Gadamer (VM): objetividade da linguagem

Da relação mundana da linguagem, segue-se seu caráter peculiar de coisa. O que vem à fala são conjunturas. Uma coisa que se comporta desse modo ou de outro. Nisso estriba-se o reconhecimento da alteridade autônoma, que pressupõe por parte do falante uma distância própria com respeito à coisa. Sobre essa distância repousa o fato de que algo possa destacar-se como conjuntura própria e converter-se em conteúdo de uma proposição, suscetível de ser entendida pelos demais. Na estrutura da conjuntura que se destaca, está dado o fato de que sempre haja nela algum componente negativo. A determinatividade de qualquer ente consiste precisamente em ser tal coisa e não ser tal outra. Em conseqüência existem, por princípio, conjunturas negativas, que o pensamento grego leva em conta pela primeira vez. Já na obstinada monotonia do princípio eleático da correspondência de ser e noein o pensamento grego segue o caráter fundamental de coisa, próprio da linguagem, e, em sua superação do conceito eleático do ser, Platão reconhece que o não-ser no ser é o que, na realidade, torna possível que se fale do ente. É claro que na variada articulação do logos do eidos não podia desenvolver-se adequadamente, como já vimos, a questão do ser próprio da linguagem; tão penetrado estava o pensamento grego da objetividade da linguagem. Perseguindo a experiência natural do mundo em sua conformação lingüística, o pensamento grego pensa o mundo como o ser. O que pensa em cada caso como ente destaca-se como logos, como conjuntura enunciável, a partir de um todo circundante, que constitui o horizonte do mundo da linguagem. O que desse modo se pensa como ente não é, na realidade, objeto de enunciados, mas “vem à fala em enunciados”. Com isso, ganha sua verdade, seu caráter de ser e estar aberto no pensamento humano. Desse modo, a ontologia grega se fundamenta na objetividade (Sachlichkeit) da linguagem, concebendo a linguagem a partir do enunciado. VERDADE E MÉTODO TERCEIRA PARTE 3.

Se retivermos isso, já não poderemos continuar confundindo a objetividade (Sachlichkeit) da linguagem com a objetividade (Objektivität) da ciência. A distância inerente à relação lingüística para com o mundo não proporciona, por si mesma, e enquanto tal, esse outro gênero de objetividade que produzem as ciências naturais, eliminando os elementos subjetivos do conhecer. A distância e a objetividade da linguagem é também, evidentemente, um verdadeiro produto que não se faz por si. Já sabemos quanto contribui ao domínio de uma experiência o apreendê-la em linguagem. Com eia parece como se se pusesse distância à sua imediatez ameaçadora fulminante, como se fosse reduzida às devidas proporções, se tornasse comunicável e domesticada. No entanto, essa maneira de dominar a experiência é claramente diferente de sua elaboração pela ciência, que a objetiva e a torna disponível para fins de seu desígnio. Quando o cientista reconheceu as leis de um processo da natureza, ele recebeu algo em suas mãos e pode tentar ver se pode reconstruí-lo. Na experiência natural do mundo, tal como é cunhada linguisticamente, não há nada disso. Falar não significa, de maneira alguma, tornar coisas disponíveis e calculáveis. E não somente porque o enunciado e o juízo representam uma mera forma especial, dentro da multiplicidade do comportamento lingüístico, mas porque essa experiência permanece, ela mesma, entrelaçada no comportamento vital. A ciência objetivadora considera, por isso, a conformação lingüística da experiência natural do mundo como uma fonte de preconceitos. Como ensina o exemplo de Bacon, a nova ciência, com seus métodos de medição matemática, teria que abrir um espaço para seus próprios planos construtivos de investigação, precisamente contra o preconceito da linguagem e sua ingênua teleologia. VERDADE E MÉTODO TERCEIRA PARTE 3.

De outra parte, existe um nexo positivo e objetivo entre a objetividade da linguagem e a capacidade do homem para fazer ciência. Isso se mostra de um modo particularmente claro na ciência antiga, cuja procedência, a partir da experiência lingüística do mundo, constitui ao mesmo tempo a sua caracterização e a sua debilidade específicas. Para poder superar sua debilidade, o seu ingênuo antropocentrismo, a ciência moderna teve de renunciar também à sua caracterização, isto é, à sua (458) integração no comportamento natural do homem no mundo. Isso pode ser ilustrado muito bem com o conceito de “teoria”. O que se chama teoria, dentro da ciência moderna, pelo que parece, quase mais nada tem a ver com aquela atitude de observar e saber, na qual os gregos acolhiam a ordem do mundo. A teoria moderna é um meio construtivo, pelo qual reúnem-se unitariamente experiências e torna-se possível seu domínio. VERDADE E MÉTODO TERCEIRA PARTE 3.

Da relação mundana da linguagem, segue-se seu caráter peculiar de coisa. O que vem à fala são conjunturas. Uma coisa que se comporta desse modo ou de outro. Nisso estriba-se o reconhecimento da alteridade autônoma, que pressupõe por parte do falante uma distância própria com respeito à coisa. Sobre essa distância repousa o fato de que algo possa destacar-se como conjuntura própria e converter-se em conteúdo de uma proposição, suscetível de ser entendida pelos demais. Na estrutura da conjuntura que se destaca, está dado o fato de que sempre haja nela algum componente negativo. A determi-natividade de qualquer ente consiste precisamente em ser tal coisa e não ser tal outra. Em conseqüência existem, por princípio, conjunturas negativas, que o pensamento grego leva em conta pela primeira vez. Já na obstinada monotonia do princípio eleático da correspondência de ser e noein o pensamento grego segue o caráter fundamental de coisa, próprio da linguagem, e, em sua superação do conceito eleático do ser, Platão reconhece que o não-ser no ser é o que, na realidade, torna possível que se fale do ente. É claro que na variada articulação do logos do eidos não podia desenvolver-se adequadamente, como já vimos, a questão do ser próprio da linguagem; tão penetrado estava o pensamento grego da objetividade da linguagem. Perseguindo a experiência natural do mundo em sua conformação lingüística, o pensamento grego pensa o mundo como o ser. O que pensa em cada caso como ente destaca-se como logos, como conjuntura enunciável, a partir de um todo circundante, que constitui o horizonte do mundo da linguagem. O que desse modo se pensa como ente não é, na realidade, objeto de enunciados, mas “vem à fala em enunciados”. Com isso, ganha sua verdade, seu caráter de ser e estar aberto no pensamento humano. Desse modo, a ontologia grega se fundamenta na objetividade (Sachlichkeit) da linguagem, concebendo a linguagem a partir do enunciado. VERDADE E MÉTODO TERCEIRA PARTE 3.

Se retivermos isso, já não poderemos continuar confundindo a objetividade (Sachlichkeit) da linguagem com a objetividade (Objektivität) da ciência. A distância inerente à relação lingüística para com o mundo não proporciona, por si mesma, e enquanto tal, esse outro gênero de objetividade que produzem as ciências naturais, eliminando os elementos subjetivos do conhecer. A distância e a objetividade da linguagem é também, evidentemente, um verdadeiro produto que não se faz por si. Já sabemos quanto contribui ao domínio de uma experiência o apreendê-la em linguagem. Com eia parece como se se pusesse distância à sua imediatez ameaçadora fulminante, como se fosse reduzida às devidas proporções, se tornasse comunicável e domesticada. No entanto, essa maneira de dominar a experiência é claramente diferente de sua elaboração pela ciência, que a objetiva e a torna disponível para fins de seu desígnio. Quando o cientista reconheceu as leis de um processo da natureza, ele recebeu algo em suas mãos e pode tentar ver se pode reconstruí-lo. Na experiência natural do mundo, tal como é cunhada linguisticamente, não há nada disso. Falar não significa, de maneira alguma, tornar coisas disponíveis e calculáveis. E não somente porque o enunciado e o juízo representam uma mera forma especial, dentro da multiplicidade do comportamento lingüístico, mas porque essa experiência permanece, ela mesma, entrelaçada no comportamento vital. A ciência objetivadora considera, por isso, a conformação lingüística da experiência natural do mundo como uma fonte de preconceitos. Como ensina o exemplo de Bacon, a nova ciência, com seus métodos de medição matemática, teria que abrir um espaço para seus próprios planos construtivos de investigação, precisamente contra o preconceito da linguagem e sua ingênua teleología. VERDADE E MÉTODO TERCEIRA PARTE 3.

Convém não desatender esse aspecto, quando se pretende afirmar que a origem da ciência é grega. Já devia ter passado definitivamente o tempo em que se tomava como padrão o método científico moderno e se interpretava Platão por referência a Kant, e a idéia por referência à lei da natureza (neokantismo), ou se alardeava que em Demócrito já aparecia o começo esperançoso do verdadeiro conhecimento “mecânico” da natureza. Já uma simples reflexão sobre a superação fundamental hegeliana do ponto de vista da compreensão, sob o fio condutor da idéia da vida, pode mostrar os limites de semelhante consideração. Creio que Heidegger alcança mais tarde, no Ser e tempo, o ponto de vista, sob o qual se pode pensar tanto a diferença, quanto a vinculação entre a ciência grega e a moderna. Quando mostra o conceito do ser simplesmente dado (Vorhandenheit) como um modo deficiente do ser, e quando, o reconhece como pano de fundo da metafísica clássica e de sua sobrevivência no conceito moderno da subjetividade, persegue de fato um nexo ontológico correto entre a teoria grega e a ciência moderna. No horizonte de sua interpretação temporal do ser, a metafísica clássica lhe parece, em seu conjunto, como uma ontologia do simplesmente dado, e a ciência moderna lhe parece, sem dar-se conta disso, sua herdeira. Na própria teoria grega havia, no entanto, algo mais que isso. Theoria abarca não tanto o simplesmente dado, mas também a própria coisa (Sache), que ainda tem a dignidade da “coisa” (“Ding”). O próprio Heidegger destacará mais tarde, que a experiência da coisa tem pouco a ver com a pura constatabilidade do mero ser simplesmente dado, como com a experiência das chamadas ciências empíricas. Por conseqüência, (460) temos de manter tanto a dignidade da coisa como a objetividade (Sachlichkeit) da linguagem, livres do preconceito contra a ontologia do simplesmente dado e portanto do conceito da objetividade (Objetivität). VERDADE E MÉTODO TERCEIRA PARTE 3.

Surge aqui a máxima da objetividade (Sachlichkeit), conhecida também como a reflexão da filosofia, a partir da famosa frase de Bacon, que Kant escolheu como lema de sua Crítica da razão pura: De nobis ipsis silemus, de re autem quae agitur… VERDADE E MÉTODO II PRELIMINARES 6.

Entre os clássicos do pensamento filosófico, Hegel é um dos maiores defensores dessa objetividade (Sachlichkeit). Fala sobre a ação da coisa e caracteriza a verdadeira especulação filosófica pelo fato de que na objetividade (Sachlichkeit) estaria atuando a própria coisa (Sache) e não o capricho livre das idéias que nos ocorrem, isto é, de nosso comportamento reflexivo para com a coisa (Sache). Também a conhecida máxima fenomenológica “para as coisas elas mesmas”, que cunhou uma nova atitude de investigação filosófica no princípio do século, tem em mente algo parecido. O que a análise fenomenológica quis colocar a descoberto foram as pressuposições incontroladas das construções e teorias inadequadas, preconceituosas e arbitrárias, demonstrando sua ilegitimidade pela análise imparcial. VERDADE E MÉTODO II PRELIMINARES 6.

O conceito de coisa (Sache) não traduz apenas o conceito jurídico romano de res; a palavra alemã Sache (coisa) e seu significado assumem sobretudo o que expressa a palavra latina causa. No uso da língua alemã, a palavra Sache significa em primeiro lugar causa, isto é, a coisa (Sache) litigada, que está em questão. Originalmente é a coisa que se coloca no centro entre as partes litigantes, porque ainda não se tendo sentenciado sobre ela há que se tomar uma decisão. A coisa (Sache) precisa ser protegida contra a apoderação particular de uma ou de outra parte. Nesse contexto, objetividade (Sachlichkeit) significa o oposto, a parcialidade, isto é, o contrário do abuso do direito para fins particulares. O conceito jurídico “a natureza da coisa (Sache)” não significa, por certo, uma coisa (Sache) disputada entre as partes, mas os limites colocados ao arbítrio pelo legislador, na imposição da lei ou na interpretação jurídica da mesma. O apelo à natureza da coisa (Sache) refere-se a uma ordenação livre do arbítrio humano e quer fazer prevalecer o espírito vivo da justiça mesmo contra a literalidade da lei. Também aqui, portanto, a natureza da coisa (Sache) é algo que se faz valer, algo que temos que respeitar. VERDADE E MÉTODO II PRELIMINARES 6.