Gadamer (VM): paisagem

A essência de toda arte reside, em si, no fato de que, como Hegel o formulou, “traz o homem para diante de si mesmo”. Também outros objetos da natureza — não somente a figura humana — podem expressar, na representação artística, idéias éticas. Toda representação artística, seja de uma paisagem, seja de uma nature morte, até mesmo a embevecida observação da natureza, causa esse efeito. Nesse sentido, pois, Kant tem razão: a expressão do ético é então emprestada. O homem, pelo contrário, dá expressão a estas idéias no seu próprio ser, porque ele é o que ele é. Uma árvore que se encontra atrofiada devido a infelizes condições de crescimento pode nos parecer algo miserável, mas essa miséria não é a expressão da árvore sentindo-se miserável, e, a partir do ideal da árvore, o atrofiamento não é uma “miséria”. Ao contrário, o homem miserável é tal, medido no próprio ideal humano-ético, (e não somente no caso de lhe atribuirmos um ideal humano que não seja válido, medido ao qual ele nos expressaria miséria, sem ser miserável). Hegel compreendeu isso inteiramente nas suas preleções sobre a estética, quando reproduz a expressão do ético como o aparecer da espiritualidade”. VERDADE E MÉTODO PRIMEIRA PARTE 1.

Assim vemos que, segundo a questão, a idéia de um gosto consumado, discutida por Kant, seria melhor definida através do conceito do gênio. Naturalmente seria desagradável aplicar a idéia do gosto consumado, como tal no campo do belo natural. Para a arte da jardinagem, até pode, eventualmente, ser aceito. Mas, de uma forma conseqüente, Kant cunhou a arte da jardinagem como o belo artístico. No entanto, em face da beleza da natureza, p. ex., da beleza de uma paisagem, a idéia de um gosto consumado está bastante fora do lugar. Será que ele consiste em dignificar segundo o mérito tudo que é belo na natureza? Pode haver ali uma seleção? Existe ali uma ordem hierárquica? Será que uma paisagem ensolarada é mais bela que uma mergulhada em chuva? Afinal, existe na natureza o feio? Ou será que há somente para variações de ânimo, variações de simpatia (Ansprechendes), para gostos diferentes, agrados diferentes? Kant pode ter razão quando considera de importância moral indagar se a natureza pode, seja como for, agradar a alguém. Mas pode-se diante dela diferenciar, com sentido, um bom e um mau gosto? Onde uma tal diferenciação não deixa absolutamente nenhuma dúvida, em face da arte e do artístico, aí, como vimos, o gosto é, ao contrário, apenas uma condição restritiva do belo e não contém o seu genuíno princípio. Assim, a idéia de um gosto consumado, ante a natureza como ante a arte, ganha algo de duvidoso. A gente faz violência ao conceito do gosto quando não se assume nele a mutabilidade do gosto. Se há algo que é um testemunho da mutabilidade de todas as coisas humanas e da relatividade de todos os valores humanos, esse algo é o gosto. VERDADE E MÉTODO PRIMEIRA PARTE 1.

Obviamente, é a indeterminação com que se apresenta o belo da natureza ao espírito que interpreta e entende, que justifica, para falar com Hegel, que ela, “segundo a sua substância, esteja contida no espírito”. Visto esteticamente, Hegel tira aqui uma conseqüência absolutamente correta, que já nos foi insinuada acima, quando falamos do que havia de desagradável na aplicação da idéia do gosto à natureza. Pois é inegável que o julgamento sobre a beleza de uma paisagem fique na dependência do gosto artístico de uma época. Basta pensar, por exemplo, na descrição da fealdade da paisagem dos Alpes, que ainda encontramos no século XVIII — claramente um reflexo do espírito da simetria artística, que dominava o século do absolutismo. É assim que a estética de Hegel se encontra totalmente em cima do ponto de vista da arte. Na arte o homem se encontra a si mesmo, o espírito ao espírito. VERDADE E MÉTODO PRIMEIRA PARTE 1.

Ela não é tal, se apenas estiver de qualquer modo, em algum lugar qualquer, como um edifício que comprometesse a paisagem, mas somente o é quando representa a solução de uma “tarefa arquitetônica”. Por isso a também ciência da arte só considera os edifícios que contêm algo que mereça sua consideração, e chama-os de “monumentos arquitetônicos”. Quando um edifício é uma obra de arte, não representa somente a solução artística de uma tarefa arquitetônica, proposta pelo contexto de finalidade e de vida a que a obra pertence originariamente, senão que, de uma certa forma, a solução mantém também esse contexto, de maneira que ele está ali de modo patente, ainda que sua manifestação atual esteja já muito afastada de sua determinação de origem. Há algo nele que alude ao original. E quando essa determinação original se tornou completamente irreconhecível, ou a sua unidade acaba por romper-se ao cabo de tantas transformações em sucessivos tempos, o próprio edifício se torna incompreensível. A arte arquitetônica, a mais estatuária de todas as espécies de arte, é a que torna mais patente até que ponto a “distinção estética” é secundária. Um edifício não é nunca primariamente uma obra de arte. A determinação do objetivo, pelo qual ele se integra no contexto da vida, não pode separar-se dela, sem que perca algo de sua própria realidade. Se ele for ainda apenas objeto de uma consciência estética, sua realidade será pura sombra e já não vive mais senão sob a forma degenerada do objeto turístico ou de reprodução fotográfica. A “obra de arte em si” se apresenta como uma pura abstração. VERDADE E MÉTODO PRIMEIRA PARTE 2.

Reconhecemos esse fenômeno particularmente na compreensão de textos de língua estrangeira. Aqui se pode ver como a oscilação dos significados verbais vai lentamente se estabilizando no passar, repassar e reproduzir da unidade de sentido própria à estruturação de uma frase. Também isso representa uma descrição ainda muito imperfeita. Pois toda a miséria da tradução consiste em que a unidade intencional de uma frase não se deixa alcançar pela mera subordinação de seus elementos fraseológicos aos elementos fraseológicos correspondentes da outra língua. É assim que nos deparamos com essas figuras horríveis via de regra em livros traduzidos — letras sem espírito. Falta-lhes o constitutivo da linguagem, isto é, a concatenação natural onde uma palavra puxa a outra, onde cada palavra é por assim dizer suscitada por outra, ao mesmo tempo em que deixa em aberto a continuidade do discurso. Uma frase que não tenha sido tão radicalmente transformada pelo engenho de um mestre na arte da tradução, aparecendo desprovida de continuidade natural em relação à frase anterior, é como um mapa em comparação com a própria paisagem. A significação de uma palavra não se dá apenas no sistema e no contexto. Esse estar-em-um-contexto também significa que nunca se pode apartar inteiramente a polissemia que possui uma palavra, mesmo quando o contexto confere um significado bastante unívoco. O sentido literal correspondente à palavra no discurso concreto por certo não é apenas o que está presente. Algo mais está presente, e a presença desse elemento co-presente constitui a força evocativa da vida do (198) discurso. Por isso, podemos assumir que todo dizer sempre acena para o espaço aberto de sua continuidade. Mesmo tomando uma direção, o dizer nunca se esgota, havendo sempre mais por dizer. Isso fundamenta a verdade da tese de que o falar se desenvolve no elemento da “conversa”. VERDADE E METODO II COMPLEMENTOS 14.

A função que o diálogo exerce entre os homens é, porém, muito diversificada. Certa vez, pude observar uma delegação militar de oficiais finlandeses sentados ao redor de uma grande mesa redonda num hotel de Berlim, silenciosos e concentrados. Parecia que entre cada um deles e seu vizinho estendia-se a vasta tundra da paisagem de suas almas como se representasse uma distância insuperável. Qual o viajante dos países nórdicos que não se mostra admirado do constante rebuliço sonoro das conversas travadas nos mercados e praças dos países meridionais, por exemplo, Espanha ou Itália?! Mas quem sabe não devêssemos considerar o primeiro exemplo como falta de disposição para o diálogo e o segundo como uma capacitação para tal. Pois pode ser que o diálogo seja algo (208) bem diferente do que o tipo estilo de intercâmbio travado nos sons ruidosos da vida social. Na queixa de incapacidade para o diálogo não é isso que está em questão. O diálogo precisa ser compreendido em sentido bem mais ambicioso. VERDADE E METODO II COMPLEMENTOS 16.