Gadamer (VM): objetivista

Essas declarações do Husserl tardio já podem ter sido motivadas pela confrontação com Ser e tempo, mas a elas precedem inumeráveis tentativas de Husserl, demonstrando que ele tinha sempre em vista a aplicação de suas idéias aos problemas das ciências do espírito históricas. Aqui, portanto, não se trata de um ponto de conexão periférico com o trabalho de Dilthey — ou, mais tarde, com o de Heidegger — mas representa a conseqüência de sua própria crítica à psicologia objetivista e ao objetivismo da filosofia precedente. Isso se torna absolutamente claro após a publicação das Idéias III”. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 1.

Entretanto, já em Husserl se verifica um momento que de (253) fato ameaça despedaçar essa moldura. Sua posição é, na verdade, bem mais do que uma radicalização do idealismo transcendental, e para esse “mais” é característica a função que nele alcança o conceito “vida”. “Vida” não é meramente o “ir vivendo” da atitude natural. “Vida” é também e não menos a subjetividade transcendentalmente reduzida, que é a fonte de todas as objetivações. Assim, sob o título “vida” encontra-se o que Husserl destaca como sua contribuição própria à crítica da ingenuidade objetivista de toda a filosofia precedente. Aos seus olhos, ela consiste em haver revelado o caráter de aparência da controvérsia epistemológica habitual entre idealismo e realismo e, em seu lugar, em haver tematizado a atribuição interna de subjetividade e objetividade. É assim que se esclarece a formulação: “vida produtiva”. “A consideração radical do mundo é pura e sistemática consideração interior da subjetividade que se exterioriza a si mesma no ‘fora’. É como na unidade de um organismo vivo, o qual se pode observar e analisar de fora, mas que somente se pode compreender quando se retrocede até suas raízes ocultas…” Também o comportamento mundano do sujeito, deste modo, não é compreensível nas vivências conscientes e em sua intencionalidade, mas nos “desempenhos” anônimos da vida. A comparação do organismo, que Husserl aqui utiliza, é mais do que uma comparação. Como ele diz expressamente, quer ser tomado ao pé da letra. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 1.

Se acompanharmos essas e outras indicações lingüísticas e conceituais parecidas, que se encontram de quando em quando em Husserl, sentimo-nos próximos do conceito especulativo da “vida” do idealismo alemão. O que Husserl pretende dizer é, sem dúvida, que não se deve pensar a subjetividade como oposta à objetividade, porque esse conceito de subjetividade estaria então sendo pensado de maneira objetivista. Sua fenomenologia transcendental pretende ser, ao contrário, uma “investigação de correlações”. Mas isso quer dizer que o primário é a relação, e que os “pólos” nos quais se desenrola estão circunscritos por ela, da mesma forma que o ser vivo circunscreve todas as suas manifestações vitais na unidade do seu ser orgânico. “A ingenuidade do discurso que fala da ‘objetividade’, que deixa totalmente fora de questão a subjetividade, a qual experimenta e conhece e é a única que produz de uma maneira (254) verdadeiramente concreta; a ingenuidade do cientista da natureza e do mundo em geral, que é cego para o fato de que todas as verdades que ele ganha como objetivas, e mesmo o próprio mundo objetivo que é o substrato de suas fórmulas, é a sua própria configuração de vida, que se tornou nele mesmo — essa ingenuidade deixa de ser possível na medida em que se coloca a vida como objeto de consideração”. É o que escreve Husserl com relação a Hume. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 1.

Ele oferece exatamente o que acima sentimos fazer falta em Dilthey e Husserl. Entre o idealismo especulativo e o novo ponto de vista da experiência de seu século estende-se uma ponte, no sentido de que o conceito da vida é apresentado como o que abrange ambas as direções. A análise da vitalidade, que constitui o ponto de partida de Yorck, por mais especulativo que soe, inclui o modo de pensar das ciências da natureza próprio de seu século — explicitamente, o conceito da vida de Darwin. Vida é auto-afirmação. Essa é a base. A estrutura da vitalidade consiste em ser julgamento, ou seja, afirmar-se a si mesmo como unidade na participação e articulação de si mesmo. Mas o julgamento mostra-se também como a essência da autoconsciência, pois mesmo quando ela se dirime constantemente no si-próprio e no outro, sua consistência, no entanto — enquanto ser vivo — se mantém no jogo e contra-jogo desses seus fatores constitutivos. Pode-se dizer dela o que se afirma (256) de toda vida, que é prova, isto é, experimento. “Espontaneidade e dependência são os caracteres básicos da consciência; são constitutivos tanto no âmbito da articulação somática como da psíquica, do mesmo modo que sem objetividade não existiria nem o ver ou o sentir corporal, nem tampouco o imaginar, o querer ou o experimentar”. Também a consciência deve ser entendida como um comportamento vital. Essa é a exigência metódica fundamental que Yorck coloca à filosofia e na qual se considera uno com Dilthey. E a esse alicerce oculto (Husserl diria: sobre esse desempenho oculto) há que se reconduzir o pensamento. Para isso torna-se necessário o esforço da reflexão filosófica. Pois a filosofia age opondo-se à tendência da vida. Yorck escreve: “O fato é que o nosso pensamento se move nos resultados da consciência” (ou seja, o pensamento não tem consciência da relação real desses “resultados” com o comportamento vital, sobre o qual repousam os mesmos). “A diremptio alcançada é aquele pressuposto”. O conde Yorck quer dizer com isso que os resultados do pensamento somente são resultados, na medida em que se encontrem separados e se deixem separar do comportamento vital. A partir daí o conde Yorck conclui que a filosofia tem de reverter essa divisão. Tem de repetir, na direção inversa, o experimento da vida “com o fim de reconhecer as relações que condicionam os resultados da vida”. Isso pode estar formulado de uma maneira muito objetivista e natural-científica, e a teoria husserliana da redução poderia apelar, diante disso, à sua forma de pensar estritamente transcendental. Na verdade, nas reflexões de Yorck, ousadas e conscientes de seus objetivos, não somente se mostra com grande clareza a tendência comum a Dilthey e a Husserl, senão que nelas ele aparece como nitidamente superior a estes. Pois, aqui, o pensamento prossegue realmente o nível da filosofia da identidade do idealismo estético e, com isso, torna-se evidente a procedência oculta do conceito da vida de que estão em busca Dilthey e Husserl. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 1.

A escola histórica, porém, sobretudo na forma decisiva que Droysen, seu metodologista mais arguto, reivindica para a tarefa (124) do historiador, não aceitou de modo algum essa total alienação objetivista do objeto da história. Pelo contrário, Droysen perseguiu essa “objetividade eunuca” com um sarcasmo mordente, e caracterizou a pertença às grandes forças morais, que regem a história, como a condição prévia de toda compreensão histórica. Sua célebre fórmula, segundo a qual a tarefa do historiador consiste em compreender pela via da investigação, contém um aspecto teológico. Os planos da Providência estão ocultos para o homem. Contudo, mediante a investigação das estruturas da história do mundo, o espírito histórico pode adquirir uma idéia do sentido oculto da totalidade. Compreender, aqui, é mais do que um método universal apoiado ocasionalmente na afinidade ou congenialidade do historiador com seu objeto histórico. Não é só uma questão de casual simpatia pessoal. Na escolha dos objetos e dos pontos de vista sob os quais se apresenta um objeto como um problema histórico, já está atuando um elemento da própria historicidade da compreensão. VERDADE E METODO II COMPLEMENTOS 9.

Em um artigo sobre a Epístola aos Romanos, de Karl Barth, Gerhard Krüger já havia tentado radicalizar, nessa direção, o princípio da teologia dialética. E muito do entusiasmo inesquecível que marca os anos que Heidegger passou em Marburgo deve-se às conquistas teológicas que Bultmann conseguiu extrair da crítica heideggeriana ao subjetivismo objetivista e objetivante da modernidade. VERDADE E METODO II COMPLEMENTOS 9.

K.O. Apel, em todo caso, faz essa crítica porque não compreendeu direito o que tem em mente a hermenêutica filosófica quando fala de aplicação. A análise que faço da experiência hermenêutica tem como objeto a praxis exitosa das ciências hermenêuticas, na qual certamente não está atuando nenhuma “aplicação consciente” que pudesse favorecer uma corrupção ideológica do conhecimento. Essa análise deveria ser levada realmente a sério. Esse mal-entendido já fora objeto de preocupação de Betti. Aqui está em jogo sem dúvida uma obscuridade no conceito de consciência de aplicação. É absolutamente verdadeiro, como constata Apel, que frente à auto-evidência objetivista das ciências compreensivas e face à práxis vital da compreensão, a consciência de aplicação (261) apresenta-se como uma exigência hermenêutica. Assim, uma hermenêutica filosófica, no estilo que procurei desenvolver, torna-se “normativa”, no sentido de que busca substituir uma má filosofia por outra melhor. Mas não propaga uma nova práxis e não há indícios que afirmem que a práxis hermenêutica se guie concretamente por uma consciência e tendência de aplicação, e isso inclusive no sentido de uma legitimação consciente de uma tradição vigente. VERDADE E METODO II OUTROS 19.

O discurso sobre a aplicação consciente é suficientemente desorientador também em outros âmbitos. Continuo perplexo diante do fato de que no caso do diretor de teatro ou do músico Apel fale de atualização no sentido de uma aplicação consciente, como se nesse caso o que guia o conjunto da interpretação não fosse uma ligação à obra que deve ser reanimada. Na verdade, consideramos ser uma interpretação a execução de uma representação cênica ou uma reprodução musical justo porque a própria obra é enunciada em seu verdadeiro conteúdo. Mas, ao contrário, quando nos pedem (264) uma tosca tendência atualizadora e uma alusão clara ao presente na produção reprodutiva, temos razão em considerá-las inadequadas. Parece-me que a imagem do intérprete, que representa o modelo de fato para as tarefas hermenêuticas, será subinterpretada se esquecermos que o intérprete não pode traduzir, mas deve representar a parte que ele compreendeu diante da outra parte, em seu idioma (dela). Nesse caso, parece-me ser decisivo um conceito objetivista de sentido e de transparência de sentido que não corresponde à coisa em questão. VERDADE E METODO II OUTROS 19.