Gadamer (VM): obra literária

Não é diferente o que ocorre com as outras artes, sobretudo com as artes plásticas. O mito estético da fantasia que cria livremente, que transforma a vivência em obra literária, e o culto do gênio, que dele faz parte, testemunha apenas que, no século XIX, o acervo da tradição mítico-histórica já não era mais um bem incontestável. Porém, mesmo aí, o mito estético da fantasia e da invenção genial ainda representa um exagero, que não resiste àquilo que realmente é. Mesmo assim, a escolha do tema e a formulação do tema escolhido não surgem do livre-arbítrio do artista e não são uma mera expressão de sua interioridade. Antes, o artista dirige-se a estados de ânimo preparados e, para isso, escolhe o que promete causar-lhe efeito. Ele próprio encontra-se em meio às mesmas tradições como o público que ele tem em vista e que se congrega. Nesse sentido, é verdade que ele, como indivíduo, como consciência pensante, não precisa saber expressamente o que faz e o que manifesta sua obra. Não se trata nunca apenas de um mundo estranho da magia, do arrebatamento, do sonho ao qual se sente arrastado o ator, o escultor ou o espectador, mas é sempre ainda o seu próprio mundo, ao qual ele, mais propriamente se transfere, ao se reconhecer mais profundamente nele. Permanece uma continuidade de sentidos, que congrega a obra de arte e o mundo da existência, e da qual nem mesmo a consciência alheada de uma sociedade instruída nunca se separa totalmente. VERDADE E MÉTODO PRIMEIRA PARTE 2.

Disso tudo, tiremos a devida conclusão. O que significa ser estético? Com o conceito do jogo e da transformação em configuração, que caracterizou o jogo da arte, procuramos mostrar (139) algo geral: ou seja, que justamente a representação e correspondentemente a execução da obra literária e da música é algo essencial e, de forma alguma, acidental. Em ambas realiza-se apenas o que as próprias obras de arte já são: a existência daquilo que é representado através delas. A temporalidade específica do ser estético, que é a de ter o seu ser no ser representado, torna-se existente no caso da reprodução, como um fenômeno independente e elevado. VERDADE E MÉTODO PRIMEIRA PARTE 2.

Ela poderá apelar, especialmente, para aquilo que, segundo o uso da linguagem corrente, se chama um “quadro”. Sob essa designação, entendemos, sobretudo, o quadro de parede contemporâneo, que não está fixado em lugar determinado, e cercado pela moldura, a si mesmo se representa inteiramente — possibilitando, por isso mesmo, uma justaposição ao gosto de cada um, tal qual se vê na galeria moderna. Um tal quadro, ao que parece, não tem absolutamente nada em si da dependência objetiva de intermediação, que realçamos na obra literária e na música. Esse quadro, que é pintado exclusivamente para a exposição ou galeria, o que foi se tornando regra com o recuo da arte por encomenda, vem claramente ao encontro da exigência de abstração da consciência estética, bem como da teoria da inspiração, que foi formulada na estética do gênio. O quadro parece pois dar razão à imediaticidade da consciência estética. É como se fosse a principal testemunha com relação à sua exigência universal e não se trata, visivelmente, de nenhuma coincidência casual o fato de que a consciência estética, que desenvolve o conceito da arte e do artístico como forma de concepção de configurações tradicionais, e que, com isso, realiza a diferenciação estética, é simultânea com a criação de acervos que reúnem no museu tudo o que, nesse sentido, estamos vendo. Com isso, tornamos toda obra de arte ao mesmo tempo num quadro; ao livrá-la de todas as suas relações vitais e do que há de especial nas suas condições de acesso, como um quadro, colocamo-la cercada por uma moldura e penduramo-la igualmente na parede. VERDADE E MÉTODO PRIMEIRA PARTE 2.

No que diz respeito à primeira pergunta, é somente aqui que o conceito da representação se emaranha com o conceito do quadro, que se vincula com o seu quadro original. Nas artes transitórias, das quais partimos, falamos, é verdade, de representação, mas não de quadro. A representação aparecia, nesse caso, ao mesmo tempo dupla. Tanto a obra literária como a sua reprodução, como por exemplo, no palco, é representação. E foi para nós de importância decisiva que a verdadeira experiência da arte passasse por entre a duplicação dessas representações, sem as diferenciar. O mundo que aparece no jogo da representação não está posicionado como uma cópia de seu ser. E tão-somente a reprodução, p. ex., a encenação no palco, não é uma cópia, ao lado da qual o quadro originário do próprio drama manteria seu ser-para-si. O conceito da mimesis, que foi empregado para ambas as formas de representação, não significa tanto o ato de copiar (Abbildung), como a manifestação do representado. Sem a mimesis da obra, o mundo não está aí, do mesmo modo como ele está na obra, e sem a reprodução, a obra de sua parte, não está aí. Na representação se realiza, assim, a presença do representado. Iremos reconhecer como justificado o significado fundamental desse entrelaçamento ontológico do ser original e reprodutivo com a primazia metódica que demos às artes transitórias, caso a compreensão que ali obtivemos se preserve nas artes plásticas. É claro que aí não podemos falar da reprodução como sendo genuíno ser da obra. O quadro, antes, enquanto original, rejeita o ser reproduzido. Parece claro, da mesma maneira, que o copiado na cópia possui um ser independente do quadro, e isso de tal maneira que o quadro em contraste com o representado parece ser um ser inferiorizado. Emaranhamo-nos assim na problemática ontológica do quadro original e da cópia. VERDADE E MÉTODO PRIMEIRA PARTE 2.

O palco teatral é, por isso, uma instituição política de extraordinária espécie, porque somente na encenação transparece aquilo tudo que há no jogo, a que está aludindo, o que desperta na repercussão. Ninguém sabe com anterioridade qual será o “resultado” e o que, de alguma forma, irá se perder no vazio. Cada encenação é um acontecimento, mas não um acontecimento que venha a se opor ou posicionar-se paralelamente à obra poética, como algo próprio — a própria obra é que acontece no acontecimento da encenação. É da sua natureza ser tão “ocasional” assim, que a ocasião da encenação traz à fala e deixa transparecer o que está nela. O diretor de teatro, que encena a obra literária, demonstra sua capacidade no fato de que sabe aproveitar a oportunidade. Nisso, porém, age também segundo a indicação. A diferenciação estética bem pode mensurar por dentro a música executada, a partir da tonalidade extraída da leitura da partitura — mas ninguém pode duvidar que ouvir música não é ler. VERDADE E MÉTODO PRIMEIRA PARTE 2.

A caracterização normativa, que se dá com a pertença à literatura universal, situa o fenômeno da literatura sob um novo ponto de vista. Porque, se esta pertença à literatura universal só é reconhecida no caso de uma obra literária que possui um certo status próprio, como poesia ou como obra de arte lingüística, o conceito da literatura, por seu turno, é muito mais amplo do que o da obra de arte literária. Do modo de ser da literatura participa toda tradição lingüística, não somente os textos religiosos, jurídicos, econômicos, públicos e privados de toda classe, mas também os escritos em que se elaboram e interpretam cientificamente esses textos transmitidos, e, por conseqüência, todo o conjunto das ciências do espírito. E mais, a forma da literatura convém em geral a toda investigação científica, na medida em que esta encontra-se essencialmente vinculada ao caráter de ser da linguagem. É a capacidade de escrever, de tudo que é lingüístico, que delimita o mais amplo do sentido de literatura. VERDADE E MÉTODO PRIMEIRA PARTE 2.

Sobre a base dessa metafísica estética da individualidade os princípios hermenêuticos usuais a filólogos e teólogos sofrem uma mudança de rumo peculiar. Schleiermacher segue Friedrich Ast e toda a tradição hermenêutico-retórica, quando reconhece como um traço essencial do compreender o fato de que o sentido do peculiar é sempre somente resultante do contexto (194), e, em última análise, do todo. Esse postulado vale naturalmente para uma gama que vai desde a compreensão gramatical de cada frase, até sua integração no contexto do todo de uma obra literária, e até o todo da literatura e, correspondentemente, o respectivo gênero literário — Schleiermacher aplica-o agora, porém, à compreensão psicológica, que tem de compreender cada formulação do pensamento como um momento vital no contexto total deste homem. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 1.

Entretanto, é evidente que hermenêutica e historiografia não são inteiramente a mesma coisa. Na medida em que aprofundamos um pouco as diferenças metodológicas que as separam, poderemos discernir a sua aparente comunidade e reconhecer sua verdadeira comunidade. O historiador se relaciona diferentemente com os textos transmitidos, na medida em que procura conhecer através deles um trecho do passado. Por isso busca completar e controlar o texto com outras tradições (341) paralelas. Ele considera como que uma debilidade do filólogo o fato deste olhar para seu texto como uma obra de arte. Uma obra de arte é um mundo completo que basta a si próprio. O interesse histórico, porém, não conhece esta auto-suficiência. Dilthey já havia sentido, face a Schleiermacher, que “a filologia gostaria de encontrar em toda parte uma existência acabada em si mesma”. Quando uma obra literária transmitida chega a impressionar o historiador, este fato não pode ter para ele significado hermenêutico algum. Basicamente ele não pode entender-se a si mesmo como destinatário do texto, nem sujeitar-se à sua pretensão. As perguntas que dirige ao texto se referem, antes, a algo que o texto não oferece por si mesmo. E isto vale inclusive para aquelas formas de tradição que pretendem ser por si mesmas representação histórica. Também o historiador tem de ser submetido à crítica histórica. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 2.

É sabido que Platão considerava o desamparo da escrita como uma debilidade muito maior do que a que afeta os discursos (to asthenes to logon); não obstante, quando requer ajuda dialética para compensar essa debilidade dos discursos, na medida em que o caso da escrita lhe parece não ter saída, isso não é evidentemente senão um exagero irônico, através do qual procura ocultar sua própria obra literária e sua própria arte. Na realidade, com a escrita ocorre o mesmo que com a fala. Assim como naquela, correspondem-se mutuamente uma arte da aparência e uma arte do pensar verdadeiro, sofística e dialética, existe também, evidentemente, uma dupla arte de escrever, de maneira que uma serve a um pensamento e a outra a outro. Verdadeiramente existe também uma arte da escrita capaz de vir em ajuda do pensar, e a ela deve subordinar-se a arte da compreensão, que proporciona ao escrito idêntico auxílio. VERDADE E MÉTODO TERCEIRA PARTE 1.

Essa digressão ensina que, quando se trata de literatura, a conjugação de som e sentido possui muitos níveis e distinções tanto no discurso quanto na escrita. Cabe perguntar como se pode reconduzir o discurso mediador do intérprete à realidade dos textos poéticos. A resposta a essa questão deve ser muito radical. Diferentemente de outros textos, o texto literário não se interrompe com o discurso mediador do intérprete, mas é acompanhado de sua participação constante. Isso se pode constatar na estrutura da temporalidade conveniente a todo discurso. Em todo caso, as categorias temporais que utilizamos em relação com o discurso e com a arte da linguagem oferecem uma dificuldade peculiar. Fala-se então de presença, e como eu dizia antes, de auto-apresentação da palavra poética. Mas é uma falácia querer compreender essa presença a partir da linguagem da metafísica, como a atualidade do “que está simplesmente dado”, ou a partir do conceito que caracteriza o que é passível de ser objetivado. Não é essa a atualidade que compete à obra literária, nem a nenhum outro texto. A linguagem e a escrita sempre se mantêm referidas a essa atualidade. Elas não são, mas têm em mente, inclusive quando o que elas têm em mente só existe na palavra que se manifesta. O discurso poético somente se faz efetivo no ato de falar ou de ler; quer dizer, não existe se não é compreendido. VERDADE E MÉTODO II OUTROS 24.