos proforikos) o intencionado no âmbito da voz. O fato de que um sistema ideal de signos, cujo sentido único fosse a submissão unívoca de todos os signos, tem como conseqüência que ele faz aparecer a força das palavras (dynamis ton onomaton), o lastro da variação do contingente inscrito nas línguas históricas concretas, como mera distorção de sua utilidade. O que aqui se anuncia é o ideal de uma characteristica universalis. VERDADE E MÉTODO TERCEIRA PARTE 2.

Na realidade, esse ideal torna patente que a linguagem é algo diverso do que um mero sistema de signos para designar o conjunto do que é objetivo. A palavra não é somente signo. Em algum sentido difícil de precisar é também algo assim como uma cópia. Basta ponderar a possibilidade extrema e contraria, de uma linguagem puramente artificial, para reconhecer nessa teoria arcaica da linguagem, apesar de tudo, uma certa porção de razão. De um modo enigmático, a palavra mostra uma certa vinculação com o “copiado”, uma pertença ao ser do copiado. E isso deve ser pensado de uma maneira fundamental, não somente assim que na formação da linguagem a relação mimética tenha uma certa participação. Pois isso é indiscutível. Já Platão tinha pensado claramente nesse sentido mediador, e a investigação lingüística continua fazendo-o agora, quando atribui uma certa função à onomatopéia na história da palavra. [421] Nessa maneira de pensar, imaginamos a linguagem inteiramente à margem do ser pensado, como um instrumentarium da subjetividade. Isso quer dizer que se segue uma direção abstrativa, em cujo termo se encontra a construção racional de uma linguagem artificial. VERDADE E MÉTODO TERCEIRA PARTE 2.

Minha impressão é que com isso estamos nos movendo em uma direção que nos afasta da essência da linguagem. A lingüisticidade é tão inerente ao pensar das coisas, que se torna uma abstração pensar o sistema das verdades como um sistema prévio de possibilidades de ser, a que deveriam ser subordinados signos que um sujeito emprega quando lança mão deles. A palavra lingüística não é um signo de que se lance mão, mas tampouco é um signo que alguém faça ou dê a outro; não é uma coisa ôntica que se recebe e carrega com a idealidade do significar, com o fim de tornar visível, deste modo, outro ente. Isso é falso por ambos os lados. Antes, a idealidade do significado está na própria palavra; ela já é sempre significado. No entanto, isso não quer dizer, de outra parte, que a palavra preceda a toda experiência dos entes e se acrescente, exteriormente, à experiência já feita, submetendo-a a si. A experiência não é principialmente desprovida de palavras e secundariamente tornada objeto de reflexão, em virtude da designação, por exemplo, aos moldes de sua subsunção sob a generalidade da palavra. Antes, pertence à própria experiência o fato de ela buscar e encontrar as palavras que a expressem. Buscamos a palavra adequada, isto é, a palavra que realmente pertença à coisa, de maneira que ela própria venha à fala. Ainda que afirmemos que isso não implica uma simples relação de cópia, continua sendo verdade que a palavra pertence à coisa, tal que não é submetida à coisa, posteriormente, como signo. A análise aristotélica que apresentamos acima, sobre a formação dos conceitos por indução, nos oferece um testemunho indireto disso. É verdade que o próprio Aristóteles não coloca expressamente a formação dos conceitos em relação com o problema da formação das palavras e o aprendizado da linguagem, mas Temístio, em sua paráfrase, não tem dificuldade em exemplificá-la com a aprendizagem da linguagem pelas crianças. Tanto assim, está a linguagem no logos. VERDADE E MÉTODO TERCEIRA PARTE 2.

Vale a pena que nos detenhamos agora nesse ponto nuclear do pensamento cristão, porque também para ele a encarnação está relacionada, de forma muito estreita, com o problema da palavra. Já desde os padres da Igreja, e obviamente [423] na elaboração sistemática do augustinismo da alta escolástica, a interpretação do mistério da trindade — a tarefa mais importante que se coloca ao pensamento medieval cristão — apóia-se na relação humana de falar e pensar. Com isso a dogmática segue sobretudo o prólogo do Evangelho de João, e por mais que os meios conceituais, com os quais ela procura resolver esse problema teológico, sejam de cunho grego, o pensamento filosófico ganha através deles uma dimensão que estava vedada ao pensamento grego. Quando o verbo se faz carne, e só nesta encarnação se consuma a realidade do espírito, o logos se liberta com isso de sua espiritualidade, que significa simultaneamente sua potencialidade cósmica. A singularidade do acontecimento da redenção leva à introdução da essência histórica no pensamento ocidental e permite também que o fenômeno da linguagem emerja de sua imersão na idealidade do sentido e se ofereça à reflexão filosófica. Pois, diferentemente do logos grego, a palavra é um puro acontecer (verbum proprie dicitur personaliter tantum). VERDADE E MÉTODO TERCEIRA PARTE 2.

Já a maneira como a especulação teológica sobre o mistério da encarnação se conecta, na patrística, ao pensamento helenístico, é muito significativo para a nova dimensão a que aponta. De início procurou-se fazer uso da oposição conceitual estoica entre logos exterior e interior (logos endiathetos – proforikos). Essa distinção deveria destacar na origem o princípio estoico do mundo, que era o logos, da exterioridade do puro falar por imitação. Para a fé cristã na revelação, é a direção inversa a que adquire logo um significado positivo. A analogia entre palavra interior e exterior, o fato de que a palavra se faça som na vox, obtém agora um valor paradigmático. VERDADE E MÉTODO TERCEIRA PARTE 2.

Uma vez, acontece a criação pela palavra de Deus. Já os primeiros padres da Igreja falam do milagre da linguagem, com o fim de tornar pensável aquela idéia tão pouco grega, que é a [424] criação. No próprio prólogo de João vem descrita, a partir da palavra, a verdadeira ação salvadora, o envio do Filho, o mistério da encarnação. A exegese interpreta o fato da palavra tornar-se som, um milagre igual ao fato de Deus tornar-se carne. O “tornar-se”, de que se trata em ambos os casos, não é um tornar-se, no qual algo se converte noutra coisa diferente. Não se trata nem de uma separação de um com relação ao outro (kat’ apokopen), nem de uma diminuição da palavra interna por sua saída para a exterioridade, nem sequer um converter-se noutra coisa, numa forma tal que a palavra interna fique consumida. Já desde as aproximações mais antigas ao pensamento grego, reconhece-se essa nova direção para a unidade misteriosa de Pai e Filho, de Espírito e palavra. E quando, por fim, se rechaça na dogmática cristã — com a repulsa ao subordinacionismo — a relação direta com a exteriorização, o fato de que a palavra se torne som, essa mesma decisão torna necessário voltar a iluminar filosoficamente o mistério da linguagem e sua relação com o pensamento. O maior milagre da linguagem não se estriba em que a palavra se faça carne e apareça em seu exterior, mas no fato de que o que emerge e se manifesta em sua exteriorização já é sempre palavra. O fato de que a palavra está em Deus, e quiçá, desde toda a eternidade, é a doutrina triunfante da Igreja que acompanha a repulsa ao subordinacionismo, e que permite que o problema da linguagem entre em cheio na interioridade do pensante. VERDADE E MÉTODO TERCEIRA PARTE 2.

Já Agostinho desvaloriza expressamente a palavra externa e, com ela, todo o problema da multiplicidade das línguas, se bem que, no entanto, trata dele. A palavra externa, assim como a que somente é reproduzida interiormente, está vinculada a uma determinada língua (língua). O fato de que o verbo se diga em cada língua de outra maneira, somente significa que não se lhe manifesta em seu verdadeiro ser à língua humana. Com um desprezo inteiramente platônico pela manifestação sensível, diz Agostinho: non dicitur, sicut est, sed sicut poíest videri audirive per corpus. A “verdadeira” palavra, o verbum cordis, é inteiramente independente dessa manifestação. Não é nem prolativum nem cogitativum in similitudine soni. Essa palavra interna é, pois, o espelho e a imagem da palavra divina. Quando Agostinho e a escolástica tratam o problema do verbo para ganhar meios conceituais para o mistério da trindade, seu tema é exclusivamente essa palavra interior, a palavra do coração e sua relação com a intelligentia. VERDADE E MÉTODO TERCEIRA PARTE 2.

O que vem à luz com isso é, pois, um aspecto bem [425] determinado na essência da linguagem. O mistério da trindade encontra seu reflexo no milagre da linguagem, na medida em que a palavra, que é verdadeira, porque diz como é a coisa, não é nem quer ser nada por si mesma: nihil de sua habens, sed totum de illa scientia de qua nascitur. Tem seu ser na sua função de tornar aberto. Mas para o mistério da trindade vale exatamente isso mesmo. Também aqui não importa a manifestação terrena do redentor como tal, mas antes, sua divindade plena, sua igualdade essencial com Deus. A tarefa teológica consiste em pensar essa igualdade essencial com Deus. A tarefa teológica consiste em pensar essa igualdade essencial, apesar de toda a existência pessoal autônoma de Cristo. Para esse efeito, oferece-se a relação humana, que se torna visível na palavra do espírito, o verbum intellectus. Isso é mais do que uma simples imagem, já que a relação humana de pensamento e linguagem se corresponde, apesar de sua imperfeição, com a relação divina da trindade. A palavra interior do espírito é tão essencialmente igual ao pensamento como o é Deus-Filho a Deus-Pai. VERDADE E MÉTODO TERCEIRA PARTE 2.

Claro que então se coloca a questão de saber, se nesse ponto não se está explicando o incompreensível com o incompreensível. Que palavra pode ser essa que se mantém como conversação interior do pensamento e não ganha uma forma sonora: Será que pode existir tal coisa? Todo nosso pensamento não se produz sempre na trilha de uma determinada língua, e não nos é claro que, se quisermos realmente falar uma língua, temos que pensar nela? Por mais que recordemos a liberdade que a nossa razão guarda face à vinculação lingüística de nosso pensamento, quer inventando e usando linguagens de signos artificiais, quer aprendendo a traduzir uma língua para outra — um começo que pressupõe ao mesmo tempo um elevar-se até o sentido intencionado, acima da vinculação lingüística — mesmo assim, qualquer dessas maneiras de elevar-se é, por sua vez, como sabemos, lingüística. A “linguagem da razão” não é uma linguagem para si. E que sentido tem então falar, face ao caráter insuperável da nossa vinculação lingüística, de uma “palavra interior” que se falaria na linguagem pura da razão? Onde se mostra a palavra da razão (se reproduzirmos aqui com “razão”, o intellectus), como uma verdadeira “palavra”, se não há de ser uma palavra que soe realmente, nem sequer o phantasma de uma dessas, mas o designado por ela com um símbolo, por conseguinte, o próprio intencionado e pensado? VERDADE E MÉTODO TERCEIRA PARTE 2.

Não obstante, mesmo em Tomás não coincidem por completo os conceitos de logos e verbum. É verdade que a palavra não é o acontecimento do pronunciador, essa entrega inapelá-vel do próprio pensamento ao outro. Porém, o caráter ontológico da palavra é também um acontecer. A palavra interior fica referida à possibilidade de se exteriorizar. O conteúdo da coisa, tal como é concebido pelo intelecto, está ordenado para a sua conversão em som (similitudo rei concepta in intellectu et ordinata ad manifestationem vel ad se vel ad alterum). Por conseqüência, a palavra interior certamente não está referida a uma língua determinada, não são palavras que têm o caráter de pairar à nossa frente, que nos chegam a partir da memória, mas é a conjuntura (Sachverhalt) pensada até o final (forma excogitata). E na medida em que se trata de um pensar até o final, é forçoso reconhecer também nele um momento processual: comporta-se per modo egredientes. Claro que não é manifestação, mas pensar; porém o que se alcança nesse dizer-se-a-si-mesmo é a perfeição do pensar. A palavra interior, na medida em que expressa o pensar, reproduz ao mesmo tempo a finitude da nossa compreensão discursiva. Como a nossa compreensão não está em condições para abarcar num só golpe do pensar tudo o que sabe, não tem outro remédio que trazer para fora, a partir de si mesma, em cada caso, o que pensa, pondo-o diante de si, numa espécie de própria declaração interna. Nesse sentido todo pensar é um dizer-se. VERDADE E MÉTODO TERCEIRA PARTE 2.

Com esse conceito neoplatônico, Tomás procura descrever o caráter processual da palavra interior, tão bem como o mistério da trindade. Desse modo, convalida-se algo que não estava contido na filosofia platônica do logos. O conceito da emanação contém, no neoplatonismo, muito mais do que o que seria o fenômeno físico do fluir como processo de movimento. O que se introduz é, sobretudo, a imagem do manancial. No processo da emanação, aquilo de que algo emana, o um, não é nem despojado nem empequeñecido, pelo fato da emanação. Isso vale também para o nascimento do Filho a partir do Pai, o qual não consome com isso nada de si mesmo, mas assume algo de novo em si. Isso vale também para o surgimento (Hervorgehen) espiritual que se realiza no processo do pensar, do dizer-se. Este surgimento é ao mesmo tempo um perfeito permanecer em si. Se a relação divina de palavra e intelecto pode ser descrita de maneira que a palavra tenha sua origem no intelecto, mas não parcialmente e sim por inteiro (totaliter), do mesmo modo vale para nós que aqui uma palavra surge totaliter de outra, o que significa, porém, que tem sua origem no espírito, tal qual a conseqüência da conclusão, a partir das premissas (ut conclusio ex principiis). O processo e surgimento do pensar não é, pois, um processo de transformação (motus), não é uma transição da potência ao ato, mas um surgir ut actus ex actu: a palavra não se forma quando se vê concluído o conhecimento, falando em termos escolásticos, uma vez que a informação do intelecto é encerrada pela species, mas é a própria realização do conhecimento. Nessa medida a palavra é simultânea com essa formação (formatio) do intelecto. VERDADE E MÉTODO TERCEIRA PARTE 2.

Entretanto, a nós interessa menos essa coincidência, do que as diferenças entre a palavra divina e humana. Teologicamente, isso é também completamente correto. O mistério da trindade, embora iluminado pela analogia com a palavra interior, permanece, em última análise, incompreensível para o pensamento humano. Se na palavra divina se expressa o todo do espírito divino, o momento processual dessa palavra significa, então, algo a respeito do que, no fundo, toda analogia nos deixa na estaca zero. Na medida em que, conhecendo a si mesmo, o espírito divino conhece ao mesmo tempo todo ente, a palavra de Deus é a palavra do espírito que em uma só contemplação (intuitus) contempla e cria tudo. O surgimento desaparece na atualidade da onisciência divina. Tampouco a criação seria um processo real, mas interpretaria tão-somente a ordenação da estrutura do universo no esquema temporal. Se quisermos compreender de uma maneira mais exata o momento processual da palavra, que para nosso questionamento do nexo de lingüisticidade e compreensão é o mais importante, não poderemos permanecer na coincidência com o problema teológico, mas teremos que nos deter na imperfeição do espírito humano e na sua diferença para com o divino. Também aqui podemos acompanhar Tomás quando destaca três diferenças. VERDADE E MÉTODO TERCEIRA PARTE 2.

1. Em primeiro lugar vale dizer que a palavra humana é potencial antes de atualizar-se. É formável, mas não formada. O processo do pensar se inicia precisamente porque algo nos vem à mente a partir da memória. Também isso é uma [429] emanação, não implica que a memória seja despojada ou perca algo. No entanto, o que nos vem assim à mente não é ainda completo, nem está pensado até o final. Ao contrário, é agora que começa o verdadeiro movimento do pensar, no que o espírito se apressa de um ao outro, revoluteia daqui para lá, sopesa um e o outro e busca assim a expressão plena de suas idéias pelo caminho da investigação (inquisitio) e reflexão (cogitatio). A palavra plena forma-se, pois, primeiro no pensamento e, nessa medida, forma-se como uma ferramenta, mas quando emerge na plena perfeição do pensamento, então já não se produz com ela nada novo. Antes, é a própria coisa que então está presente nela; por conseqüência, a palavra não é propriamente uma ferramenta. Tomás encontrou para isso uma imagem esplêndida: a palavra é como um espelho, em que se vê a coisa. Mas o que há de especial nesse espelho é que em nenhum momento vai mais além da imagem da coisa. Nele não se reflete nada mais que essa coisa única, de maneira que no conjunto de si mesmo não faz senão reproduzir sua imagem (similitudo). O grandioso dessa imagem é que a palavra é concebida, aqui, como um reflexo perfeito da coisa, como expressão da coisa, e fica para trás o caminho do pensamento a que, na realidade, deve toda sua existência. No espírito divino não se dá nada análogo. VERDADE E MÉTODO TERCEIRA PARTE 2.

2. Diferentemente da palavra divina, a humana é essencialmente imperfeita. Nenhuma palavra humana pode expressar nosso espírito de uma maneira perfeita. Todavia, e como já o indicou a imagem do espelho, isso não é a imperfeição da palavra como tal. A palavra reproduz de fato e por completo aquilo a que o espírito intenciona. Antes, a imperfeição do espírito humano consiste em que não possui jamais uma autopresença completa, mas que está disperso, tendo em mente uma vez isso, outra, aquilo. E dessa sua imperfeição essencial segue-se que a palavra humana não é, como a palavra divina, uma só e única, pois tem que ser, por necessidade, muitas palavras diferentes. A multiplicidade das palavras não significa, pois, de modo algum, que em cada palavra exista alguma deficiência que pudesse ser superada, na medida em que não expressa de maneira perfeita aquilo a que o espírito intenciona. Ao contrário, porque nosso intelecto é imperfeito, isto é, não é inteiramente presente a si mesmo naquilo que sabe, tem necessidade de muitas palavras. Não sabe realmente o que sabe. VERDADE E MÉTODO TERCEIRA PARTE 2.

3. A terceira diferença tem uma relação estreita com isso. Enquanto Deus expressa na palavra a sua natureza e substância, de uma maneira perfeita e numa pura atualidade, cada idéia que pensamos e cada palavra em que se cumpre esse pensar é um mero acidente do espírito. É verdade que a palavra do pensamento humano se dirige para a coisa, mas não pode contê-la em si como um todo. Desse modo, o pensamento faz o caminho rumo a concepções sempre novas, e, no fundo, não é perfectível de todo em nenhuma delas. Sua imperfectibilidade tem como reverso o que constitui positivamente a verdadeira infinitude do espírito, que num processo espiritual sempre renovado vai mais além de si mesmo e encontra nisso a liberdade para projetos sempre novos. VERDADE E MÉTODO TERCEIRA PARTE 2.

Resumindo agora o que nos pode ser de utilidade na teologia do verbo, podemos reter, em primeiro lugar, um ponto de vista que mal se tornou expresso na análise precedente, e que tampouco chega a sê-lo apenas no pensamento escolástico, não obstante ser de uma importância decisiva para o fenômeno hermenêutico que a nós interessa. A unidade interna de pensar e dizer-se, que corresponde ao mistério trinitário da encarnação, encerra em si que a palavra interior do espírito não se forma por um ato reflexivo. Aquele que pensa algo, isto é, diz-se algo, refere-se com isso ao que pensa, à coisa. Quando forma a palavra não está voltado, pois, para o seu próprio pensar. A palavra é realmente o produto do trabalho de seu espírito. Este a forma em si, na medida em que produz o pensamento, e o pensa até o final. Mas, à diferença de outros produtos, a palavra permanece inteiramente no espiritual. Este é o motivo da aparência de que se trate de um comportamento voltado para si mesmo, e de que o dizer-se seja uma reflexão. Na realidade não o é. Mas nessa estrutura do pensamento tem seu fundamento o fato de o pensar poder voltar-se reflexivamente para si mesmo e tornar-se presente. A interioridade da palavra, que perfaz a unidade íntima de pensar e falar, é a causa de que se ignore tão facilmente o caráter direto e irreflexivo da “palavra”. Aquele que pensa não passa de um a outro, do pensar ao dizer-se. A palavra não surge num âmbito do espírito, livre, ainda, do pensamento (in aliquo sui nudo). Daqui procede a aparência de que a formação da palavra tem sua origem num voltar-se-para-si-mesmo do espírito. Na realidade, na formação da palavra não opera reflexão alguma. A palavra não expressa o espírito, mas a coisa a que se refere. O ponto de partida da formação da palavra é a própria conjuntura, (a species) que enche o espírito. O pensamento que busca sua expressão não está referido ao espírito mas à coisa. Por isso a palavra não é expressão do espírito, mas se dirige à similitudo rei. A conjuntura pensada (a species) e a palavra são as que estão mais intimamente unidas. Sua unidade é tão estreita, que a palavra não ocupa um lugar no espírito, como um segundo elemento junto à species, mas é aquilo em que se leva a termo o conhecimento, onde a species é pensada por inteiro. Tomás alude a que, no conhecimento, a palavra é como a luz, na qual somente se faz visível a cor. VERDADE E MÉTODO TERCEIRA PARTE 2.

Não obstante, há uma segunda coisa que pode nos ensinar esse pensamento escolástico. A diferença entre a unidade da palavra divina e a multiplicidade das palavras humanas não esgota a questão. Ao contrário, unidade e multiplicidade mantêm entre si uma relação fundamentalmente dialética. A dialética dessa relação domina por inteiro a essência da palavra. Tampouco convém manter esse conceito da multiplicidade completamente afastado da palavra divina. É verdade que a palavra divina é realmente uma só palavra, que veio ao mundo na forma do redentor, mas, na medida em que continua sendo um acontecer — o que é verdade, apesar de todo o rechaçar da subordinação, como já vimos — , continua existindo uma relação essencial entre a unidade da palavra divina e sua manifestação na Igreja. A proclamação da salvação, o conteúdo da mensagem cristã, é, por sua vez, um acontecer de natureza própria no sacramento e na prédica, e tão-somente expressa aquilo que ocorreu no ato redentor de Cristo. Nessa medida, continua sendo uma única palavra, a que sempre de novo se proclama na prédica. É evidente que no seu caráter de mensagem, existe já uma alusão à multiplicidade de sua proclamação. O sentido da palavra não pode separar-se do acontecer dessa proclamação. O caráter de acontecer faz parte, antes, do próprio sentido. É como numa maldição, que evidentemente não se pode separar do fato de que é dita por alguém e contra alguém. O que se pode compreender nela não é, em caso algum, um sentido lógico do enunciado, passível de ser abstraído, mas a maldição que nela tem lugar. O mesmo ocorre com a unidade e a multiplicidade da palavra que a Igreja anuncia. A morte na cruz e a ressurreição de Cristo são o conteúdo da mensagem da salvação que é pregada em todo sermão. O Cristo ressuscitado e o Cristo da prédica são um e o mesmo. A moderna teologia protestante desenvolveu com particular intensidade o caráter escatológico da fé que repousa nessa relação dialética. VERDADE E MÉTODO TERCEIRA PARTE 2.

Ao inverso disso, na palavra humana mostra-se a relação dialética da multiplicidade das palavras com a unidade da palavra, sob um nova luz. Já Platão havia reconhecido que a palavra humana possui um caráter de discurso, isto é, expressa a unidade de um pensamento (Meinung) através da integração de uma multiplicidade de palavras, e tinha desenvolvido, em forma dialética, essa estrutura do logos. Mais tarde, Aristóteles demonstrou as estruturas lógicas que constituem a frase, e correpondentemente o juízo, ou o nexo de frases, ou correspondentemente a conclusão. Mas tampouco isso esgota a questão. A unidade da palavra, que se auto-expõe na multiplicidade das palavras, permite compreender também aquilo que não se esgota na estrutura essencial da lógica e que instaura o caráter de acontecer da linguagem: o processo da formação dos conceitos. Quando o pensamento escolástico desenvolve a doutrina do verbo, não se limita a pensar a formação do conceito como cópia de ordenação da essência. VERDADE E MÉTODO TERCEIRA PARTE 2.

Naturalmente, essas idéias somente se tornam possíveis quando se altera, de algum modo, a relação natural, isto é, a íntima unidade de falar e pensar. Podemos, nesse ponto, mencionar a correspondência entre o pensamento estóico e a elaboração gramático-sintática da língua latina, como o mostrou Lohmann. E indiscutível que o incipiente bilingüismo da oikumene helenística desempenhou um papel estimulante para o pensamento sobre a linguagem. Mas é possível que as origens desse desenvolvimento se remontem muito mais atrás, e que o que desencadeia esse processo seja na realidade a gênese da ciência. Em tal caso, os começos do mesmo devem alcançar os tempos mais remotos da ciência grega. Fala a favor dessa hipótese a formação dos conceitos científicos nos âmbitos da música, da matemática e da física, pois neles se mede um campo de objetividades racionais, cuja geração construtiva evoca designações correspondentes na vida, a que já não se pode chamar de palavras no sentido autêntico. Fundamentalmente pode-se dizer que cada vez que a palavra assume a mera função de signo, o nexo originário de falar e pensar, a que se orienta nosso interesse, se transforma numa relação instrumental. Essa relação transformada de palavra e signo subjaz à formação dos conceitos da ciência em seu conjunto, e para nós se tornou tão lógica e natural que temos que realizar uma intensa rememoração artificial para termos a idéia de que junto ao ideal científico das designações unívocas a vida da própria linguagem segue seu curso sem se alterar. VERDADE E MÉTODO TERCEIRA PARTE 2.

É evidente que essa rememoração não nos faz falta, quando se observa a história da filosofia. Já vimos como no pensamento medieval a relevância teológica do problema lingüístico aponta, uma ou outra vez, para a unidade de pensar e falar e traz assim ao primeiro plano um momento que a filosofia grega clássica todavia não tinha pensado assim. O fato de que a palavra seja um processo, em que chega à sua plena expressão a unidade do intencionado — como é pensado na especulação sobre o verbo — é, face à dialética platônica do uno e do múltiplo, algo verdadeiramente novo. Para Platão o logos se movia, ele mesmo, no interior dessa dialética, e não era nada além do que o padecer a dialética das idéias. Nisso não há um verdadeiro “problema da interpretação”, na medida em que os meios da mesma, a palavra e o discurso, estão sendo constantemente superados pelo espírito que pensa. Diferentemente disso, encontramos que na especulação trinitaria o processo das pessoas divinas encerra em si o questionamento neoplatônico sobre o desenvolvimento, isto é, o surgir a partir do uno, com o que se faz justiça, pela primeira vez, ao caráter processual da palavra. Não obstante, o problema da linguagem somente poderia irromper com toda a sua força, quando a mediação escolástica de pensamento cristão e filosofia aristotélica se completasse com um novo momento, que daria uma mudança de rumo positiva à distinção entre o pensamento divino e humano, mudança que alcançaria na idade moderna a maior significação. É o comum do criacional. E, na minha opinião, é esse o conceito que caracteriza mais adequadamente a posição de Nicolau de Cusa, que nos últimos tempos está sendo estudada tão intensamente. VERDADE E MÉTODO TERCEIRA PARTE 2.

É claro que a analogia entre os dois modos de ser criador tem seus limites, que correspondem às diferenças, antes acentuadas, entre palavra divina e humana. A palavra divina cria o mundo, mas não o faz numa seqüência temporal de pensamentos criadores e de dias da criação. O espírito humano, pelo contrário, somente possui a totalidade de seus pensamentos na seqüencialidade temporal. É verdade que não se trata de uma relação puramente temporal, como já vimos a propósito de Tomás de Aquino. Nicolau de Cusa também ressalta essa medida. E como a série dos números: sua geração não é na realidade um acontecer temporal, mas um movimento da razão. Nicolau de Cusa considera que é esse mesmo movimento da razão que opera, quando se extrai do sensorial a formação dos gêneros e espécies, tal como ocorrem nas palavras, e se desprendem em conceitos e palavras individuais. Também eles são entia rationes [439]. Por mais platônico-neoplatônico que soe esse discurso sobre o “desenvolvimento”, Nicolau de Cusa supera, na realidade, o esquematismo emanantista da doutrina neoplatônica da explicatio em pontos decisivos; pois, contra ela, desenvolve a doutrina cristã do verbo. A palavra não é, para ele, um ser distinto do espírito, nem uma manifestação minorada ou debilitada do mesmo. Para o filósofo cristão é o conhecimento disso o que constitui sua superioridade sobre os platônicos. VERDADE E MÉTODO TERCEIRA PARTE 2.

O fato de que o latim medieval não dedique sua atenção a esse aspecto do problema da linguagem, apesar do significado que se empresta na Bíblia à confusão das línguas humanas, pode ser explicado sobretudo como conseqüência do domínio natural e evidente do latim erudito, assim como da persistência da doutrina grega do logos. Somente no Renascimento, quando os leigos ganham importância e as línguas nacionais abrem passo na formação erudita, chegam a desenvolver-se idéias fecundas sobre a relação entre aquelas e a palavra interior, ou os vocábulos “naturais”. Seja como for, temos de nos precaver de pressupor nisso diretamente o questionamento da moderna filosofia da linguagem e seu conceito instrumental desta. O significado da primeira erupção do problema lingüístico no Renascimento se estriba, antes, em que nesse momento, continua sendo válida, de maneira impensada e normal, toda a herança greco-cristã. Isso torna-se muito claro em Nicolau de Cusa. Os conceitos que se subordinam às palavras mantêm, como desenvolvimento da unidade do espírito, uma referência com a palavra natural (vocabulum naturale), cujo reflexo aparece em todos eles (relucet), por mais que cada denominação individual seja arbitrária (impositio nominis fit ad beneplacitum). Podemos nos perguntar que classe de relação é esta e em que consiste essa palavra natural. No entanto, a idéia de que cada palavra de uma língua possui, em última análise, uma coincidência com as de outras línguas, na medida em que todas as línguas são desenvolvimentos da unidade única do espírito, tem um sentido metodologicamente correto. VERDADE E MÉTODO TERCEIRA PARTE 2.

Essa teoria da linguagem pressupõe que tampouco as coisas (forma), a que se atribuem os nomes, pertencem a uma ordenação previamente dada de imagens originárias a que o conhecimento humano se aproximaria cada vez mais, mas que essa ordenação se forma na realidade a partir do que está dado nas coisas e por meio de distinções e reuniões. Nesse sentido, introduz-se no pensamento de Nicolau de Cusa uma mudança de rumo nominalista. Se os gêneros e espécies (genera et species) são, por sua vez, seres inteligíveis (entia rationes), então se pode compreender que as palavras possam concordar com a contemplação pautada na coisa a que dão expressão, ainda [442] que em línguas distintas se empreguem palavras distintas. Em tal caso não se trata somente de variações da expressão, mas de variações da contemplação pautada na coisa e da conceituação subseqüente, e conseqüentemente de uma imprecisão essencial que não exclui que em todas elas esteja um reflexo da própria coisa (forma). Essa imprecisão essencial somente pode ser superada, evidentemente, se o espírito se eleva ao infinito. No infinito já não há, então, mais que uma única coisa (forma) e uma única palavra (vocabulum), a palavra indizível de Deus (verbum Dei), que se reflete em tudo (relucet). VERDADE E MÉTODO TERCEIRA PARTE 2.

Tal é a razão pela qual, no acontecer lingüístico, tem seu lugar não somente o que se mantém, mas também e justamente a mudança das coisas. Por exemplo, na decadência das palavras podemos observar a mudança dos costumes e dos valores. A palavra “virtude”, por exemplo, quase só se mantém viva no nosso mundo lingüístico, no sentido irônico. E se, em seu lugar, nos servimos de outras palavras, que na discrição que as caracteriza formulam uma sobrevivência das normas éticas, de um modo que voltam as costas ao mundo das convenções fixas, esse mesmo processo é um reflexo do que ocorre na realidade. Também a palavra poética se converte com freqüência numa prova do que é verdadeiro, na medida em que o poema desperta uma vida secreta em palavras que pareciam desgastadas e consumidas, e nos esclarece assim sobre nós mesmos. E a linguagem pode tudo isso, porque não é evidentemente uma criação do pensamento reflexivo, mas contribui para realizar o comportamento com respeito ao mundo em que vivemos. VERDADE E MÉTODO TERCEIRA PARTE 3.

Assim como as coisas — essas unidades de nossa experiência do mundo, constituídas de apropriação e significação — alcançam a palavra, também a tradição, que a nós chega, é trazida novamente à linguagem na nossa compreensão e interpretação dela. A lingüisticidade desse vir à palavra é a mesma que a da experiência humana do mundo em geral. E isso o que levou a nossa análise do fenômeno hermenêutico, finalmente, à explicação da relação entre linguagem e mundo. VERDADE E MÉTODO TERCEIRA PARTE 3.

A linguagem não é o indício da finitude porque exista a diversidade de estruturação da linguagem humana, mas porque toda língua está em constante formação e desenvolvimento, quanto mais trouxer à fala a sua experiência do mundo. Não é finito por não ser ao mesmo tempo todas as demais línguas, mas porque é linguagem. Dirigimos as nossas perguntas a pontos-chave significativos do pensamento ocidental, e essa enquete nos ensinou que o acontecer da linguagem corresponde à finitude do homem num sentido muito mais radical que o que faz valer o pensamento cristão sobre a palavra. Trata-se do mediu da linguagem, a partir do qual se desenvolve toda a nossa experiência do mundo e em particular a experiência hermenêutica. VERDADE E MÉTODO TERCEIRA PARTE 3.

A palavra não é simplesmente a perfeição da species, como acreditava o pensamento medieval. Se no espírito pensante se representa o ente, isso não é a cópia de uma ordenação prévia do ser, cujas verdadeiras relações só serão presentes para um espírito infinito (o espírito do criador). Mas a palavra não é tampouco um instrumento capaz de construir, como a linguagem da matemática, um universo dos entes, objetivados e disponíveis graças ao cálculo. Nem um espírito infinito nem uma vontade infinita estão capacitados para superar a experiência do ser, adequada à nossa finitude. Somente o mediu da linguagem, por sua referência ao todo dos entes, pode mediar a essência histórico-finita do homem consigo mesmo e com o mundo. VERDADE E MÉTODO TERCEIRA PARTE 3.

Somente agora chegamos, por fim, ao verdadeiro solo e fundamento do grande enigma dialético do uno e do múltiplo, que deu o que fazer a Platão, como antagonista do logos, e que experimentou uma tão misteriosa confirmação na especulação trinitaria da Idade Média. Era somente um primeiro passo, quando Platão se deu conta de que a palavra da linguagem é ao mesmo tempo una e múltipla. É sempre uma palavra que nós dizemos uns aos outros e que nos é dita (teologicamente: “a palavra de Deus”), mas a unidade dessa palavra desdobra-se a cada vez, como vimos, no falar articulado. Essa estrutura do logos e do verbo, tal como a reconhece a dialética platônica e agostiniana, não é senão o reflexo de seus conteúdos lógicos. VERDADE E MÉTODO TERCEIRA PARTE 3.

A partir da linguagem, o conceito da pertença já não se determina como a referenciação teleológica do espírito em relação à estrutura essencial do ente, tal como é pensada na metafísica. Ao contrário, o fato de que a experiência hermenêutica se realize no “modo” da linguagem, e que entre a tradição e seu intérprete tenha lugar uma conversação, coloca um fundamento completamente distinto. O decisivo é que aqui acontece algo. Nem a consciência do intérprete é senhora do que chega a ele como palavra da tradição, nem se pode descrever adequadamente o que tem lugar aqui, como o conhecimento progressivo do que, de maneira que um intelecto infinito conteria tudo o que, de um modo ou de outro, pudesse chegar a falar a partir do conjunto da tradição. Visto a partir do intérprete, “acontecer” quer dizer que não é ele que, como conhecedor, busca seu objeto e “extrai” com meios metodológicos o que realmente se quis dizer e tal como realmente era, ainda que reconhecendo leves obstáculos e desvios, condicionados pelos próprios preconceitos. Isso não é mais que um aspecto exterior ao verdadeiro acontecer hermenêutico. Ele motiva a indispensável disciplina metodológica, com a qual nos comportamos para conosco mesmos. Não obstante, o verdadeiro acontecer só se torna possível, na medida em que a palavra que chega a nós a partir da tradição, e à qual temos de escutar, nos alcança de verdade, e o faz como se falasse a nós e se referisse a nós mesmos. Mais acima tratamos desse aspecto da questão, [466] sob a forma da lógica hermenêutica da pergunta, e demonstramos como aquele que pergunta se converte no perguntado, e como tem lugar o acontecer hermenêutico na dialética do perguntar. Voltamos a fazer menção a isso, com o fim de determinar de uma maneira mais precisa o sentido da pertença, como ele corresponde à nossa experiência hermenêutica. VERDADE E MÉTODO TERCEIRA PARTE 3.

Também a experiência hermenêutica tem sua própria conseqüência, a de ouvir sem extraviar-se. Tampouco a ela as coisas se apresentam sem um certo esforço, e também esse esforço consiste “em ser negativo contra si mesmo”. Aquele que procura compreender um texto tem também que manter a distância alguma coisa, ou seja, tudo o que se faz valer como expectativa de sentido a partir dos próprios preconceitos, desde o momento em que o próprio sentido do texto o rechaça. Inclusive a experiência do ser surpreendido de repente, esse ocorrer dos discursos, que não envelhece, e que constitui a autêntica experiência dialética, tem seu correlato na experiência hermenêutica. O desenvolvimento do todo do sentido a que está orientada a compreensão, nos força à necessidade de interpretar e de novo retirar-nos. Somente a auto-suspensão dessa interpretação leva a termo o fato de que a própria coisa, o sentido do texto, ganhe sua própria validez. O movimento da interpretação não é dialético porque a parcialidade de cada enunciado pode ser complementada de outro ponto de vista — veremos que isso não é mais que um fenômeno secundário na interpretação — , mas sobretudo porque a palavra que alcança o sentido do texto na interpretação não faz senão trazer à linguagem o conjunto desse sentido, isto é, pôr numa representação finita uma infinitude de sentido em si. VERDADE E MÉTODO TERCEIRA PARTE 3.

Quando empregamos a palavra “especulativo”, como a cunhou a filosofia por volta do ano de 1800, isto é, dizendo de alguém que é uma cabeça especulativa ou percebendo que uma idéia pareça muito especulativa, a esse uso da palavra subjaz a idéia do espelhamento. O especulativo é o contrário do dogmatismo da experiência cotidiana. É especulativo quem não se entrega direta e imediatamente à solidez dos fenômenos ou à determinação fixa do que se opina, mas que sabe refletir — hegelianamente falando, que reconhece o “em si” como um “para mim”. E uma idéia é especulativa, quando a relação que nela é enunciada não se deixa pensar como a atribuição inequívoca de uma determinação a um sujeito, de uma propriedade à coisa dada, mas que tem de ser pensada como uma relação especular, na qual o próprio espelhar não é nada mais do que a pura aparência do refletido, tal como o um é o um do outro e o outro é o outro do um. VERDADE E MÉTODO TERCEIRA PARTE 3.

Ser uma e a mesma coisa e, ao mesmo tempo, ser distinto, esse paradoxo aplicável a todo conteúdo da tradição põe a descoberto que toda a tradição é, na realidade, especulativa. Por isso, a hermenêutica tem que deixar o olhar atravessar o dogmatismo de todo “sentido em si”, tal como o fez a filosofia crítica com relação ao dogmatismo da experiência. Isso não quer dizer que cada intérprete seja especulativo para sua própria consciência, isto é, possua consciência do dogmatismo implicado na sua própria intenção interpretadora. Ao contrário, trata-se de que toda interpretação é especulativa em sua própria realização efetiva e acima de sua autoconsciência metodológica; isso é o que emerge da lingüisticidade da interpretação. Pois a palavra interpretadora é a palavra do intérprete, não a linguagem nem o vocabulário do texto interpretado. Nisso se torna patente que a apropriação não é mera reprodução ou mero relato posterior do texto interpretado, mas é como uma nova criação do compreender. Quando se destacou, com toda a razão, a referência de todo sentido ao eu, essa referência significa, para o fenômeno hermenêutico, que todo sentido da tradição alcança aquela concreção em que é compreendido, na relação com o eu que a compreende, e não, por exemplo, na reconstrução de um eu, pertencente à intenção de sentido originária. VERDADE E MÉTODO TERCEIRA PARTE 3.

A linguagem do intérprete é certamente um fenômeno secundário da linguagem, comparado, por exemplo, com a imediatez do entendimento inter-humano ou com a palavra do poeta. É assim que, por fim, volta a referir-se a algo lingüístico. E, não obstante, a linguagem do intérprete é ao mesmo tempo a manifestação abrangente da lingüisticidade em geral, que encerra em si todas as formas de uso e formas lingüísticas. Havíamos partido dessa lingüisticidade abrangente da compreensão, de sua referência à razão em geral, e agora vemos como se reúne sob esse aspecto todo o conjunto de nossa investigação. O desenvolvimento do problema da hermenêutica desde Schleiermacher, passando por Dilthey e chegando a Husserl e Heidegger, representa, como já expusemos, a partir do ponto de vista histórico, uma confirmação do que agora resultou: que a auto-reflexão metodológica da filologia tende necessariamente a um questionamento sistemático da filosofia. VERDADE E MÉTODO TERCEIRA PARTE 3.

O modo de ser especulativo da linguagem mostra assim seu significado ontológico universal. O que vem à fala é, naturalmente, algo diferente da própria palavra falada. Mas a palavra só é palavra em virtude do que nela vem à fala. Somente está aí em seu próprio ser sensível para subsumir-se no que é dito. Inversamente, também o que vem à fala não é algo dado com anterioridade e desprovido de fala, mas recebe na palavra sua própria determinação. VERDADE E MÉTODO TERCEIRA PARTE 3.

A própria análise semântica da palavra mostra o estreito parentesco do conceito do belo com o questionamento que desenvolvemos. A palavra grega que traduz o termo alemão schõn (belo) é kalon. O alemão não tem, para esta palavra, nenhuma correspondência exata, e tampouco nos ajudaria muito acrescentar, como termo mediador, o termo pulchrum. No entanto, o pensamento grego exerceu uma influência determinante sobre a história do significado da palavra alemã, de maneira que ambas as palavras já possuem em comum traços semânticos essenciais. Falamos, por exemplo, de “belas” artes, e com o atributo “belas” as distinguimos do que chamamos técnica, isto é, as artes “mecânicas”, que produzem coisas úteis. Algo parecido ocorre com expressões compostas como: bela moralidade, bela literatura, “espiritualmente belo” etc. Em todos esses empregos, a palavra se encontra numa oposição parecida à do grego kalon com respeito ao conceito chresimon. Chama-se kalon tudo o que não faz parte das necessidades da vida, mas que diz respeito ao modo de viver, ao eu zen, isto é, tudo o que os gregos compreendiam sob o termo de paideia. São coisas belas aquelas cujo valor é evidente por si mesmo. Não tem sentido perguntar pelo objetivo a que devam servir. São excelentes por si mesmas (di’ hauto hairetori), não em virtude de outras coisas, como ocorre com o útil. O simples uso lingüístico já permite reconhecer que o que se chama kalon possui uma categoria ôntica superior. VERDADE E MÉTODO TERCEIRA PARTE 3.

Trata-se pois da metafísica platônico-neoplatônica da luz, com a qual se vincula a doutrina cristã da palavra, do verbum creans, a que antes nos dedicamos detidamente. E se designamos a estrutura ontológica do belo como o aparecer, em virtude do qual as coisas se mostram em sua medida e em seu contorno, isso vale na mesma medida para o âmbito inteligível. A luz que faz com que tudo apareça de maneira que seja luminoso e compreensível em si mesmo, é a luz da palavra. Em conseqüência, a metafísica da luz é o fundamento da estreita relação entre o aparecer do belo e a evidência do compreensível . Foi justamente essa relação que orientou nosso questionamento hermenêutico. Gostaria de recordar, nesse ponto, como a análise do ser da obra de arte nos tinha conduzido ao questionamento da hermenêutica, e como esta tinha se ampliado até converter-se num questionamento universal. Isso tudo deu-se sem qualquer consideração paralela da metafísica da luz. Se considerarmos agora o parentesco desta, com nosso questionamento, ajudar-nos-á o fato de que a estrutura da luz pode ser separada, evidentemente, da representação metafísica de uma fonte luminosa sensório-espiritual, ao estilo do pensamento neoplatônico cristão. Isso já pode ser apreciado na interpretação dogmática do relato da criação, em Santo Agostinho. Este observa que a luz foi criada antes da distinção das coisas e da criação dos corpos celestes que a emitem. Ele põe uma ênfase especial no fato de que a criação inicial do céu e da terra tem lugar ainda sem a palavra divina. Deus só fala pela primeira vez ao criar a luz. E esse falar, pelo qual se nomeia e se cria a luz, é interpretado por ele como um vir à luz espiritual, que tornará possível a diferença entre as coisas formadas. Só pela luz a massa informe e primeira do céu e da terra adquire a capacidade de configurar-se em muitas formas diferentes. VERDADE E MÉTODO TERCEIRA PARTE 3.

De uma forma correspondente, a expressão poética tem se mostrado como o caso especial de um sentido introduzido e incorporado por completo na enunciação. No poema, o vir-à-fala é como um entrar em relações de ordenação, que são as que suportam e avalizam a “verdade” do que foi dito. Todo vir-à-fala, e não somente a expressão poética, tem em si algo desse testemunho. “Que não haja coisa alguma ali onde se rompe a palavra”. Como já destacamos, falar não é nunca uma subsunção do individual sob os conceitos do geral. No uso das palavras, não se torna disponível o que está dado à contemplação, como caso especial de uma generalidade, mas está presente naquilo mesmo que é dito, tal como a idéia do belo está presente no que é belo. VERDADE E MÉTODO TERCEIRA PARTE 3.

Talvez aqui seja o lugar para se fazer algumas observações às ampliações e apresentações autônomas do problema hermenêutico, do modo como foram apresentadas de um lado por Hans-Robert Jauss e Manfred Frank e, por outro, por Jacques Derrida. É sem dúvida incontestável que a estética da recepção, desenvolvida por Jauss, enfocou sob uma nova luz toda uma dimensão da pesquisa literária. No entanto, será justo seu posicionamento contra o que tenho em mente com minha hermenêutica filosófica? Parece-me que a ilustração da historicidade da compreensão, que apresentei no exemplo do conceito do clássico, é mal-entendida, toda vez que atribuímos a palavra aqui ao classicismo e ao conceito vulgar de platonismo. Dá-se exatamente o contrário. O exemplo do clássico, em Verdade e método I, quer ilustrar o quanto a mobilidade histórica está incluída na atemporalidade daquilo que se chama de clássico (e que contém, todavia, um componente normativo, mas nenhuma caracterização de estilo), de tal forma que a compreensão se transforma e se renova constantemente. O exemplo do clássico, portanto, nada tem a ver com o ideal de estilo clássico e nem com o conceito vulgar de platonismo, que [14] considero uma deformação das reais intenções de Platão. Neste ponto, Oskar Becker viu melhor do que Jauss, quando me acusou, em sua crítica, de estar sendo tomado pela história, e arrolou contra mim o pitagorismo do número, do som e do sonho. Não me senti atingido, neste particular. Mas não vamos tratar disso aqui. A estética da recepção de Jauss seria, ela própria, truncada, segundo me parece, se quisesse dissolver a obra que subjaz em cada configuração receptiva em meras facetas. VERDADE E METODO II Introdução 1.

A reprodução é diferente. Nela está em questão uma nova realização na matéria sensível das sonoridades e sons — e, com isso, algo como uma nova criação. É evidente que uma reprodução quer fazer aparecer a obra autêntica. Assim ocorre com o drama representado no palco, com a música tocada no piano; e é com razão, segundo me parece, que essa reprodução viva receba o nome de interpretação. Por isso, deve-se manter a caracterização comum de interpretação, tanto no caso da reprodução como no caso da cultura da leitura. Reproduzir é também compreender, mesmo que seja mais do que isso. Não se trata de uma criação completamente livre, mas simplesmente daquilo que tão bem expressa a palavra “apresentação”, por meio da qual a compreensão de uma obra já consolidada eleva a uma nova realidade. Na leitura dá-se algo diferente, [18] pois ali a realidade de sentido do que está fixado por escrito consuma-se na própria execução de sentido, e nada mais acontece. Assim, a consumação do compreender não significa, como na reprodução, a realização num novo fenômeno sensível. VERDADE E METODO II Introdução 1.

[45] Acostumamo-nos a ouvir, porém, essa palavra de Pilatos também num outro tom, como por exemplo, aquele em que Nietzsche ouviu esta palavra, ao afirmar que é a única palavra do Novo Testamento que possui valor. Nesse sentido, a palavra de Pilatos estaria expressando uma repulsa cética frente aos “fanáticos”. Não é por acaso que Nietzsche afirmou isto; sua própria crítica ao cristianismo de seu tempo é a crítica de um psicólogo a um fanático. VERDADE E METODO II PRELIMINARES 4.

Sabemos o alcance do poder e a força impositiva que tem a moda. Ora, a palavra “moda” soa terrivelmente mal no âmbito da ciência. É evidente que pretenderíamos estar por cima das exigências da moda. Porém, a pergunta é justamente esta: não pertence à natureza da própria coisa que a moda habite também a ciência? Será que o modo em que conhecemos a verdade não implica necessariamente que cada passo que damos para frente nos distancia mais dos pressupostos de que partimos, os faz retornar à obscuridade do óbvio, e que justamente com isso dificulta infinitamente a suplantar esses pressupostos, experimentar outros novos, e com isso adquirir conhecimentos realmente novos? Dá-se algo como uma burocratização não somente da vida mas também das ciências. Perguntamos: Isso radica-se na natureza da própria ciência ou será uma espécie de doença cultural da ciência, semelhante a outros fenômenos patológicos de outras áreas, quando por exemplo nos admiramos dos blocos gigantescos de nossos prédios administrativos e de dependências de empresas seguradoras? Talvez radique-se na essência da própria verdade, como foi pensada primeiramente pelos gregos, e com isso também na essência de nossas possibilidades de conhecimento, como foram criadas primeiramente pela ciência grega. Como vimos acima, a ciência moderna nada mais fez do que radicalizar os pressupostos da ciência grega, decisivos para o conceito de logos, enunciado e [52] juízo. A investigação fenomenológica, marcada em nossa geração na Alemanha pelo pensamento de Husserl e Heidegger, teve por interesse dar conta dessa questão, perguntando pelas condições de verdade do enunciado que ultrapassam o âmbito do lógico. Creio que se pode dizer, por princípio, que não pode haver enunciado que seja verdadeiro de modo absoluto. VERDADE E METODO II PRELIMINARES 4.

Schleiermacher diferenciou esse círculo hermenêutico da parte e do todo, tanto no seu aspecto objetivo quanto subjetivo. Assim como a palavra singular pertence ao contexto da frase, também o texto singular pertence ao contexto da obra de seu autor, e este ao todo do respectivo gênero literário ou da respectiva literatura. Por outro lado, enquanto manifestação de um momento criador, o mesmo texto pertence ao todo da vida espiritual de seu autor. A compreensão só pode realizar-se a cada vez neste todo objetivo ou subjetivo. Com base nessa teoria, Dilthey vai falar de “estrutura” e de “centralização num ponto médio”, a partir de onde se dá a compreensão do todo. Com isso, ele transfere para o mundo histórico o que, de há muito, é um princípio fundamental de toda interpretação [58]: que é preciso compreender um texto a partir de si próprio. VERDADE E METODO II PRELIMINARES 5.

O conceito de coisa (Sache) não traduz apenas o conceito jurídico romano de res; a palavra alemã Sache (coisa) e seu significado assumem sobretudo o que expressa a palavra latina causa. No uso da língua alemã, a palavra Sache significa em primeiro lugar causa, isto é, a coisa (Sache) litigada, que está em questão. Originalmente é a coisa que se coloca no centro entre as partes litigantes, porque ainda não se tendo sentenciado sobre ela há que se tomar uma decisão. A coisa (Sache) precisa ser protegida contra a apoderação particular de uma ou de outra parte. Nesse contexto, objetividade (Sachlichkeit) significa o oposto, a parcialidade, isto é, o contrário do abuso do direito para fins particulares. O conceito jurídico “a natureza da coisa (Sache)” não significa, por certo, uma coisa (Sache) disputada entre as partes, mas os limites colocados ao arbítrio pelo legislador, na imposição da lei ou na interpretação jurídica da mesma. O apelo à natureza da coisa (Sache) refere-se a uma ordenação livre do arbítrio humano e quer fazer prevalecer o espírito vivo da justiça mesmo contra a literalidade da lei. Também aqui, portanto, a natureza da coisa (Sache) é algo que se faz valer, algo que temos que respeitar. VERDADE E METODO II PRELIMINARES 6.

Dessa forma, também a herança cristã da metafísica grega, a escolástica medieval, concebe a palavra a partir da species, como sua perfeição, sem compreender o mistério de sua encarnação. A experiência de mundo que se dá na linguagem e que orientou originariamente o pensamento metafísico acaba tornando-se algo secundário e contingente. Através de convenções próprias da linguagem, ela esquematiza o olhar pensante que se dirige às coisas, fechando-lhe o acesso à experiência originária do ser. Na verdade, porém, é ao caráter de linguagem da experiência de mundo que se esconde por trás da aparência de prioridade das coisas frente à sua manifestação na linguagem. É sobretudo a suposta possibilidade de objetivação universal de tudo e de todos que se apoia na idéia da universalidade da linguagem, e que através dessa suposição se coloca na penumbra. À medida que a linguagem — pelo menos na família das línguas indo-germânicas — dispõe da possibilidade de estender a função nominativa geral a qualquer parte da oração e transformar tudo em sujeito para outras sentenças possíveis, ela erige a aparência universal de coisificação, que acaba degradando a própria linguagem a um mero meio de entendimento. Por mais que procure descobrir os desvios verbais pela elaboração de sistemas de signos artificiais, nem mesmo a moderna analítica da linguagem é capaz de questionar o pressuposto fundamental desta objetivação. Ensina, ao contrário, e apenas pela sua [74] autolimitação, que enquanto todos esses sistemas pressuporem a linguagem natural, nenhuma liberação real pode se realizar, a partir do âmbito da linguagem, mediante a introdução de sistemas de signos artificiais. Assim como a clássica filosofia da linguagem constatou que a questão da origem da linguagem é uma questão insustentável, também a reflexão sobre a idéia de uma linguagem artificial levou à auto-suspensão dessa idéia e com isso à legitimação das linguagens naturais. Mas, via de regra, o que isso implica permanece impensado. Sabe-se, por certo, que as línguas têm sua realidade, em geral, lá onde são faladas, isto é, onde as pessoas logram entender-se entre si. Mas que tipo de ser é este que convém à linguagem? Aquele de um meio de entendimento? Parece-me que, ao desvincular o conceito da syntheke do seu sentido ingênuo de “convenção”, Aristóteles já havia chamado a atenção para o verdadeiro caráter ontológico da linguagem. VERDADE E METODO II PRELIMINARES 6.

Disso sabem os poetas que procuram colocar-se à altura do modo de proceder do espírito poético que neles vige, como fez, por exemplo, Hölderlin. Afastando da experiência poética originária tanto o dado prévio da linguagem quanto o dado prévio do mundo, isto é, a ordem das coisas, e descrevendo a concepção poética como a confluência de mundo e alma no devir poético da linguagem, os poetas descrevem na verdade uma experiência rítmica. A configuração do poema, onde desemboca o devir de linguagem, garante, em sua finitude, a mútua referência de alma e mundo dada na linguagem. É aqui que o ser da linguagem mostra sua posição central. Partir da subjetividade, como se tornou natural ao pensamento de hoje, é um total equívoco. A linguagem não deve ser pensada como um projeto prévio de mundo, lançado pela subjetividade, nem como o projeto de uma consciência individual ou do espírito de um povo. Esses todos são apenas mitologias, exatamente como o conceito do gênio, que desempenha um papel tão predominante na teoria estética, porque ensina a compreender a construção da imagem como uma produção inconsciente e com isso interpretá-la a partir da analogia com o produzir consciente. A obra de arte não pode contudo ser compreendida a partir da execução planificada de um projeto — mesmo que esse seja sonâmbulo e inconsciente — tampouco como o curso da história universal pode ser pensado pela nossa consciência finita como a execução de um plano. Tanto num caso quanto no outro, sorte e êxito desvirtuam-se em oracula ex eventu, que encobre, na verdade, o evento do qual são a expressão, a palavra ou a ação. VERDADE E METODO II PRELIMINARES 6.

O fato de a auto-interpretação ter alcançado em todos esses âmbitos uma primazia, injustificada do ponto de vista objetivo (sachlich), parece-me ser uma conseqüência do subjetivismo moderno. Na verdade, não se pode outorgar nenhum privilégio a um poeta na explicação de seus versos, tanto quanto não se pode outorgar privilégios ao homem de estado para a explicação histórica dos acontecimentos em que ele próprio participou com sua ação. O autêntico conceito de autocompreensão, o único aplicável em todos estes casos, não deve ser pensado a partir do modelo da autoconsciência plena, mas a partir da experiência religiosa. Essa já sempre inclui que é só pela graça divina que os descaminhos da autocompreensão humana encontram o rumo para um fim verdadeiro, isto é, para a visão de que em todos os caminhos o homem deve ser conduzido para a salvação. Toda autocompreensão humana está determinada em si pela insatisfação. Isso vale também para a obra e a ação. Por isso, a arte e a história recusam-se, segundo seu próprio ser, a serem interpretadas a partir da subjetividade da [76] consciência. Pertencem àquele universo hermenêutico, caracterizado pelo modo de realização e pela realidade da linguagem, que ultrapassa toda consciência individual. Na linguagem, no caráter próprio que ela imprime em nossa experiência de mundo, encontra-se a mediação entre finito e infinito, adequada a nós, como seres finitos. O que nela se interpreta é sempre uma experiência finita, que, apesar disso, jamais se depara com aquela barreira, onde a única coisa que se poderia fazer ainda seria adivinhar algo infinito que se tem em mente, sem poder dizê-lo. Seu progresso não está limitado, e no entanto não é uma aproximação progressiva a um sentido que se tem em mente. O que perfaz seu sentido é lograr estabelecer a obra, e não o que é que se tem em mente com ela. O que concede sentido à sentença é a palavra acertada, e não o que está escondido na subjetividade do que se tem em mente. É a tradição que abre e delimita nosso horizonte histórico, e não um acontecimento opaco da história que acontece “por si”. VERDADE E METODO II PRELIMINARES 6.

Eu disse relação entre palavra e conceito, e não entre palavras e conceitos. Refiro-me portanto à unidade implícita, que convém tanto à palavra quanto ao conceito: Para essa relação não há palavras, e talvez não haja nem linguagens. É o que admite de maneira óbvia a investigação atual da teoria da linguagem. Toda linguagem falada apresenta-se apenas como a palavra que é dita a alguém, como a unidade de discurso que cria comunicação entre os homens e constrói solidariedade. A unidade da palavra precede toda multiplicidade das palavras ou das linguagens. Ela contém uma infinitude implícita daquilo que vale a pena se apreender em palavras. O conceito teológico do Verbum continua, nesse sentido, sendo muito revelador, à medida que, não obstante “a palavra” representar o todo da mensagem salvadora, isso se dá na atualidade do pro me. VERDADE E METODO II PRELIMINARES 7.

A função que a busca de linguagem desempenha na filosofia é primordial. É o que se pode perceber pela função desempenhada aqui pela terminologia: em si, em sua configuração no âmbito da linguagem o conceito apresenta-se como termo, isto é, como uma palavra bem circunscrita e univocamente delimitada em sua significação. Todo mundo sabe, porém, que não é possível um falar terminológico, nos moldes da exatidão do cálculo com símbolos matemáticos. É verdade que o falar lança mão de termos. Mas isso significa que esses termos se incorporam constantemente no processo de entendimento, exercendo sua função própria de linguagem no seio desse processo. Em contraposição à possibilidade de criar termos fixos que exerçam funções de conhecimento determinadas, como acontece nas ciências e de modo exemplar na matemática, o uso filosófico da linguagem, como vimos, não possui outra credencial a não ser que se dá na linguagem. O que ali se exige é certamente uma credencial específica, enquanto a primeira tarefa apresentada para a correlação de palavra e conceito, de linguagem falada e pensamentos que se articulam em palavras conceptuais. Trata-se de esclarecer o encobrimento da origem conceitual das palavras filosóficas, se quisermos demonstrar a legitimidade de nossas perguntas. Um exemplo clássico que vivenciamos nesse século é a descoberta do pano de fundo histórico-conceitual, oculto no conceito de “sujeito” e suas implicações ontológicas. “Sujeito”, em grego, é hypokeimenon, o subjacente, palavra introduzida por Aristóteles para designar, diante da mudança de diversas formas fenoménicas do ente, aquilo que não muda, e subjaz a essas qualidades mutáveis. Mas será que quando se usa a palavra sujeito ainda se ouve esse hypokeimenon, subiectum, que subjaz a tudo o mais, uma vez que estamos, todos nós, inseridos na tradição cartesiana, pensando o conceito de sujeito como a auto-reflexão, o ter consciência de si? Quem ouve ainda que “sujeito” é originalmente “o que subjaz no fundo”? Mas pergunto também quem não o ouve ali? Quem não pressupõe que aquilo que se determina pela auto-reflexão está ali como um ente que se conserva na mudança de suas qualidades como o que subjaz no fundo, como o suporte? O encobrimento (Unaufgedeckheit) dessa genealogia histórico-conceitual fez com que se pensasse o sujeito como algo caracterizado pela sua autoconsciência, só consigo mesmo e colocado diante da incômoda questão de como poderá sair dessa sua splendid isolation. Foi assim que surgiu a pergunta pela realidade do mundo exterior. Foi a crítica de nosso século que reconheceu que a pergunta sobre como nosso pensamento, nossa consciência poderia alcançar o mundo externo, estava falsamente colocada, uma vez que consciência não é outra coisa do que consciência de algo. A primazia da autoconsciência frente à consciência de mundo é um preconceito ontológico que se enraíza, em última instância, na influência incontrolado do conceito de subiectum, no sentido de hypokeimenon, ou do correspondente conceito latino de substância. A autoconsciência determina a substância autoconsciente frente a todo outro ente. Mas como podem se encontrar a natureza extensa e a substância autoconsciente? Como essas substâncias tão distintas entre si podem se influenciar? Esse foi o célebre problema dos inícios da filosofia moderna, que é também a base do suposto dualismo metodológico entre ciências da natureza e ciências do espírito. VERDADE E METODO II PRELIMINARES 7.

A esta pergunta, gostaria de apresentar uma resposta restritiva: Enquanto a vida da linguagem conviver com conceitos, o esclarecimento histórico-conceitual é significativo — mas isso também significa que o ideal de um saber consciente total (Bewusstheit) é absurdo. Isto porque linguagem é auto-esquecimento, sendo apenas por um esforço crítico “antinatural” que interrompe o fluxo da fala e paralisa de repente algo deste fluxo, que se dá conscientização e esclarecimento temático de uma palavra e de seu significado conceitual. Pude observar essas coisas quando minha filha era pequena: Quando ela estava aprendendo a escrever, um dia, ao fazer a tarefa de escola, ela perguntou: “Como se escreve morangos?” Disse-lhe como era; ela ficou um instante pensativa e respondeu: “Que estranho, quando ouço assim, não entendo mais a palavra. Só quando volto a esqueçê-la é que estou novamente nela”. Estar dentro da palavra é, na verdade, o modo como falamos. E se nesse momento pudesse realmente bloquear o fluxo de minha necessidade de comunicação e começar a refletir sobre as palavras que estou pronunciando, fixando-as na reflexão, a continuação da conversa estaria totalmente impedida. Isso mostra o quanto o auto-esquecimento pertence à essência da linguagem. É justamente esse o motivo por que o esclarecimento conceptual — e história do conceito é esclarecimento conceitual — só pode dar-se parcialmente. Só pode ser útil e importante onde se denuncia por meio dele o encobrimento que se dá pela alienação e enrijecimento da linguagem, ou onde se deve partilhar a carência de linguagem para se alcançar a envergadura total da reflexão. Isto porque a carência de linguagem deve alcançar a consciência de quem está refletindo. Só pode pensar filosoficamente aquele que sente uma insatisfação frente às possibilidades de expressão disponíveis na linguagem. E só se pensa em conjunto quando se partilha realmente a indigência daquele que ousa formular enunciados conceituais a serem confirmados por si mesmos. VERDADE E METODO II PRELIMINARES 7.

Por fim, um exemplo da filosofia atual poderá mostrar como alguns conceitos consolidados pela tradição podem ingressar na vida da linguagem e promover novas produções conceituais. O conceito de “substância” parece ser um legado único e exclusivo do aristotelismo escolástico e que se determinou a partir dele. Também empregamos a palavra em sentido aristotélico, quando falamos, por exemplo, de substâncias químicas, de que se investigam as propriedades ou reações. Nesse caso, a substância é o prejacente, de onde empreendemos as investigações. Isso, porém, não é tudo. Empregamos a palavra também num outro sentido, de caráter marcadamente axiológico, e dela derivamos os predicados axiológicos “sem substância” e “substancial”; por exemplo, quando achamos que um plano não é suficientemente substancial, ou seja, que é muito vago e incerto. Quando dizemos, por exemplo, de uma pessoa que ela tem substância, isso significa que ela tem algo a mais do que a mera função que exerce. Aqui devemos falar de uma transferência do conceito escolástico-aristotélico de substância para uma dimensão totalmente nova. Nesse novo âmbito de emprego dessa expressão, os antigos momentos conceptuais de substância e função (que se tornaram totalmente inúteis para a ciência moderna), de essência permanente e suas determinações mutáveis ganharam nova vida e tornaram-se termos dificilmente substituíveis. Isso significa que tornaram a viver. A reflexão histórico-conceitual constata negativamente nessa história da palavra “substância” a renúncia ao reconhecimento de substâncias, iniciada na mecânica de Galileu, e positivamente a reformulação produtiva que Hegel fez do conceito de substância, tal como aparece em sua teoria do espírito objetivo. Em geral, conceitos artificiais não se convertem em palavras da linguagem falada. A linguagem costuma resistir a essas formulações artificiais ou a palavras tomadas de línguas estrangeiras, não as incorporando no seu uso geral da linguagem. A linguagem incorporou, porém, essa palavra num sentido novo e Hegel ofereceu-lhe a legitimação filosófica, quando nos ensinou a pensar aquilo que nós somos, não apenas através da autoconsciência, determinada pelo eu singular e pensante, mas também através da realidade do espírito ampliada na sociedade e no Estado. VERDADE E METODO II PRELIMINARES 7.

Não se deve pois considerar como carência de formação o fato de a palavra conceitual filosófica conservar a pertença e relação com a vida da linguagem, carregando consigo o uso vivo da linguagem, mesmo no emprego de termos consagrados. A tarefa da história do conceito surge no âmbito dessa vida da linguagem, que prossegue produzindo efeitos e sustenta a formação de conceitos. Não se trata somente de esclarecer historicamente conceitos individuais, mas de renovar a tensão de pensamento que se mostra nos pontos de fratura do uso filosófico da linguagem, em que se recusa o esforço do conceito. Essas “recusas”, onde a relação de palavra e conceito se rompe e onde palavras cotidianas ganham a cunhagem artificial de enunciados conceituais novos, representam a verdadeira legitimação da história do conceito enquanto filosofia. Isso porque o que ali se mostra é a filosofia inconsciente, encontrada na formulação das palavras e conceitos da linguagem de nosso trato cotidiano, assim como na linguagem da ciência. Para além da cunhagem conceitual consciente, sua utilização é o caminho de uma demonstração de conceitos filosóficos, para o qual o conceito de “adequação” ganha um sentido novo, filosófico. Não se trata de adequação a um dado prévio da experiência, como acontece nas ciências empíricas, mas de uma adequação ao todo da experiência, representado por nossa orientação no mundo feita na linguagem. A demonstração histórico-conceitual pode liberar a expressão filosófica da rigidez escolástica e recuperá-la para a virtualidade do discurso vivo. Isso significa, porém, trilhar o caminho de volta da palavra conceitual para a palavra da linguagem para depois refazer o caminho da palavra da linguagem para a palavra conceitual. Neste caso, a filosofia é igual à música. O que se pode ouvir num laboratório Siemens, por exemplo, onde se eliminam os harmônicos através de aparelhos técnicos, não é música. Só se pode chamar de música à formulação que mostra também os harmônicos com tudo o que estes podem produzir de novos efeitos sonoros e nova capacidade expressiva de sons. É o que ocorre também no pensamento filosófico. As conotações das palavras por nós utilizadas permitem a presença da infinitude da tarefa do pensar, isso que é propriamente filosofia para nós e somente a partir do que ela se deixa cumprir — com todas as limitações. Por isso, o pensar filosófico individual e coletivo deve quebrar a rigidez dos assim chamados conceitos químicos puros. VERDADE E METODO II PRELIMINARES 7.

Mas não é apenas o selvagem que não conhece essas diferenças conceituais. A pretensão de autocompreensão, suposto que [130] exista — e não existe, desde que o homem é homem? — permanece encerrada em limites bem determinados. A consciência hermenêutica não compete com aquela autotransparência, que, segundo Hegel, constitui o espírito absoluto e que perfaz a forma mais elevada do ser. Não é só no âmbito da fé que se fala em autocompreensão. Toda compreensão é no fundo compreender a si mesmo, mas não no sentido de uma posse de si mesmo que se alcance de antemão e definitivamente. A autocompreensão realiza-se sempre quando se compreende alguma coisa e não tem o caráter de uma livre auto-realização. O si-mesmo que nós mesmos somos não possui a si mesmo. Poderíamos dizer, antes, que ele acontece. E é isso que diz realmente o teólogo: que a fé é o extraordinário evento em que nasce um novo homem. Afirma ainda que é a palavra que deve ser criada e compreendida, já que é pela palavra que superamos a ignorância abissal em que vivemos a respeito de nós próprios. Como mostra claramente J.G. Hamann, o conceito da autocompreensão tem um cunho originariamente teológico. Está relacionado com o fato de que nós próprios não nos compreendemos a não ser diante de Deus. VERDADE E METODO II COMPLEMENTOS 9.

Deus, porém, é a palavra. Desde os primórdios, a palavra humana serviu, no âmbito da reflexão teológica, para visualizar a palavra de Deus e o mistério da Trindade. Sobretudo Agostinho descreveu em muitas variantes o mistério sobre-humano da Trindade a partir da palavra e do diálogo, e de como este se dá entre os seres humanos. Ora, a palavra e o diálogo tem em si um momento de jogo. O modo como se ousa dizer uma palavra ou bem “guardá-la consigo”, o modo de arrancar do outro uma palavra e dele obter uma resposta, o modo como respondemos e como cada palavra “comporta um espaço de jogo” no contexto determinado em que é dita e compreendida, tudo isso aponta para uma estrutura comum entre o compreender e o jogar. A criança começa a conhecer o mundo através de jogos de linguagem. Sim, tudo que aprendemos, realiza-se em jogos de linguagem. Isso, porém, não significa que quando falamos estejamos apenas jogando um jogo, sem levar a fala a sério. Ao contrário, as palavras que encontramos mobilizam nossa própria opinião, integrando-a em relações que ultrapassam o caráter momentâneo de nossa opinião. Quando é que a criança que escuta e imita as palavras dos adultos começa a compreender as palavras que usa? Quando é que o jogo torna-se sério? Quando começa a seriedade e deixa de ser jogo? De certo modo, a fixação do [131] significado das palavras brota sempre ludicamente do valor situacional das palavras. Assim como a escrita fixa o elemento sonoro da linguagem que assim repercute articulando a configuração sonora da própria linguagem, também a fala viva e a vida da linguagem têm o seu jogo nesse movimento de alternância viva. Ninguém pode fixar o significado de uma palavra e nem tampouco o simples aprendizado correto e o uso do significado fixo das palavras são garantias de que alguém saiba e possa falar. A vida da linguagem consiste antes no progresso constante do jogo que começamos a jogar quando aprendemos a falar. Novos usos de linguagem estão sempre a entrar em jogo, da mesma maneira que saem imperceptível e involuntariamente do jogo. Nesse jogo contínuo joga-se a convivência dos seres humanos. Também o entendimento que se dá na conversação é um jogo. Quando duas pessoas conversam entre si, falam a mesma linguagem. Elas próprias não se dão conta de que pelo fato de falarem estão dando continuidade ao jogo da linguagem. Ademais, cada uma também fala sua própria linguagem. A compreensão dá-se porque tem lugar um discurso contra discurso, sem que esse lugar se torne fixo. Na conversação entramos constantemente no mundo das idéias do outro, nos confiamos ao outro e ele se confia a nós. Assim, alternamos mutuamente o jogo até que tenha início o verdadeiro diálogo, o jogo de dar e receber. Não se pode negar que nesse diálogo verdadeiro se dê o que costumamos chamar de acaso, de prazer da surpresa, e por fim, também, de leveza e enlevo, que constituem parte essencial do jogo. Esse enlevo é experimentado ademais sem perder a posse de si mesmo, pois mesmo sem nos darmos conta fazemos a sua experiência como um enriquecimento pessoal. VERDADE E METODO II COMPLEMENTOS 9.

Se o que ocorre ali é uma autocompreensão, trata-se então de uma autocompreensão muito paradoxal, para não dizer negativa, onde nos vemos chamados à conversão. De certo, essa autocompreensão não estabelece um critério para a interpretação teológica do Novo Testamento. Além do mais, os próprios textos do Novo Testamento já são interpretações da mensagem salvífica e mediadores da boa-nova sem nenhuma pretensão de ser compreendidos em si mesmos. Terá sido essa condição que lhes conferiu sua liberdade expressiva, tornando-os testemunhos desinteressados? Por mais gratos que sejamos às recentes investigações teológicas a respeito da intenção teológica dos próprios autores do Novo Testamento, o anúncio do Evangelho fala por intermédio de todas essas mediações, de maneira semelhante ao que ocorre com uma lenda que continua a ser transmitida ou a uma tradição mítica, constantemente transformada e renovada pela grande poesia. Parece-me que a verdadeira realidade do exercício hermenêutico abrange a autocompreensão do intérprete e do interpretado. Nesse sentido, a “desmitologização” não se dá apenas na atividade do teólogo. Ela se dá na própria Bíblia. Todavia, nem numa nem em outra a “desmitologização” pode ser garantia segura para uma compreensão correta. O verdadeiro evento da compreensão ultrapassa tudo que pode ser produzido por meio do esforço metodológico e do autocontrole crítico com vistas à compreensão das palavras do outro. Ultrapassa também tudo aquilo de que nós próprios podemos ter consciência. De todo diálogo, pode-se dizer que através dele surge outra coisa diferente. A palavra de Deus que convoca para a conversão e nos promete uma melhor compreensão de nós mesmos não pode ser compreendida como um objeto que se encontra ali, à nossa frente. Não somos nós mesmos que compreendemos, ali. É sempre um passado que nos permite dizer: compreendi. VERDADE E METODO II COMPLEMENTOS 9.

É de Aristóteles a definição clássica do homem como o ser vivo que possui logos. Na tradição do Ocidente, essa definição foi canonizada com a forma: o homem é o animal racional, o ser vivo racional, o ser que se distingue de todos os outros animais pela capacidade de pensar. A palavra grega logos foi traduzida no sentido de razão ou pensar. Na verdade, a palavra significa também e sobretudo: linguagem. Em certa passagem, Aristóteles estabeleceu a diferença entre homem e animal do seguinte modo: os animais têm a possibilidade de entender-se mutuamente, mostrando uns aos outros o que lhes causa prazer, a fim de poder buscá-lo, e o que lhe causa dor, a fim de evitá-lo. Aos animais a natureza só lhes permitiu chegar até esse ponto. Apenas aos homens foi dado ainda o logos, para que se informem mutuamente sobre o que é útil ou prejudicial, o que é justo e injusto. Uma frase de sentido muito profundo. O útil e o prejudicial são o que não é desejável em si mesmo, e sim em vista de algo outro que ainda não está dado, mas motiva a sua busca. Isso expõe como característica do homem um sobrepor-se ao atual, um sentido para o futuro. E Aristóteles acrescenta depois que, com isso, também se dá o sentido para o justo e o injusto… e tudo isso porque o homem é o único ser que possui o logos. Ele pode pensar e falar. Poder falar significa: poder tornar visível, pela sua fala, algo ausente, de tal modo que também um outro possa vê-lo. O homem pode comunicar tudo que pensa. E mais: E somente pela capacidade de se comunicar que unicamente os homens podem pensar o comum, isto é, conceitos comuns e sobretudo aqueles conceitos comuns, pelos quais se torna possível a convivência humana sem assassinatos e homicídios, na forma de uma vida social, de uma constituição política, de uma convivência social articulada na divisão do trabalho. Isso tudo está contido no simples enunciado: o homem é um ser vivo dotado de linguagem. VERDADE E METODO II COMPLEMENTOS 11.

A fundação da filosofia da linguagem e da ciência da linguagem por Wilhelm von Humboldt não representou, contudo, uma autêntica restauração da visão aristotélica. Como seu objeto de investigação eram os idiomas dos povos, abriu-se um caminho de conhecimento que pôde esclarecer de maneira nova e fecunda a diversidade dos povos e dos tempos e a essência humana comum a eles subjacente. Mas o que definiu aqui o horizonte da pergunta pelo homem e pela linguagem foi apenas admitir no homem uma [148] faculdade e esclarecer o regimento estrutural dessa faculdade — que chamamos de gramática, sintaxe, vocabulário da linguagem. No espelho da linguagem, podiam se reconhecer as cosmovisões dos povos, conhecer detalhadamente a estrutura de sua cultura — um bom exemplo é o conhecimento do estágio cultural da constituição dos povos indogermánicos, que devemos às excelentes investigações de Viktor Hehns sobre plantas de cultivo e animais domésticos. A ciência da linguagem, como qualquer outra pré-história, representa a pré-história do espírito humano. Mesmo assim, nesse modo de pensar, o fenômeno da linguagem só adquire o significado de um campo de expressão eminente, no qual é possível estudar a essência do homem e sua evolução na história. Por essa via, no entanto, não é possível penetrar nos postulados centrais do pensamento filosófico. Isso porque no pano de fundo de todo pensamento moderno encontrava-se ainda a definição cartesiana de consciência como autoconsciência. Esse inabalável fundamento de toda certeza, o mais certo de todos os fatos, o fato de que conheço a mim mesmo, tornou-se no pensamento da modernidade o parâmetro para tudo que quisesse satisfazer ao postulado de conhecimento científico. Também a investigação científica da linguagem acabou apoiando-se no mesmo fundamento. Tratava-se da espontaneidade do sujeito, a qual possui uma de suas formas de confirmação na energia que forma a linguagem. Por mais fecunda que pudesse ser a interpretação dessa cosmovisão subjacente aos idiomas, feita a partir desse princípio, não é possível entrever o enigma que a linguagem propõe ao pensamento humano. Pois a essência da linguagem comporta igualmente uma inconsciência abissal da mesma. Nesse sentido, a caracterização do conceito de linguagem não é um resultado fortuito e a posteriori. A palavra logos não significa apenas pensamento e linguagem, mas também conceito e lei. A cunhagem do conceito de linguagem pressupõe uma consciência de linguagem. Mas isso é apenas o resultado de um movimento reflexivo, no qual o sujeito pensante reflete a partir da realização inconsciente da linguagem, colocado a uma distância de si próprio. O verdadeiro enigma da linguagem, porém, é que isso jamais se deixa alcançar plenamente. Todo pensar sobre a linguagem, pelo contrário, já foi sempre alcançado pela linguagem. Só podemos pensar dentro de uma linguagem e é justamente o fato de que nosso pensamento habita a linguagem que constitui o enigma profundo que a linguagem propõe ao pensar. VERDADE E METODO II COMPLEMENTOS 11.

A meu ver, um segundo traço essencial do ser da linguagem é a ausência de um eu. Quem fala uma língua que ninguém mais compreende simplesmente não fala. Falar significa falar a alguém. A palavra quer ser palavra que vai ao encontro de alguém. Mas isso não significa apenas que a coisa em questão, referida pela palavra, se apresente diante de mim, mas que se apresenta também àquele a quem eu falo. VERDADE E METODO II COMPLEMENTOS 11.

Pode ser que aqui, além do fazer — isto é, da produção baseada num projeto — e do governar — isto é, do restabelecimento do equilíbrio e da fixação de uma direção sob condições constantemente novas — , torne-se importante um modo de comportar-se que leve em conta os limites de toda a vontade de dispor. Esse modo de comportar-se foi, com toda razão, considerado por Aristóteles como um modo distinto da técnica. Trata-se da deliberação-consigo-próprio, feita pelo indivíduo (ou também pelo grupo) diante da situação que exige uma decisão. Aqui não cabe o saber do especialista, que vai ao encontro dos outros como quem já sabe, e sim de um saber de que se precisa e que nenhuma ciência pode fornecer. Encontramo-nos diante de diversas possibilidades que se nos apresentam e ponderamos demoradamente sobre qual pode ser a correta. Não dispomos de um saber que pudesse reivindicar uma validade universal. Precisa-se de deliberação que implica um caráter comum bem diferente do que a validade universal. A deliberação dá a palavra ao outro e confronta-se com ele. Assim, não pode coisificar-se cabalmente como acontece com a ciência. Pois não se trata somente de encontrar os meios adequados para um objetivo preestabelecido, mas sobretudo de conceber o que deve e o que não deve ser, o que é correto e o que não é. É isso que na deliberação sobre o factível se constitui tacitamente em algo realmente comum. Ao termo dessa deliberação não se encontra apenas a realização de uma obra ou a produção de um estado desejado, mas uma solidariedade que une a todos. VERDADE E METODO II COMPLEMENTOS 12.

Devemos ter presente essas idéias extremas para perceber o que significa afirmar que toda experiência originariamente humana de mundo comporta condições que não podem ser suspensas, que nos determinam a todos a priori. O fato de a linguagem na qual crescemos, se é que de fato crescemos, ser mais que um mero sistema de sinais para o domínio de um aparato civilizatório não significa apenas um endeusamento romântico da língua materna. Ao contrário. Em toda linguagem encontra-se uma tendência para a esquematização. No aprendizado da linguagem a interpretação de mundo que se faz pela linguagem sempre assume o caráter de versão oficial. Com a palavra, ordena-se a coisa. A idade dos dois ou três anos, genial para a linguagem, esgota-se pela coação comunicativa do mundo circundante. Parece-me, no entanto, que uma característica que a diferencia de todo sistema de símbolos criado artificialmente é que a vida da linguagem não se realiza nem se desenvolve separada das tradições vivas, onde se encontra uma humanidade histórica. Isso garante a toda vida da linguagem uma infinitude interna, que não se avaliza em última instância pelo fato de, ao aprender línguas estrangeiras, o homem poder conhecer outras cosmovisões e nelas conhecer sua própria riqueza e pobreza. Também isso é expressão da finitude inalienável do homem. Cada um deve aprender a falar, construindo aí sua história, pois mesmo na realização extrema da era da máquina o homem não pode prescindir da história. Se entramos na era da pós-história, é aqui que ela encontrará seu limite. VERDADE E METODO II COMPLEMENTOS 12.

Creio que o mérito da análise semântica tenha sido o de ter trazido à consciência a estrutura total da linguagem e de ter relacionado a essa estrutura os falsos ideais da unicidade dos signos ou símbolos e da formalização lógica da expressão de linguagem. O grande valor da análise semântica das estruturas da linguagem não consiste apenas em dissolver a aparência de igualdade produzida pelo signo verbal isolado, trazendo à consciência seus sinônimos. Na verdade, a análise semântica dissolve essa aparência mostrando algo ainda mais significativo, a saber, que, em sua singularidade, a palavra-expressão é uma estrutura intransferível e insubstituível. Considero essa segunda contribuição mais significativa porque refere-se a algo que está aquém de toda sinonímia. Na perspectiva da simples designação ou nomeação, a maioria das expressões empregadas para o mesmo pensamento ou das palavras usadas para exprimir a mesma coisa pode admitir distinção, articulação e [175] diferenciação. Todavia, quanto menos os signos verbais singulares forem isolados, tanto mais se individualiza o significado da expressão. O conceito de sinonímia dilui-se cada vez mais. Por fim, resta um ideal semântico, que dentro de um contexto determinado só reconhece ainda uma única expressão e nenhuma outra como a correta, como a palavra acertada. O ápice dessa tendência poderia ser o uso poético da palavra; dentro dele parece intensificar-se essa individualização, que partindo do uso verbal épico e passando pelo dramático chega à configuração lírica poética do poema. Isso se mostra no fato de o poema lírico ser amplamente intraduzível. VERDADE E METODO II COMPLEMENTOS 13.

O exemplo de um poema pode esclarecer o que produz o aspecto semântico. Há um verso de Immermann que diz: “Die Zähre rinnt” (“As lágrimas escorrem”). Todo mundo que ouve a palavra “Zähre” surpreende-se com o uso de uma palavra tão arcaica no lugar da palavra “Träne”. Mas, considerando o contexto poético, e tratando-se de um verdadeiro poema, como é o caso aqui, acaba-se concordando com a escolha do poeta. A palavra “Zähre” privilegia um outro sentido, ligeiramente alterado, frente ao pranto cotidiano. Pode-se até duvidar. Haverá mesmo uma diferença de sentido? Não terá apenas significado estético, isto é, a diferença não é apenas uma valoração emocional ou eufônica? Não há dúvida de que a palavra “Zähre” soa diferente de “Träne”. Mas, no que se refere ao sentido, elas não poderiam ser substituídas uma pela outra? VERDADE E METODO II COMPLEMENTOS 13.

Isso vale também e sobretudo para a lógica da metáfora. De há muito, a metáfora dá a impressão de uma transferência, isto é, a metáfora opera como que se nos remetendo para o âmbito de sentido originário, do qual foi extraída e transferida para um novo âmbito de aplicação, quando ainda temos consciência desse contexto. E só quando a palavra já se enraizou em seu uso metafórico, perdendo seu caráter de recepção e transferência, que começa a desenvolver, no novo contexto, seu significado “próprio”. Nesse sentido, não passa de mera convenção gramático-escolar conhecermos o significado próprio de certas expressões apenas quando empregadas em sua função original, por exemplo a palavra “flor” quando usada em sua função própria no mundo vegetal, e considerar o uso dessa palavra com relação a todo ser vivo a unidades vitais mais elevadas como a sociedade ou a cultura como uso impróprio ou figurado. A construção de um vocabulário e de suas regras de aplicação representa apenas o esboço daquilo que forma a estrutura da linguagem, pelo constante aumento de expressões em novos âmbitos de aplicação. VERDADE E METODO II COMPLEMENTOS 13.

Um bom exemplo desse processo é a tensão de há muito existente entre terminologia e linguagem viva. O fato de as expressões técnicas serem tão pouco manejáveis é um fenômeno muito conhecido não apenas por parte dos pesquisadores mas igualmente por parte de todo leigo sedento de compreender esses termos. É como se esses termos possuíssem uma redoma protetora que impede sua integração na verdadeira vida da linguagem. E, no entanto, o que acontece essencialmente com essas expressões técnicas é que a sua força de esclarecimento, reduzida pela univocidade, se vê enriquecida quando inseridas na comunicação viva da vida da linguagem mediante a força comunicativa do dizer, mesmo vago e polissêmico. A ciência pode opor-se a esse obscurecimento de seus próprios conceitos. Todavia, a “pureza” metodológica só se deixa alcançar em âmbitos particulares. Essa vem sempre precedida pelo contexto da orientação no mundo, implícito na relação de mundo que se dá eminentemente na linguagem. Basta pensar, por exemplo, no conceito físico de força e nos tons de significação que ressoam na palavra viva “força”, e que fazem com que o leigo se interesse pelos conhecimentos da ciência. Já tive oportunidade de mostrar como o trabalho científico de Newton integrou-se na consciência geral através de Oetinger e Herder. O conceito de força foi compreendido a partir da experiência viva de força. E é justamente assim que a palavra conceitual planta raízes numa língua e individualiza-se a ponto de tornar-se intraduzível. Quem saberia reproduzir em outra língua a frase de Goethe: “Im Anfag war die Kraft”(“No princípio era a força”), sem hesitar com o próprio Goethe: “Algo já me adverte de que aqui não posso permanecer”? VERDADE E METODO II COMPLEMENTOS 13.

Para discutir essa questão, pretendo estabelecer uma oposição entre dois fenômenos. Um é o enunciado e o outro a palavra. Antes de tudo cabe analisar esses dois fenômenos. Quando digo “das Wort” (a palavra), não estou pensando um singular cujo plural é “die Wörter” (as palavras), segundo nos ensina o dicionário. Também não me refiro à palavra “das Wort” (a palavra) cujo plural é “die Worte” (as palavras) e que, junto com outras, forma cada vez o contexto de uma frase. Refiro-me antes à palavra que aparece apenas no singular Singularetantum. É a palavra que toca alguém, que alguém permite que lhe seja dita. É a palavra que “cai bem” num contexto de vida determinado e preciso. É a palavra cuja unidade é conferida justamente pelo caráter comum do contexto de vida. E bom lembrarmos que à base desse Singularetantum, “a palavra”, está o uso da linguagem característico do Novo Testamento. Mesmo sem considerar o significado do começo pela “palavra”, sobre o que medita Fausto quando quer traduzir o Evangelho de João, essa palavra, que vigora com força irradiante, não representa para Goethe apenas uma palavra mágica. Trata-se de uma palavra que (sem alusão ao fato da encarnação) remete para além do aspecto compulsório da razão humana, ou seja, para a “sede de existência”. VERDADE E METODO II COMPLEMENTOS 14.

Nessa tentativa de contrapor, assim, “palavra” e “enunciado”, torna-se claro também o sentido de enunciado. Costumamos falar [193] de “enunciados” na constringência da lógica, do cálculo das proposições e da moderna formalização matemática da lógica. Esse modo de expressar-se, que nos parece natural, remonta em última instância a uma das opções mais decisivas de nossa cultura ocidental, isto é, a construção da lógica a partir do enunciado. Aristóteles, o fundador dessa parte da lógica, o magistral analítico desse processo escolástica do pensamento lógico, produziu-a pela formalização de frases enunciativas e de seus nexos conclusivos. Todos conhecem o famoso exemplo do silogismo usado doutrinalmente: Todos os homens são mortais. Pedro é homem, logo Pedro é mortal. Que tipo de abstração se produziu aqui? A abstração pela qual a única coisa que conta aqui é o que foi enunciado. Todas as outras formas de linguagem e todos os outros modos de dizer não são objeto de análise; somente o enunciado. A palavra grega é apophansis. Logos apophantikos significa o discurso, a proposição cujo único sentido é realizar o apophainesthai, o mostrar-se do que foi dito. E uma proposição teórica no sentido de que ela abstrai de tudo que não diz expressamente. O que constitui o objeto de análise e o fundamento da conclusão lógica é apenas o que ela própria revela pelo seu dizer. VERDADE E METODO II COMPLEMENTOS 14.

A partir desse contexto, fica claro que um enunciado jamais tem seu pleno conteúdo de sentido a partir de si mesmo. Na lógica, essa questão ficou conhecida como o problema da ocasionalidade. A característica especial das chamadas expressões “ocasionais”, recorrentes em todos os idiomas, é não conterem seu pleno sentido em si mesmas, como ocorre com outras expressões. Quando digo, por exemplo, “aqui”, essa palavra não é compreensível para todos pelo simples fato de ser pronunciada ou escrita. É preciso saber onde ocorreu ou onde ocorre. Para sua própria significação, a palavra “aqui” deve ser complementada pela ocasião, a occasio, em que foi pronunciada. A análise lógico-fenomenológica interessou-se de modo especial por expressões desse gênero, porque se pode demonstrar que esses significados incluem a situação e a ocasião em seu próprio conteúdo significativo. O problema específico das assim chamadas expressões “ocasionais” em muitos aspectos ainda carece de exploração. Foi o que fez Hans Lipps em suas Untersuchungen zur hermeneutischen Logik (Investigações sobre a lógica hermenêutica). Algo similar ocorre na moderna filosofia analítica inglesa, como nos chamados “austinianos”, os seguidores de [196] Austin. Austin expôs um importante questionamento do seguinte modo: “How to do things with words” (Como fazer coisas com palavras?). São exemplos de modos de falar que na sua execução transcendem a si próprios, que se destacam e distanciam nitidamente do puro conceito de enunciado. VERDADE E METODO II COMPLEMENTOS 14.

A esse conceito do enunciado isolado e a seus limites difusos vamos contrapor agora a “palavra”, só que não como a menor unidade da linguagem. A palavra que pronunciamos ou ouvimos não é aquele elemento gramatical de uma análise lingüística. No fenômeno concreto do aprendizado da fala, podemos descobrir que uma frase possui um caráter mais secundário do que, por exemplo, a melodia da linguagem. A palavra que deve ser realmente considerada como a menor unidade de sentido não é a palavra na qual se produz a articulação de um discurso como o último componente. VERDADE E METODO II COMPLEMENTOS 14.

Mas essa palavra tampouco é o nome, e dizer não é nomear. Isso porque no nome e no nomear, como mostra por exemplo o relato do Gênesis, encontra-se a falsa implicação da imposição de nomes. Nossa fundamental relação de linguagem não consiste em dispormos do arbítrio e da liberdade de impor nomes: Uma primeira palavra não existe. Falar de uma primeira palavra é uma contradição. O sentido de toda palavra já pressupõe sempre um sistema de palavras. Também não posso dizer, por exemplo: “introduzo uma palavra”. É claro que há pessoas que afirmam isso, mas sobrestimam-se em demasia. Não são eles que introduzem a palavra. Na melhor das hipóteses, propõem uma expressão ou cunham um termo técnico por eles definido. Mas que esse termo venha a tornar-se uma palavra, isso não depende deles. Uma palavra introduz-se a si mesma. Ela só se torna uma palavra quando entra em comunicação. Isso não ocorre porque alguém a propõe e introduz num ato, mas quando e porque a palavra “se introduziu”. A própria expressão “uso de linguagem” sugere que existem coisas que ultrapassam a essência de nossa experiência de mundo que se dá na linguagem. Isso dá a impressão de que dispomos de palavras guardadas no bolso da calça, das quais lançamos mão quando precisamos, como se o uso de linguagem estivesse submetido ao arbítrio de quem utiliza a linguagem. A linguagem não depende de quem a usa. Na verdade, uso de linguagem significa também que a língua resiste a ser usada de maneira equivocada. É a própria língua que prescreve o que significa o uso de linguagem. Não se trata de uma mitologização da linguagem, mas de uma exigência da linguagem, que jamais poderá ser reduzida a uma opinião subjetiva individual. Somos nós, ninguém em particular e todos em geral, que falamos a cada vez, e esse é o modo de ser da “linguagem”. VERDADE E METODO II COMPLEMENTOS 14.

Se concebermos o fenômeno da linguagem não a partir do enunciado isolado, mas a partir da totalidade de nosso comportamento no mundo, o qual é por sua vez também uma vida em diálogo, poderemos compreender melhor por que o fenômeno da linguagem é tão enigmático, atrativo e fugidio. O dizer é a ação de auto-esquecimento mais radical que podemos realizar como seres racionais. Todo mundo já fez a experiência de estar conversando e de repente estacar, sentindo que as palavras fogem no momento em que nelas se fixa a atenção. Isso pode ser ilustrado por um pequeno acontecimento que vivenciei com minha filha pequena: Ela tinha que escrever a palavra “morango” e perguntou como se escreve. Quando lhe disse como fazer, ela observou: “Engraçado, quando a escuto desse modo, já não consigo mais compreender a palavra. É só quando a esqueço que estou de novo nela”. Estar na palavra de modo a não estar diante dela como se estivesse diante de um objeto é por natureza o modo fundamental de todo comportamento na linguagem. A linguagem tem uma força de proteção e ocultamento de si mesma. O que acontece na linguagem é protegido contra o ataque da reflexão, mantendo-se resguardado no inconsciente. Quando percebemos essa essência ocultadora e protetora da linguagem, vemo-nos obrigados a ultrapassar as dimensões da lógica enunciativa e alcançar horizontes mais amplos. Dentro da unidade vital da linguagem, a linguagem da ciência é apenas um momento integrado. O que mais ocorre são as palavras que encontramos na linguagem filosófica, religiosa e poética. Nelas todas, a palavra é algo bem diferente do que o comércio com o mundo promovido pelas estruturas de auto-esquecimento. Somente aqui estamos em casa. E como ter um fiador do que se diz. Isso aparece claramente sobretudo no uso poético da linguagem. VERDADE E METODO II COMPLEMENTOS 14.

O processo da tradução engloba no fundo todo o mistério da compreensão humana do mundo e da comunicação social. Traduzir representa uma unidade indissolúvel de antecipação implícita, de apreensão antecipada do sentido como um todo, e a fixação explícita do que assim se antecipou. Todo discurso possui algo dessa antecipação e dessa fixação. Heinrich von Kleist escreveu um artigo muito bonito intitulado “Über die allmähliche Verfertigung der Gedanken beim Reden” (“Sobre a gradual elaboração dos pensamentos no discurso”). Se dependesse de mim, todo professor deveria assinar um certificado de que lera esse artigo, antes de examinar um aluno. O artigo descreve a experiência que Heinrich von Kleist fez no exame de licenciatura em Berlim. Também ali os exames eram abertos ao público, embora freqüentados apenas pelos futuros examinandos (hoje a situação não é muito diferente). H. Kleist conta como transcorre um exame; como o professor “dispara” uma pergunta como se sacasse uma pistola e o candidato deve “disparar” a resposta como se atirasse com a sua pistola. Ora, todos sabemos que uma pergunta da qual todos conhecem a resposta só pode ser respondida por imbecis. Uma frase deve ser formulada, e isso implica criar a abertura para diversas possibilidades de resposta. O único resultado do exame que pode ter algum valor é que a resposta dada tenha sido razoável. Uma resposta “correta” pode ser dada tanto pelo computador quanto por um papagaio com muito mais rapidez que qualquer outro. Kleist encontrou uma frase muito bonita para expressar essa experiência: o volante dos pensamentos deve ser acionado. No falar, uma palavra puxa a outra e com isso expande-se nosso pensamento. Uma verdadeira palavra é [206] aquela que se oferece por si ao falar a partir de vocabulários e usos de linguagem pré-esquematizados. Pronuncia-se a palavra e talvez ela conduza aquele que a pronuncia ao alcance de conseqüências e objetivos que ele mesmo jamais havia previsto. O pano de fundo para a universalidade do acesso ao mundo pela linguagem é que nosso conhecimento do mundo apresenta-se como um texto infinito, que aprendemos a recitar com dificuldades e fragmentariamente. A palavra “recitar” deve tornar consciente de que não se trata de um dizer. Recitar é o contrário de dizer. O recitar já sabe o que vem em seguida, não se expondo assim às possíveis vantagens que surgem do improviso. Todos já fizemos a experiência de assistir a péssimos atores que recitam, de tal modo que ao lerem a primeira palavra temos a impressão de que já está pensando na próxima. Na verdade, isso não é dizer. Só há dizer quando se assume o risco de propor alguma coisa e seguir suas implicações. Diria, em suma, que a real incompreensão a respeito da questão da estrutura da linguagem à base de nossa compreensão é a incompreensão sobre o que é linguagem, quando esta é definida como um reservatório de palavras e frases, de conceitos, modos de ver e opiniões. A linguagem é, na verdade, a única palavra cuja virtualidade nos abre a possibilidade de seguir falando e conversando infinitamente, que nos oferece a liberdade do dizer a si mesmo e deixar-se dizer. A linguagem não é um convencionalismo reelaborado, não é o peso de esquemas prévios que nos recobrem e sim a força geradora e criativa de sempre de novo conferir fluidez a esse todo. VERDADE E METODO II COMPLEMENTOS 15.

Também no âmbito do pensamento filosófico, o fenômeno do diálogo e sobretudo aquela forma específica do diálogo entre duas pessoas desempenharam uma importante função, e talvez na mesma confrontação que acabamos de descobrir como um fenômeno cultural comum. Foi sobretudo a época romântica e seu renascimento no século XX que conferiu ao fenômeno do diálogo uma função crítica frente à funesta monologização do pensamento filosófico. Mestres do diálogo como Friedrich Schleiermacher, esse gênio da amizade, ou Friedrich Schlegel, cuja sensibilidade cativante era mais propícia a diálogos caudalosos do que a forma permanente aos conceitos, advogaram filosoficamente por uma dialética que atribuía ao modelo platônico de diálogo e de conversação uma primazia especial na busca da verdade. É fácil ver em que consiste [210] essa primazia. Quando duas pessoas se encontram e trocam experiências, trata-se sempre do encontro entre dois mundos, duas visões e duas imagens de mundo. Não é a mesma visão a respeito do mesmo mundo, como tenta comunicar o pensamento dos grandes pensadores com seu esforço conceitual e a elaboração de suas teorias. O próprio Platão não comunicou sua filosofia simplesmente em diálogos escritos em reconhecimento ao mestre do diálogo, Sócrates. Viu ali um princípio da verdade, segundo o qual a palavra só encontra confirmação pela recepção e aprovação do outro e que o pensamento que não viesse acompanhado do pensamento do outro seria inconseqüente e sem força vinculante. Cabe afirmar que todo ponto de vista humano tem algo de aleatório. O modo como alguém experimenta o mundo, pela visão, pelo ouvido e sobretudo pelo gosto permanece um mistério pessoal intransponível. “Quem pode mostrar um cheiro com os dedos?” (Rilke). Assim como nossa apercepção sensível do mundo é ineludivelmente privada, também nossos impulsos e nossos interesses individualizam-nos, e nossa razão, comum e capaz de apreender o comum a todos, permanece impotente diante dos ofuscamentos alimentados pela nossa individualidade. Assim, o diálogo com os outros, suas objeções ou sua aprovação, sua compreensão ou seus mal-entendidos, representam uma espécie de expansão de nossa individualidade e um experimento da possível comunidade a que nos convida a razão. Poderíamos imaginar toda uma filosofia do diálogo, partindo dessas experiências: o ponto de vista intransferível do indivíduo, onde se espelha a totalidade do mundo, e a totalidade do mundo que se apresenta nos pontos de vista individuais de todos os outros como um e o mesmo. A extraordinária concepção metafísica de Leibniz, admirada também por Goethe, foi de que a multiplicidade de espelhos do universo, representados pelos indivíduos, singulares, forma na sua totalidade um único universo. Isso se deixa configurar num universo do diálogo. VERDADE E METODO II COMPLEMENTOS 16.

Se não compreendo mal as explicações de Joh. Lohmann, trata-se da mesma teleología que se dá constantemente na vida da linguagem. Quando descreve as tendências de linguagem, onde se avolumam determinadas formas como os verdadeiros agentes da história, Lohmann sabe perfeitamente que esse fenômeno se realiza nas formas do estabelecer-se, de colocar-se de pé, como diz a palavra alemã Zustandekommen. A impressão é que o que se mostra ali é o verdadeiro modo de realização de nossa experiência humana de mundo. O aprender a falar é certamente uma fase de extraordinária produtividade, e a genialidade que possuíamos aos três anos de idade transformamo-la num talento escasso e modesto. Mas no uso da interpretação de mundo guiada pela linguagem, que acaba se estabelecendo, ainda permanece vivo algo da produtividade de nossos inícios. Todos temos conhecimento desse fenômeno, por exemplo, quando tentamos traduzir algum texto, seja na vida, na literatura, ou em qualquer outra circunstância; é quando nos vemos tomados por um sentimento estranho, inquietante e penoso, até encontrarmos a palavra certa. Quando a temos, quando encontramos a expressão acertada (não precisa ser necessariamente uma [230] palavra), quando estamos certos de possuí-la, então se estabelece, “fica de pé”, então retomamos uma instância firme em meio ao torvelinho das coisas estranhas que se dão no acontecer da linguagem, cuja variação infinita faz com que percamos a orientação. O que estou descrevendo é o modo da experiência humana no mundo em geral. Chamo-a de experiência hermenêutica, uma vez que o processo assim descrito repete-se constantemente no que nos é familiar. É sempre um mundo já interpretado, um mundo já ordenado em suas relações, no qual a experiência entra como um elemento novo, que destrona o que guiava nossas expectativas, colocando uma nova ordem ao que é destronado. O primeiro elemento não é o mal-entendido e nem a estranheza, de modo que a tarefa primordial e inequívoca seria evitar o mal-entendido. Ao contrário, o assentamento no que é familiar e no acordo possibilita o trânsito para o estranho, a assunção do que vem deste, e com isso a ampliação e enriquecimento de nossa própria experiência de mundo. VERDADE E METODO II OUTROS 17.

Um terceiro tipo de compreensão prévia que ilumina a história da hermenêutica numa dimensão especial é uma contribuição muito erudita da história primitiva da hermenêutica feita recentemente por Hasso Jaeger. Jaeger outorga uma relevância capital a Dannhauer, que emprega pela primeira vez a palavra “hermenêutica” e a idéia de uma ampliação da lógica aristotélica com a lógica da interpretação. Vê nesse autor o último testemunho da res publica literária humanista, antes desta ser congelada pelo racionalismo e antes que o irracionalismo e o subjetivismo moderno, desde Schleiermacher, passando por Dilthey até Husserl e Heidegger (e outros ainda piores) produzissem seus frutos venenosos. Surpreendentemente o autor não toca no tema da relação entre o movimento humanista e o princípio bíblico da Reforma nem no tema do papel determinante que a retórica desempenha para toda a problemática da interpretação. VERDADE E METODO II OUTROS 20.

Foi, em todo caso, um renascimento estranhamente declamatório. Como se poderia redescobrir a arte clássica da linguagem sem seu espaço clássico, a polis, ou a res publicai A retórica havia perdido seu posto central desde o final da República Romana e na Idade Média constitui um elemento da cultura escolar mantida pela Igreja. Não podia experimentar uma renovação, como pretendia o humanismo, sem passar por uma mudança funcional muito mais drástica. A redescoberta da Antigüidade clássica coincidiu com dois fatos carregados de conseqüências: a descoberta da imprensa e, como efeito da Reforma, a enorme difusão da leitura e da escrita, ligada à doutrina sobre o sacerdócio comum. Assim iniciou-se um processo que, ao final, e depois de séculos, levou não somente à erradicação do analfabetismo, mas também a uma cultura da leitura privada que deixava em segundo plano a palavra falada, inclusive a palavra lida em voz alta e o discurso pronunciado: um imenso processo de interiorização do qual só agora nos damos conta, quando os meios de comunicação social abriram caminho para uma nova maioridade. VERDADE E METODO II OUTROS 20.

Todo esforço por compreender o sentido de um texto significa a aceitação de uma exigência apresentada pelo texto. Sua pretensão de verdade é a premissa de todo o esforço, inclusive quando ao final um melhor conhecimento nos leva a criticar e declarar o enunciado como errôneo. Deve-se ter presente isso também para compreender o modo como Flacius propõe sua hermenêutica. Ele sabe qual a exigência que faz o evangelho. Quando enumera todo tipo de condições para a reta compreensão da Sagrada Escritura, não está fazendo um trabalho supérfluo nem dogmaticamente restrito. Não se trata só, por exemplo, da expectativa piedosa de ouvir a palavra de Deus, como exige Flacius, mas também de ter o espírito livre de toda preocupação, necessário em todos os temas e assuntos difíceis (p. 88). Ou ao lado do conselho de aprender de cor algo que não se compreende totalmente, “na esperança de que Deus no-lo esclareça um [286] dia”, aparece o outro conselho de alcance geral e válido para a leitura de todo e qualquer escrito: averiguar antes de tudo o “scopus”, a finalidade e a intenção do texto em sua integridade. VERDADE E METODO II OUTROS 20.

É verdade, porém, que na época da nova ciência e do racionalismo, desenvolvido durante os séculos XVII e XVIII, o vínculo entre retórica e hermenêutica se afrouxa. H. Jaeger chamou a atenção ultimamente para o papel que desempenhou Dannhauer com sua idéia do boni interpretis. Esse autor parece ter sido o primeiro a utilizar a palavra “hermenêutica” em sentido terminológico, em estreita conexão com o escrito correspondente do Organon de Aristóteles. Isso mostra que a intenção de Dannhauer é continuar e acabar o que Aristóteles havia iniciado com seu escrito Peri hermeneias. Como ele mesmo afirmou: “os limites do Organon de Aristóteles se ampliam com a anexação de uma nova cidade”. A sua orientação é, pois, a lógica, à qual ele quer justapor como uma parte a mais, [288] como outra ciência filosófica, a ciência da interpretação, e isto de um modo tão universal que ela preceda a hermenêutica teológica e a hermenêutica jurídica, como a lógica e a gramática precedem toda aplicação específica. Dannhauer deixa de lado o que ele chama de exposição retórica, ou seja, o uso e a utilidade que se busca com um texto e que se costuma chamar de accomodatio textus, para tentar alcançar pela sua hermenêutica uma infalibilidade humana e racional equiparável à lógica, na compreensão geral dos textos. É essa tendência a uma espécie de nova lógica o que a leva a um paralelismo com a lógica analítica e a uma distinção explícita desta. Ambas as partes da lógica, a analítica e a hermenêutica, se relacionam com a verdade e ambas ensinam a refutar o erro. Mas diferem no fato de que a hermenêutica ensina a investigar o verdadeiro sentido de uma frase errônea, enquanto que a analítica deriva a verdade da conclusão de princípios verdadeiros. Aquela se refere, pois, unicamente ao “sentido” das frases, não à retidão objetiva. VERDADE E METODO II OUTROS 20.

Transferindo isso para a arte da boa interpretação, nos deparamos com uma dimensão intermediária peculiar, qual seja, o discurso fixado por escrito ou em letra impressa. Por um lado, isso significa uma maior dificuldade para a compreensão, mesmo que se cumpram plenamente as condições gramaticais da linguagem. A palavra morta deve despertar para uma linguagem viva. Mas ainda a fixação por escrito significa uma facilitação, por oferecer-se numa forma invariável ao esforço reiterado de compreensão. Não se trata de uma mera contagem de pontos positivos e negativos dados na fixação. Uma vez que a hermenêutica está às voltas com a interpretação dos textos e estes são discursos destinados a ser lidos em público ou em privado, a arte da escrita vem ao encontro da tarefa da interpretação e da compreensão. Assim, a arte especial da escrita teve como um de seus objetivos oferecer uma base textual adequada para a leitura pública nos tempos antigos, quando a cultura tinha como suporte a leitura em voz alta. Trata-se de uma perspectiva estilística importante que desempenhou um papel determinado no período clássico dos gregos e romanos. Com a difusão generalizada da leitura privada e sobretudo com a aparição da imprensa, tornaram-se necessários outros recursos para a leitura, como a pontuação e as divisões. Com isso, a arte da escrita também exige alterações. Poderíamos fazer um paralelo com as razões da decadência da oratória que se explicam nos Dialogus de Tácito. Na arte da imprensa encontram-se as razões para a decadência da literatura épica e das mudanças na arte de escrever, que corresponde à arte modificada de ler. É evidente que ambas, a retórica e a hermenêutica, diferem em muito do modelo preciso de um saber artesanal que inspira o conceito de “teoria da arte” (techne). VERDADE E METODO II OUTROS 20.

Com seu artigo Studien zur Frügeschichte der Hermeneutik (Estudos sobre a história primitiva da hermenêutica), H.-E. Hasso Jaeger enriqueceu nosso conhecimento do período inicial da hermenêutica com um capítulo totalmente novo. Sabia-se já que a palavra “hermenêutica” apareceu pela primeira vez num escrito de Joh. Conrad Dannhauer, e sabia-se pelo menos desde Dilthey que a hermenêutica possui uma certa pré-história humanista. Mas, com a avaliação que Jaeger faz de Dannhauer, o quadro se modifica. Jaeger demonstra de início que Dannhauer perseguiu já em sua juventude o programa de uma lógica da interpretação e que introduziu em 1629 a expressão “hermenêutica” com essa finalidade. Frente a Dilthey, Jaeger não parece considerar essa hermenêutica como um antecedente teológico — e nesse sentido muito pobre — da hermenêutica romântica, mas como uma criação própria do movimento humanista, sem relação alguma com a controvérsia sobre o princípio bíblico que se deu entre Lutero e os papistas. Dilthey havia nos mostrado que essa controvérsia levara a uma primeira formulação dos princípios hermenêuticos da exegese protestante da Bíblia, formulação que aparece documentada em Flacius Illyricus. Mas H. Jaeger procura evitar, o quanto possível, o aspecto teológico do problema. VERDADE E METODO II OUTROS 21.

Por mais adequada que seja essa exposição da idéia de hermenêutica por Dannhauer, a perspectiva que persegue Jaeger me parece unilateral. A consideração do conjunto do material filológico que nos traz o douto autor, e especialmente a aparição antiga da palavra, não nos leva à lógica e à teoria da ciência. O campo referencial da palavra remete-nos antes ao âmbito da retórica. Como isso não corresponde à intenção do autor, permito-me destacar esse aspecto da questão utilizando o material apresentado por ele. Em primeiro lugar, a já conhecida ocorrência da palavra na obra platônica Epinomis (84, nota 160). Não se pode duvidar, apelando ao paralelismo com a mântica, de que se trata aqui de um uso real da linguagem. A palavra refere-se ao trato com os deuses, que não é tão simples que pudesse interpretar o significado de seus sinais sem o recurso da arte. Ignoro por que o autor não simpatiza com essa passagem. Ninguém afirma que Platão a considere como uma arte muito nobre. Mas isso não tem importância aqui. É inegável que se trata aqui da mesma tarefa proposta à hermenêutica humanista, admitida também por Jaeger, mas também à hermenêutica mais recente que ele repudia: vir a compreender o que não se compreende (a situação fundamental na atividade do intérprete). VERDADE E METODO II OUTROS 21.

É interessante notar que o próprio Dannhauer já se referia à difusão da imprensa como um fator relevante para a hermenêutica. Não há dúvidas de que a arte da imprensa transformou radicalmente [296] a realidade da comunicação pela linguagem. O hábito da leitura privada, que coincidiu sobretudo com o dinamismo reformador da idéia protestante do sacerdócio geral, representa uma nova situação, que requer uma nova diretriz disciplinada. A distância entre os signos escritos, que aparecem como vestígios de sentido do texto, e o sentido a que se refere o texto aumentou enormemente desde que a palavra falada ou lida por um arauto já não presidia o processo de comunicação. Aqui surgem novos problemas que não se referem apenas ao círculo de tarefas da compreensão e da interpretação, mas também à arte da escrita. Em todo caso, é fácil de compreender que é nesse ponto que se deve buscar a verdadeira origem da hermenêutica. Não é só a variante da teoria da ciência proposta por Dannhauer que se ocupa disso. O próprio Melanchton advoga pela conversão da retórica em arte da interpretação. VERDADE E METODO II OUTROS 21.

O autor finca pé num conceito de “hermenêutica construtiva” que ele formulou e com a qual busca conectar de modo um tanto ridículo o conceito husserliano dos atos que dão sentido (83s). O certo é que, contra essa doutrina de Husserl, há certas objeções que deveriam partir sobretudo da crítica ontológica de Heidegger contra os preconceitos de Husserl. Mas o que tem isso a ver com uma “hermenêutica construtiva”? E o que seria “hermenêutica construtiva”? Tampouco a idéia da força expressiva da linguagem [298] tem algo a ver com a frase heideggeriana “a linguagem fala”. O sentido da formulação provocativa de Heidegger é a precedência da linguagem com relação a qualquer interlocutor singular. Cabe afirmar assim, num certo sentido — mas certamente não no sentido suposto pelo autor — que a linguagem possui também uma certa prioridade, embora limitada, sobre o pensamento. O sentido inteligível da frase “a linguagem fala” está implícito, segundo me parece, na idéia neoplatônica de que a palavra singular, que é na verdade a palavra do pensamento, articula-se nas palavras e no discurso. O próprio autor toca nesse tema no final do seu tratado quando cita a psyque de Plotino (82), mas sem extrair dele nenhuma conclusão. Creio ter demonstrado que essa doutrina tem a seu favor tanto o pensamento de Agostinho quanto o de Nicolau de Cusa. O papel que o pietismo desempenha na “psicologização” da interpretação representa quem sabe a mediação decisiva entre o legado retórico-humanista e a teoria romântica (A.H. Francke, Rambach). Jaeger não faz nenhuma referência a essa mediação. VERDADE E METODO II OUTROS 21.

Nesse sentido, tenho a impressão de que a palavra grega syne-sis, empregada para designar o compreender e a compreensão, e que costuma aparece no contexto neutro do fenômeno do aprendizado e numa proximidade intercambiável com a palavra grega que designa o aprender (mathesis), no contexto da ética aristotélica representa uma espécie de virtude espiritual. Trata-se sem dúvida de uma definição mais estrita da palavra, também usada por [315] Aristóteles em sentido neutro, que corresponde ao pertinente estreitamento terminológico de techne e phronesis no mesmo contexto. Mas essa palavra possui muitos significados. A palavra “compreensão” aparece ali com o mesmo significado que teve o emprego da palavra “hermenêutica” — mencionado por mim inicialmente — durante o século XVII, significando o conhecimento e a compreensão da alma. Nesse caso, “compreensão” significa uma modificação da racionalidade prática, o julgamento intuitivo das considerações práticas de um outro. Trata-se de algo mais que uma simples compreensão de algo dito. Implica uma espécie de elemento comum que dá sentido à “reunião em conselho”, ao dar e receber um conselho. São apenas os amigos e os que têm intenção amistosa que podem aconselhar. Isso aponta, de fato, para o centro das questões que se ligam com a idéia de filosofia prática. São as implicações morais, na realidade, que se ligam a esse contraponto da racionalidade prática (phronesis). Em sua ética, Aristóteles analisa propriamente as “virtudes”, conceitos normativos que estão sempre sob a pressuposição de validade normativa. A virtude da razão prática não deve ser concebida como uma faculdade neutra que busca encontrar fins justos para meios práticos. Ela está, antes, inseparavelmente ligada ao que Aristóteles chama de ethos. Ethos é para ele a arche, o “fato prévio” que serve como ponto de partida de todo esclarecimento filosófico-prático. É verdade que seu interesse analítico distingue as virtudes éticas e as virtudes dianoéticas, fazendo-as remontar ao que ele chama de duas “partes” da alma racional. Mas o próprio Aristóteles se pergunta o que significam essas duas “partes” da alma e se não devem ser concebidas, antes, como dois aspectos diversos do mesmo fenômeno, como o convexo e o côncavo. Por fim, essas divisões fundamentais em sua análise do que é o bem prático para o ser humano devem ser interpretadas partindo-se do postulado metodológico próprio de sua filosofia prática. Essa filosofia não quer substituir as decisões práticas racionais que deve tomar cada indivíduo em cada situação. Todas as suas descrições tipificantes são entendidas de súbito na direção dessa concreção. Mesmo a célebre análise da estrutura do ponto central que faz a mediação entre os extremos e que parece corresponder às virtudes éticas aristotélicas não passa de uma determinação aberta a muitas significações. Não só que essa significação receba seu conteúdo relativo dos extremos, cujo perfil possui nas convicções e reações morais das pessoas uma determinação muito maior do que o prestigiado ponto intermediário; o que recebe assim uma [316] descrição esquemática é o ethos do spoudaios. O hos dei e o hos ho orthos logos não são subterfúgios frente a uma exigência conceitual mais rigorosa. São as indicações da situação concreta onde a arete alcança sua determinação. A tarefa daquele que possui a phronesis é fornecer essa situação concreta. VERDADE E METODO II OUTROS 22.

Essa defesa não era necessária no passado. A corrente tradicional que transmitia o saber humano de uma geração à outra sem submetê-lo à crítica era a retórica. Isso torna-se estranho ao homem moderno, uma vez que a palavra retórica parece-lhe uma palavra depreciativa, usada para uma argumentação não objetiva. Mas é preciso devolver ao conceito de retórica seu verdadeiro alcance. Abarca qualquer forma de comunicação baseada na capacidade de falar e é o que dá coesão à sociedade humana. Sem falar uns com os outros, sem entender-nos uns aos outros, e até sem entender-nos quando faltam argumentações lógicas concludentes, não existiria nenhuma sociedade humana. Daí, a necessidade de recobrar nova consciência da significação da retórica e do lugar que ocupa na cientificidade moderna. VERDADE E METODO II OUTROS 23.

Diante disso, a guinada que se deu no século XX e à qual contribuíram decisivamente, a meu ver, Husserl e Heidegger, significou o descobrimento dos limites dessa identidade idealista ou histórico-espiritual entre espírito e história. Nos trabalhos tardios de Husserl aparece a palavra mágica Lebenswelt (mundo da vida), um desses neologismos raros e surpreendentes (a palavra alemã não existia antes de Husserl) que entram na consciência geral sobre a linguagem e trazem à fala alguma verdade ignorada ou esquecida. Assim, a palavra Lebenswelt restabeleceu os laços com certos pressupostos latentes e anteriores a todo conhecimento científico. O programa de uma “hermenêutica da facticidade” de Heidegger, isto é, a confrontação com a incompreensibilidade da própria existência factual, significou sem dúvida uma ruptura com o conceito idealista de hermenêutica. A compreensão e a vontade de compreender são reconhecidas em sua tensão com relação à realidade factual. Tanto a teoria de Husserl sobre o mundo da vida quanto o conceito heideggeriano de hermenêutica da facticidade afirmam a temporalidade e a finitude do ser humano frente à tarefa infinita da compreensão e da verdade. Minha tese propõe que, a partir dessa ótica, o saber não se coloca somente como uma questão de domínio do outro e do estranho. Esse domínio constitui o pathos fundamental da investigação científica da realidade, presente em nossas ciências da natureza (embora quem sabe à base de uma fé na racionalidade da constituição do cosmos). O que afirmo é que o essencial das “ciências do espírito” não é a objetividade, mas a relação prévia com o objeto. E, para essa esfera do saber, eu complementaria o ideal de conhecimento objetivo, implantado pelo ethos da cientificidade, com o ideal de “participação”. Participação nas manifestações essenciais da experiência humana tal como se configuraram na arte e na história. Nas ciências do espírito, esse é o verdadeiro critério para conhecer o conteúdo ou a falta de conteúdo de suas teorias. Procurei demonstrar em meus trabalhos que o modelo do diálogo é decisivo para esclarecer a estrutura dessa forma de participação. Isso porque o diálogo se caracteriza também por não ser o sujeito individual, separado que percebe e afirma, o único a dominar o assunto, mas por alcançarmos participar da verdade e do outro pela partilha. VERDADE E METODO II OUTROS 23.

Pois bem, qual é o lugar teórico dessa vontade de saber e da reflexão sobre praxis e política? Aristóteles fala ocasionalmente de uma divisão da “filosofia” em três ramos: filosofia teórica, prática e poética (com essa última legou-nos a conhecida “poética”, nela incluindo também a retórica ou a criação de discursos). Mas entre os extremos do saber e do fazer está a praxis, que é o objeto da filosofia prática. Seu verdadeiro fundamento é o lugar central e o distintivo essencial do ser humano em virtude do qual esse não desenvolve sua vida seguindo a pulsão dos instintos, mas guiando-se pela razão. Por isso, a virtude básica em consonância com a essência do homem, é a racionalidade que guia sua praxis. O grego expressa-a com a palavra phronesis. A pergunta de Aristóteles é a seguinte: em que consiste essa racionalidade prática entre a autoconsciência do cientista e a do especialista, do fautor, do engenheiro, do técnico, do artesão etc. Que relação tem essa virtude da racionalidade com a virtude da cientificidade e a virtude da competência técnica? Mesmo sem conhecer nada de Aristóteles, deve-se reconhecer que essa racionalidade prática possui um lugar relevante. Qual seria nossa posição na vida e como lidaríamos com nossos assuntos se tudo fosse ditado pelo especialista ou se o tecnocrata pudesse dispor de tudo? Nossas decisões éticas e políticas não devem ser as nossas decisões? Mas também é certo que só podemos sentir-nos responsáveis no âmbito político, como o somos em nossa própria vida individual, se deixarmos a decisão nas mãos do político racional e responsável, no qual depositamos nossa confiança. VERDADE E METODO II OUTROS 23.

Como pode a facticidade adquirir o caráter de princípio, adquirir o caráter de “ponto de partida” primeiro e determinante? O que significa “fato”, nesse contexto, não é a facticidade dos fatos estranhos, dos quais pensamos ter dado conta à medida que aprendemos a explicá-los. Trata-se da factualidade das crenças, valorações, usos partilhados por todos nós; é o paradigma de tudo que constitui nosso sistema de vida. A palavra grega que designa o paradigma dessas factualidades é o conhecido termo ethos, o ser que se consegue com o exercício e o hábito. Aristóteles é o fundador da ética porque deu realce a esse caráter da factualidade como sendo decisivo. No caso de a possuirmos, a phronesis, essa racionalidade responsável, é a garantia de que esse ethos não é um mero adestramento ou adaptação e nada tem a ver com o conformismo de uma consciência duvidosa. Não é um dom natural. O partilhar uma crença e decisões comuns em intercâmbio com os semelhantes e em convivência na sociedade e no estado não é, pois, conformismo. Constitui a dignidade do [326] ser-próprio e da autocompreensão humanos. A pessoa que não é associai acolhe sempre o outro e aceita o intercâmbio com ele e a construção de um mundo comum de convenções. VERDADE E METODO II OUTROS 23.

A convenção constitui uma realidade melhor que a impressão produzida pela palavra em nossos ouvidos. Significa estar de acordo e dar validez a esse acordo. Não significa a exterioridade de um sistema de regras impostas de fora, mas a identidade entre a consciência individual e as crenças representadas na consciência dos outros. Significa ainda as ordenações vitais assim criadas. Em certo sentido, é uma questão de racionalidade, e de racionalidade não unicamente no sentido técnico-pragmático de razão, onde costumamos usar a palavra razão. Dizemos, por exemplo: se quero isso e aquilo, o razoável é como primeiro fazer isso e aquilo. É a célebre “racionalidade instrumental” (Zweckrationalität) de Max Weber. Quem quer um determinado fim deve saber os meios que conduzem e os que não conduzem a ele. Por isso, a ética não é mera questão de intenção. Também nosso saber ou não saber deve ser assumido responsavelmente. O saber faz parte do ethos. Mas certamente isso não é tudo o que caracteriza a racionalidade no sentido moral e político da phronesis aristotélica, em virtude da qual sabemos utilizar os meios adequados para determinados fins. Na sociedade humana, tudo depende de como esta determina seus fins, ou melhor, como alcança o consenso para assumir os fins que devem ser confirmados por todos e como encontra os meios justos. Pois bem, creio que a suposição, prévia a qualquer explicação teórica, da aceitação generalizada de um ideal de racionalidade que determine seu conteúdo reveste-se sempre de uma importância decisiva para todo o tema do saber teórico nesse campo da praxis da vida. VERDADE E METODO II OUTROS 23.

[330] Os problemas da hermenêutica tiveram sua origem primeira em certas ciências individuais, especialmente a teologia e a jurisprudência, e por fim ganharam impulso também através das ciências históricas. Mas o próprio romantismo alemão já vira com profundidade que a compreensão e a interpretação não aparecem apenas em manifestações da vida fixadas por escrito, como dissera Dilthey, mas atingem o relacionamento geral dos seres humanos entre si e com o mundo. É o que podemos constatar inclusive em certas palavras derivadas, como a palavra compreensão (Verständnis). Em língua alemã, Compreender (Verstehen) significa também “entender algo”. A capacidade de compreensão é a faculdade fundamental da pessoa, que caracteriza sua convivência com os demais, atuando sobretudo pela via da linguagem e do diálogo. Nesse sentido, a pretensão de universalidade da hermenêutica está garantida. Por outro lado, o caráter de linguagem do processo de entendimento que se produz entre as pessoas representa uma barreira intransponível que o romantismo alemão valorizou em princípio positivamente em seu significado metafísico. A barreira aparece formulada na frase individuum est ineffabile. A frase expressa uma limitação da ontologia antiga (e não somente do período medieval). Mas para a consciência romântica isso significa que a linguagem nunca alcança o mistério último e indecifrável da pessoa individual. Essa idéia foi muito bem expressa pelo sentimento vital da época romântica, sugerindo uma autonomia da expressão de linguagem que não constitui somente seu limite, mas também sua relevância para a formação do common sense que une os seres humanos. VERDADE E METODO II OUTROS 24.

Não é por acaso que a palavra “literatura” conservou um sentido axiológico, de forma que a pertença a ela representa uma característica distintiva. Um texto desse gênero não significa a mera fixação de um discurso, mas possui sua própria autenticidade. Se o caráter do discurso consegue fazer com que o ouvinte ultrapasse o próprio discurso, ouvindo através dele e centrando sua atenção no que o discurso lhe comunica, esse fato põe de manifesto o que é a linguagem ela mesma. VERDADE E METODO II OUTROS 24.

É só assim que a palavra adquire sua autopresença no texto literário. Não se limita a tornar presente o que é dito, mas se apresenta a si mesma em sua realidade sonora. Como o estilo é um fator determinante para constituir um texto de qualidade, sem impor-se como mero estilismo, assim também a realidade sonora das palavras e do discurso está intimamente unida com a comunicação de sentido. Mas se o discurso se determina pela busca de sentido e além de sua aparência escutamos e lemos o sentido que ele nos comunica, no texto literário a auto-aparição de cada palavra em sua sonoridade e a melodia do discurso também são relevantes para o conteúdo. Nasce uma tensão peculiar entre o sentido do discurso e [353] a auto-apresentação de sua figura. Cada membro do discurso, cada palavra que se insere na unidade da frase representa uma unidade de sentido ao evocar algo com sua significação. Ao mover-se dentro de sua própria unidade e na medida em que não atua como mero meio para decifrar o sentido do discurso, permite o desenvolvimento da diversidade de sentidos de sua própria força de nomeação. VERDADE E METODO II OUTROS 24.

Nesse sentido, a palavra singular como portadora de seu significado e como co-portadora do sentido discursivo é apenas um momento abstrato do discurso. Tudo deve ser visto no âmbito mais amplo da sintaxe. Tratando-se de um texto literário, é uma sintaxe que não é tal incondicionalmente nem tampouco segundo a gramática usual. Assim como o orador lança mão de liberdades sintáticas outorgadas pelo ouvinte, na medida em que este está em sintonia com todas as modulações e gesticulações do orador, também o texto literário — com todos os matizes que ostenta — possui suas próprias liberdades. Essas liberdades se encaixam na realidade sonora que reforça o sentido do conjunto do texto. De certo, já no âmbito da prosa corrente supõe-se que um discurso não é um “escrito”, tampouco como uma conferência é uma aula, um paper. Isso fica ainda mais acentuado no caso da literatura, no sentido eminente da palavra. Ela supera a abstração do escrito não somente porque o texto seja legível, quer dizer, compreensível em seu sentido. Um texto literário possui um status próprio. Sua presença como texto estruturado na linguagem exige uma repetição da literalidade original. Isso sem recorrer a uma linguagem originária, mas na medida em que inaugura uma linguagem nova e ideal. A trama das referências de sentido nunca se esgota nas relações existentes entre os significados principais das palavras. Justamente as relações de significado anexas, que não aparecem ligadas à teleología de sentido, conferem sua magnitude (Volumen) à frase literária. Tais relações não se dariam se o conjunto do discurso por assim dizer não se mantivesse de pé por si só, se convidasse à quietude e impedisse o leitor ou o ouvinte de tornar-se cada vez mais ouvinte. Mas, apesar disso, como toda audição, esse tornar-se ouvinte é sempre um ouvir algo, que entende o que ouviu como a figura de sentido de um discurso. VERDADE E METODO II OUTROS 24.

No extremo fica claro o quão complexo é o ajuste do discurso à unidade e o arranjo de seus elementos, isto é, das palavras. Por exemplo, quando a palavra em sua polivalência se vangloria como possuidora de um sentido independente. Chamamos a isso um jogo de palavras. Ora, não se pode negar que ela, muitas vezes, alcança a independência unicamente quando utiliza a linguagem como adorno, o qual realça o engenho do orador, mas permanece totalmente subordinada à intenção de sentido do discurso. A conseqüência é que o sentido do discurso como um todo perde prontamente sua univocidade. Por trás da unidade do fenômeno sonoro aparece então a unidade oculta de significados heterogêneos e até opostos entre si. Nesse contexto, Hegel falou de instinto dialético da linguagem, e no jogo de palavras Heráclito viu um dos testemunhos mais relevantes de sua intuição básica, a saber, os contrários são na verdade um e o mesmo. Mas esse é um modo de falar filosófico. Trata-se de rupturas da relação semântica natural do discurso que são úteis para o pensamento filosófico, uma vez que assim a linguagem vê-se forçada a abandonar seu significado objetivo imediato e favorecer o surgimento das especulações do pensamento. O sentido equívoco nos jogos de palavras representa a forma mais densa de manifestação do elemento especulativo, que se explicita em juízos contraditórios. Como disse Hegel, a dialética é a representação do especulativo. VERDADE E METODO II OUTROS 24.

Mas o que sabe Heidegger de um novo deus? Ele o pressente, faltando-lhe apenas a linguagem para invocá-lo? Enfeitiçou-o a linguagem da metafísica? Apesar de sua insondabilidade prévia, a linguagem não é o aprisionamento babilónico do espírito. Mesmo assim, a confusão babélica das línguas não significa só que a variedade das famílias da linguagem e dos idiomas seja produto do orgulho humano, como supõe a tradição bíblica. Essa variedade abrange, antes, toda a estranheza que intermedeia entre um ser humano e outro e que cria sempre novas confusões. Mas isso também encerra a possibilidade da superação. Porque a linguagem é diálogo. É preciso buscar a palavra e é possível encontrar a palavra que alcance o outro, pode-se inclusive aprender a língua alheia, a do outro. Pode-se emigrar à linguagem do outro para alcançar o outro. Tudo isso pode fazê-lo a linguagem enquanto linguagem. VERDADE E METODO II OUTROS 25.

Se quisermos atribuir um sentido à linguagem da metafísica, devemos pensar aqui mais detalhadamente. Não me refiro à linguagem em que se desenvolveu antigamente a metafísica, a linguagem filosófica dos gregos. Quero dizer, antes, que as línguas vivas das comunidades de linguagem atuais contêm certos caracteres conceituais que procedem dessa linguagem originária da metafísica. No âmbito científico e filosófico, dizemos que esse é um papel atribuído à terminologia. Mas se nas ciências naturais matemáticas — sobretudo nas experimentais — a adoção de denominações é um ato convencional que serve para designar todos os fenômenos acessíveis e não estabelece nenhuma relação semântica entre o termo adotado internacionalmente e os usos de linguagem dos idiomas nacionais (quem se lembra do grande investigador Volta quando ouve a palavra “volts”?), no caso da filosofia não ocorre o mesmo. Aqui não há uma região de experiência acessível a todos, controlável, designada por termos acordados. Os termos conceituais cunhados no campo da filosofia articulam-se sempre na língua falada da qual procedem. Também nesse caso, a conceituação supõe a restrição da possível multiplicidade de significados de uma palavra, para poder dar-lhe um significado preciso; mas essas palavras conceituais nunca se desligam totalmente do campo semântico no qual possuem todo seu significado. Desligar totalmente uma palavra de seu contexto para inseri-la (horismos) num conteúdo preciso, que a converte em palavra conceitual, corre o risco de esvaziar de sentido seu uso. Assim, a formação de um conceito metafísico fundamental como o de ousia nunca é plenamente realizável sem [366] ter presente também o sentido da palavra grega em sua plena acepção. Por isso, o fato de sabermos que a palavra ousia significou primariamente o sítio rural, e que daí deriva o sentido conceitual de “ser” como presença ou o presente, contribuiu sobremaneira para a compreensão do conceito grego de ser. Esse exemplo mostra que não existe uma linguagem da metafísica. Existe apenas a cunhagem de termos conceituais pensados metafisicamente e extraídos da linguagem viva. Essa cunhagem conceitual pode criar uma forte tradição, como é o caso da lógica e da ontologia de Aristóteles, gerando conseqüentemente uma alienação que já começa cedo com a cultura escolar helenística e progride na transposição para o latim. Mais tarde acaba formando novamente uma linguagem escolar com a acolhida da versão latina nos idiomas nacionais modernos. Trata-se de uma linguagem em que o conceito vai perdendo cada vez mais o sentido original derivado da experiência do ser. VERDADE E METODO II OUTROS 25.

Heidegger não foi o primeiro a dar-se conta da alienação objetiva que se produziu na linguagem escolástica da metafísica. Já havia sido uma aspiração do idealismo alemão desde Fichte e sobretudo desde Hegel dissolver e fluidificar a ontologia grega da substância e seus conceitos mediante o movimento dialético do pensamento. Houve precursores inclusive dentro da linguagem do latim [367] escolástico, especialmente quando se agregava a palavra viva da pregação em língua vernácula aos tratados escolásticos escritos em latim, como é o caso de Mestre Eckhart ou de Nicolau de Cusa, e também das especulações de Jakob Bõhme. Mas esses foram personagens secundários da tradição metafísica. Quando Fichte escreve Tathandlung (força do ato) em lugar de Tatsache (fato), está antecipando, no fundo, as formulações provocativas de Heidegger, que gosta de inverter o sentido das palavras. Ele compreendeu, por exemplo, Entfernung (distanciamento) como aproximação, ou tomou a frase was heisst denken? (que significa pensar?) como se significasse was befiehlt uns zu denken? (que nos convoca a pensar?); ou quando traduziu Nichts ist ohne Grund (o nada está sem fundamento) como um enunciado sobre o nada, enquanto carente de fundamento: esforços violentos de alguém que nada na contracorrente. VERDADE E METODO II OUTROS 25.

A guinada hermenêutica rumo à conversação, tema que eu próprio desenvolvi, vai na mesma direção e não se limita a ultrapassar a dialética do idealismo alemão na direção da dialética platônica, mas aponta o pressuposto da dialética que se esconde por detrás dessa versão socrático-dialogal: a anamnesis buscada e suscitada nos logoi. Essa reminiscência tomada do mito, mas pensada com plena racionalidade, não é só reminiscência da alma individual, mas é também sempre a do “espírito capaz de unir-nos”, a nós que “somos uma conversação”. Mas estar-em-conversação significa estar-além-de-si-mesmo, pensar com o outro e voltar sobre si mesmo como outro. Quando Heidegger deixa de pensar o conceito metafísico de essência como presença do presente e lê a palavra Wesen (essência) como verbo, como palavra temporal, “temporalmente”, passa a compreender o Wesen (essência) como Anwesen (estar presente, vigência), num sentido que parece corresponder à expressão comum Verwesen (“reger”, vigir, administrar). Mas isso significa que Heidegger, como faz em seu artigo sobre Anaximandro, submete a Weile (permanência) à experiência grega original do tempo. Desse modo, ao perguntar pelo ser, está perguntando pelas raízes da metafísica e seu horizonte. O próprio Heidegger lembra que a frase citada por Sartre “a essência da pre-sença é sua existência” é mal-entendida toda vez que se esquece que a palavra Wesen (essência) vem escrita entre aspas. Não se trata do conceito de Essenz (essência), que enquanto Wesen deve preceder a existência, o fato. Tampouco se trata da inversão sartreana dessa relação, como se a existência precedesse a Essenz (essência). A meu ver, porém, quando pergunta pelo sentido do ser, Heidegger tampouco pensa “sentido” na linha da metafísica e de seu conceito de essência. Pensa-o, antes, como sentido interrogativo que não espera uma determinada resposta, mas que sugere uma direção do perguntar. VERDADE E METODO II OUTROS 25.

Eu disse certa vez que “o sentido é sentido de direção”. E muitas vezes Heidegger utilizou-se de um arcaísmo ortográfico escrevendo a palavra Sein (ser) como Seyn para sublinhar seu caráter verbal. De modo parecido, deve-se ver minha tentativa de eliminar a herança da ontologia da substância, partindo da conversação e da linguagem comum, linguagem buscada e formada na conversação. Nessa linguagem o elemento determinante é a lógica de [370] pergunta e resposta. Ela abre uma dimensão de entendimento que transcende as expressões fixadas pela linguagem e, portanto, a síntese global no sentido da autocompreensão monológica da dialética. De certo, a dialética idealista não nega sua origem da estrutura fundamental especulativa da linguagem, como demonstrei na terceira parte de Verdade e método I. Mas, quando subordina a dialética a um conceito de ciência e de método, Hegel encobre na verdade sua procedência, sua origem na linguagem. A hermenêutica filosófica tem em mente assim a referência à unidade-dual especulativa que se desenrola entre o dito e o não dito, que na verdade precede a tensão dialética da contradição e sua superação num novo enunciado. Creio que a tentativa de converter em supersujeito o papel que eu reconheci na tradição, a saber, formular perguntas e projetar respostas, buscando reduzir, com isso, a experiência hermenêutica a uma parole vide, como fazem Manfred Frank e Forget, não passa de um erro grosseiro. Isso não encontra base alguma em Verdade e método. Em Verdade e método, tradição e diálogo não representam nenhum sujeito coletivo. Trata-se simplesmente de um coletivo para designar cada vez um texto concreto (no sentido mais amplo de texto, incluindo uma obra de pintura, um edifício e até mesmo um acontecimento natural). O diálogo socrático de cunho platônico é sem dúvida um gênero muito especial de conversação, conduzida por um interlocutor e seguida pelo outro, queira ou não. Mas ele serve de modelo para qualquer diálogo, porque nele não se refutam as palavras mas a alma do outro. O diálogo socrático não é nenhum jogo esotérico de disfarces para ocultar um saber mais fundamental. É a verdadeira realização da anamnesis, da recordação pensante, a única recordação possível para a alma decaída na finitude do corpóreo e que se realiza como conversação. O sentido da unidade especulativa que se realiza na virtualidade da palavra é justamente o fato de essa não ser uma palavra única nem um enunciado construído, mas ultrapassar tudo que é passível de ser enunciado. VERDADE E METODO II OUTROS 25.

O conjunto de nossas reflexões serve de base para depurar o conceito de expressão de sua nuance moderna subjetivista, voltando a referi-lo ao seu sentido originário que provém da gramática e da retórica. A palavra expressão (Ausdruck) corresponde ao latim expres-sio, exprimere, que designa a origem espiritual do discurso e da escrita (verbis exprimere). Mas na língua alemã o termo recebeu sua primeira cunhagem histórica no uso de linguagem da mística, remetendo à formação neoplatônica dos conceitos, que ainda devem ser investigados. Fora dos escritos místicos, a palavra só é retomada realmente no século XVIII. Ali, amplia seu significado, introduzindo-se ao mesmo tempo na teoria estética, onde acaba tomando o lugar que ocupava o conceito da imitação. Mas também a versão subjetivista, segundo a qual o termo expressão significa expressão do que está no interior, algo como a expressão de uma vivência, está muito longe disso. O que domina é o ponto de vista da comunicação e da comunicabilidade, ou seja, trata-se de encontrar a expressão. Isso significa, porém, encontrar uma expressão que tem por objetivo uma impressão, o que não significa, portanto, uma expressão no sentido de uma vivência. Isso vale sobretudo para a terminologia da música. A teoria musical dos afetos, do século XVIII, não quer referir que na música expressamos a nós mesmos, mas que a música expressa algo, propriamente, afetos, que por seu turno devem impressionar. Encontramos algo semelhante na estética de Sulzer (1765): A expressão não deve ser compreendida primordialmente como expressão das próprias sensações, mas expressão que provoca sensações. VERDADE E METODO II ANEXOS EXCURSO VI

Autocompreensão tem a ver com uma decisão histórica e não com uma espécie de posse e disponibilidade de si. Bultmann sempre ressaltou esse aspecto. Por isso, seria um desvirtuamento entender o conceito de compreensão prévia, empregado por Bultmann, como um fincar pé nos preconceitos, como uma espécie de saber prévio. Na verdade, o que Bultmann desenvolveu foi um conceito puramente hermenêutico, motivado pela análise heideggeriana do círculo hermenêutico e pela estrutura prévia comum à existência humana. Refere-se à abertura do horizonte de questionamento como o único local onde pode dar-se compreensão; o que não significa que a compreensão prévia não possa ser corrigida pelo encontro com a palavra de Deus (como ocorre com toda e qualquer palavra). Ao contrário, o sentido desse conceito é tornar visível o movimento da compreensão como essa mesma correção. Deve-se atentar para o fato de que, no caso do apelo da fé, essa “correção” tem um caráter específico e que só se reveste de uma generalidade hermenêutica em função de sua estrutura formal. VERDADE E METODO II ANEXOS 27.

A consciência de não podermos dizer que somos os últimos a quem se dirige a palavra de Deus vem unida com esse prestar ouvidos. Mas disso segue-se que “podemos e devemos permitir que nos sejam indicados nossos limites históricos, tal como tomam forma na nossa compreensão histórica de mundo. Com isso, recebemos a mesma tarefa que vale de há muito para a auto-reflexão da fé. É uma tarefa que partilhamos também com os autores do Novo Testamento”. Desse modo, Fuchs ganha uma nova base hermenêutica, que pode ser legitimada a partir da própria ciência neotestamentária. O anúncio da palavra de Deus é uma tradução das proposições do Novo Testamento, cuja justificação é a teologia. VERDADE E METODO II ANEXOS 27.

Fuchs segue os passos de Bultmann argumentando que, frente à fé, o princípio hermenêutico que serve para a compreensão do Novo Testamento deve ser neutro, uma vez que sua única pressuposição é a pergunta por nós mesmos. Mas essa pergunta se revela como a pergunta que o próprio Deus dirige a nós. Uma gramática da fé deve abordar o modo como esse prestar ouvir procede na realidade, esse ouvir que vai ao encontro do apelo da palavra de Deus. “Saber o que acontece nesse encontro ainda não significa que se possa dizer, sem mais, o que se sabe” (86). Assim, em última instância, a tarefa não é apenas ouvir a palavra, mas também encontrar a palavra que diz a resposta. Trata-se da linguagem da fé. VERDADE E METODO II ANEXOS 27.

O artigo intitulado Übersetzung und Verkündigung (Tradução e anúncio) esclarece melhor em que sentido essa doutrina hermenêutica busca ultrapassar a interpretação existencial proposta por Bultmann. Sua orientação básica é o princípio hermenêutico da tradução. Esse princípio é indiscutível: “A tradução deve criar o mesmo espaço que queria criar um texto quando o espírito se pronunciou nele” (409). Mas, frente ao texto — e esta é uma conseqüência audaz e inevitável — , a palavra tem a primazia, pois é acontecimento da linguagem. Isso deve deixar claro que a relação entre palavra e pensamento não é no sentido de que a palavra expressa só alcança o pensamento a posteriori. A palavra é como um raio certeiro. A seguinte afirmação de Ebeling vem de encontro a isso: “Na realização da pregação, o problema hermenêutico experimenta sua densidade mais extrema”. VERDADE E METODO II ANEXOS 27.

Em todo caso, não podemos deixar-nos induzir ao erro de pensar que o problema da hermenêutica só poderia ser colocado desde o ponto de vista do historicismo moderno. Isso, se admitirmos que os clássicos discutiam as opiniões de seus precursores não como historicamente diferentes, mas como se fossem contemporâneas. Mas a tarefa da hermenêutica de interpretação dos textos herdados da tradição também estava presente então. E, supondo-se que esta interpretação sempre inclui a questão da verdade, talvez ela não esteja tão longe de nossas próprias experiências com textos, como quer supor a metodologia da ciência histórico-filológica. Sabe-se que a palavra hermenêutica se reporta à tarefa do intérprete, o qual explicita e comunica algo incompreensível, por ser falado numa língua estranha — mesmo que essa seja a linguagem dos deuses feita de sinais e signos. O saber que se consagra a essa tarefa sempre foi objeto de possíveis reflexões e desenvolvimento consciente. Esse desenvolvimento pode muito bem ter se dado na forma de uma tradição oral, como ocorreu no sacerdócio deifico. Mas a tarefa da interpretação se apresenta com muita decisão onde há literatura escrita. Tudo que foi fixado por escrito tem algo de estranho, exigindo, enquanto tal, a mesma tarefa de compreensão que encontramos quando se fala algo em língua estrangeira. O intérprete do texto gráfico, assim como o intérprete do discurso divino ou humano, tem a tarefa de superar a estranheza e possibilitar apropriação. Essa tarefa pode complicar-se quando a distância histórica entre o texto e o intérprete se tornar consciente. Isso porque, nesse caso, a tradição que sustenta tanto o texto herdado quanto seus intérpretes está rompida. Creio, no entanto, que sob o ímpeto de falsas analogias metodológicas sugeridas pelas ciências da natureza, a hermenêutica “histórica” se distancia em muito da hermenêutica pré-histórica. Tentei mostrar que essas hermêuticas compartilham pelo menos um traço dominante comum: a estrutura da aplicação. VERDADE E METODO II ANEXOS 27.

Decerto, Hegel não destacou especificamente a lírica como portadora dessa primazia do caráter de linguagem, pois estava demasiadamente influenciado pelo ideal de naturalidade, representado em sua época por Goethe. Por isso, para ele, o poema lírico não representava mais que a expressão subjetiva da interioridade. Mas a verdade é que a palavra lírica é linguagem em um sentido muito característico. Não é o fato de que a palavra lírica pode ser elevada ao ideal depurado da poésie pure que vai mostrar isso. E verdade que esse fato não permite pensar na forma desenvolvida da dialética — como o faz o drama — , mas no elemento especulativo subjacente a toda dialética. Tanto no movimento de linguagem do pensamento especulativo quanto no movimento de linguagem do poema “puro” realiza-se a mesma autopresença do espírito. Também Adorno percebeu e chamou a atenção, com razão, para a afinidade entre o enunciado lírico e o enunciado da especulação dialética. Mas quem fez isso foi sobretudo o próprio Malarmé. VERDADE E METODO II ANEXOS 29.

Isso fica claro sobretudo quando estudamos os diversos modos da fala e suas peculiaridades. Não é só a palavra poética que exibe uma rica gama de diferenciações, como, por exemplo, o épico, o dramático, o lírico. Existem outros modos de linguagem nos quais a relação hermenêutica básica de pergunta e resposta se modifica significativamente. Refiro-me às diversas formas de linguagem religiosa, como a proclamação, a oração, o sermão, a bênção. Cito a “lenda” mítica, o texto jurídico e até a linguagem mais ou menos balbuciante da filosofia. Essas modalidades formam uma problemática da hermenêutica aplicada, à qual dediquei-me cada vez mais desde a aparição de Verdade e método I. Penso ter-me aproximado ao tema a partir de dois ângulos: meus estudos sobre Hegel, nos quais abordei o papel do elemento da linguagem na sua relação com o elemento lógico, e poesia hermética moderna, que analisei em um comentário ao Atemkrista.il de Paul Celan. A relação entre filosofia e poesia ocupa o centro dessas investigações. A reflexão sobre esse tema me serve e pode servir-nos a todos para recordar constantemente que Platão não foi platônico nem a filosofia é escolástica. VERDADE E METODO II ANEXOS 30.