Gadamer (VM): neoplatônica

Na essência da emanação reside o fato de que o emanado é uma supra-abundância. Aquilo de onde a emanação flui não se torna menor, por isso. O desenvolvimento desse pensamento através da filosofia neoplatônica, que despedaça o domínio da ontologia grega da substância, fundamenta o status ontológico positivo do quadro. Pois quando o uno original não se torna menor por causa da profusão da multiplicidade que sai dele, isso, diz certamente que o ser se torna mais. VERDADE E MÉTODO PRIMEIRA PARTE 2.

É claro que a analogia entre os dois modos de ser criador tem seus limites, que correspondem às diferenças, antes acentuadas, entre palavra divina e humana. A palavra divina cria o mundo, mas não o faz numa sequência temporal de pensamentos criadores e de dias da criação. O espírito humano, pelo contrário, somente possui a totalidade de seus pensamentos na sequencialidade temporal. É verdade que não se trata de uma relação puramente temporal, como já vimos a propósito de Tomás de Aquino. Nicolau de Cusa também ressalta essa medida. E como a série dos números: sua geração não é na realidade um acontecer temporal, mas um movimento da razão. Nicolau de Cusa considera que é esse mesmo movimento da razão que opera, quando se extrai do sensorial a formação dos gêneros e espécies, tal como ocorrem nas palavras, e se desprendem em conceitos e palavras individuais. Também eles são entia rationes (439). Por mais platônico-neoplatônico que soe esse discurso sobre o “desenvolvimento”, Nicolau de Cusa supera, na realidade, o esquematismo emanantista da doutrina neoplatônica da explicatio em pontos decisivos; pois, contra ela, desenvolve a doutrina cristã do verbo. A palavra não é, para ele, um ser distinto do espírito, nem uma manifestação minorada ou debilitada do mesmo. Para o filósofo cristão é o conhecimento disso o que constitui sua superioridade sobre os platônicos. VERDADE E MÉTODO TERCEIRA PARTE 2.

O fato de que uma ou outra vez possamos nos reportar a Platão, apesar de que a filosofia grega do logos somente permite apreciar de maneira muito fragmentária o solo da experiência hermenêutica, o centro da linguagem, o devemos evidentemente a essa outra face da doutrina platônica da beleza, a que acompanha a história da metafísica aristotélico-escolástica como uma espécie de corrente subterrânea, e que emerge, de vez em quando, como ocorre na mística neoplatônica e cristã, e no espiritualismo filosófico e teológico. Nessa tradição do platonismo é onde se desenvolve o vocabulário conceitual que o pensamento da finitude da existência humana necessita. Também a afinidade que reconhecemos entre a teoria platônica da beleza e a ideia de uma hermenêutica universal testemunha a continuidade dessa tradição platônica. VERDADE E MÉTODO TERCEIRA PARTE 3.

O autor finca pé num conceito de “hermenêutica construtiva” que ele formulou e com a qual busca conectar de modo um tanto ridículo o conceito husserliano dos atos que dão sentido (83s). O certo é que, contra essa doutrina de Husserl, há certas objeções que deveriam partir sobretudo da crítica ontológica de Heidegger contra os preconceitos de Husserl. Mas o que tem isso a ver com uma “hermenêutica construtiva”? E o que seria “hermenêutica construtiva”? Tampouco a ideia da força expressiva da linguagem (298) tem algo a ver com a frase heideggeriana “a linguagem fala”. O sentido da formulação provocativa de Heidegger é a precedência da linguagem com relação a qualquer interlocutor singular. Cabe afirmar assim, num certo sentido — mas certamente não no sentido suposto pelo autor — que a linguagem possui também uma certa prioridade, embora limitada, sobre o pensamento. O sentido inteligível da frase “a linguagem fala” está implícito, segundo me parece, na ideia neoplatônica de que a palavra singular, que é na verdade a palavra do pensamento, articula-se nas palavras e no discurso. O próprio autor toca nesse tema no final do seu tratado quando cita a psyque de Plotino (82), mas sem extrair dele nenhuma conclusão. Creio ter demonstrado que essa doutrina tem a seu favor tanto o pensamento de Agostinho quanto o de Nicolau de Cusa. O papel que o pietismo desempenha na “psicologização” da interpretação representa quem sabe a mediação decisiva entre o legado retórico-humanista e a teoria romântica (A.H. Francke, Rambach). Jaeger não faz nenhuma referência a essa mediação. VERDADE E MÉTODO II OUTROS 21.

É estranho que um pesquisador de Plotino, tão conceituado como Richard Harder, tenha criticado, em sua última conferência, o conceito de fonte, por causa de sua “procedência das ciências da natureza” (Source de Plotin, entretiens V, VII, Quele oder Tradition?). Por mais justificada que seja a crítica à pesquisa das fontes puramente externa, o conceito de fonte tem uma legitimação bem mais fundamentada. Como metáfora filosófica, esse conceito é de origem platônica e neoplatônica. A imagem que guia essa metáfora é a erupção da água pura e fresca, que brota de uma profundeza invisível. Testemunha disso, entre outras coisas, é a reiterada construção pege kai arche (Faidro, 245c, assim como muitas citações em Philo e Plotino). Como termo filológico, o conceito de fons parece só ter sido introduzido na época do humanismo, e mesmo ali não significa em primeiro lugar o que conhecemos pela investigação das fontes, mas a parole ad fontes, o retorno às fontes, como acesso à verdade originária e não-desfigurada dos autores clássicos. Também isso confirma nossa constatação de que a filologia, nos seus textos, busca a verdade que pode neles se encontrar. A passagem do conceito para o sentido técnico da palavra, usual hoje, deveria conservar algo do significado originário, na medida em que a fonte diferencia-se da reprodução turva ou da apropriação falsificadora. Isso esclarece, de modo específico, que o conceito de fonte só se conhece na tradição literária. Somente o que é transmitido pela linguagem proporciona uma abertura e acesso constante e pleno ao que essa tradição contém; não é preciso restringir-se a interpretar, como ocorre com outros documentos ou relíquias. Pode-se também haurir diretamente da fonte e nela medir suas derivações posteriores. Tudo isso não são imagens da ciência da natureza. São imagens espirituais e de linguagem, que no fundo confirmam o que pensa Harder, a saber, que as (384) fontes não precisam turvar-se pelo fato de serem usadas. Da fonte brota sempre de novo água fresca e o mesmo acontece com todas as verdadeiras fontes espirituais da tradição. Vale a pena estudá-las, porque sempre podem proporcionar algo diferente do que se hauriu delas até o momento. VERDADE E MÉTODO II ANEXOS EXCURSO V

O conjunto de nossas reflexões serve de base para depurar o conceito de expressão de sua nuance moderna subjetivista, voltando a referi-lo ao seu sentido originário que provém da gramática e da retórica. A palavra expressão (Ausdruck) corresponde ao latim expres-sio, exprimere, que designa a origem espiritual do discurso e da escrita (verbis exprimere). Mas na língua alemã o termo recebeu sua primeira cunhagem histórica no uso de linguagem da mística, remetendo à formação neoplatônica dos conceitos, que ainda devem ser investigados. Fora dos escritos místicos, a palavra só é retomada realmente no século XVIII. Ali, amplia seu significado, introduzindo-se ao mesmo tempo na teoria estética, onde acaba tomando o lugar que ocupava o conceito da imitação. Mas também a versão subjetivista, segundo a qual o termo expressão significa expressão do que está no interior, algo como a expressão de uma vivência, está muito longe disso. O que domina é o ponto de vista da comunicação e da comunicabilidade, ou seja, trata-se de encontrar a expressão. Isso significa, porém, encontrar uma expressão que tem por objetivo uma impressão, o que não significa, portanto, uma expressão no sentido de uma vivência. Isso vale sobretudo para a terminologia da música. A teoria musical dos afetos, do século XVIII, não quer referir que na música expressamos a nós mesmos, mas que a música expressa algo, propriamente, afetos, que por seu turno devem impressionar. Encontramos algo semelhante na estética de Sulzer (1765): A expressão não deve ser compreendida primordialmente como expressão das próprias sensações, mas expressão que provoca sensações. VERDADE E MÉTODO II ANEXOS EXCURSO VI

Isso faz parte da antiga tradição neoplatônica. A metáfora tem seu pointe no fato de a forma cunhada não estar presente fragmentariamente, mas estar plenamente presente em todas as cunhagens. A aplicação do conceito no “pensamento emanantista” também se apoia nessa verdade. Segundo Rothacker, essa ideia está presente como fundamento geral de nossa imagem histórica do mundo. É claro que a crítica à psicologização do conceito de “expressão” abrange todo o conjunto da presente investigação e serve de base para a crítica à “arte da vivência” e à hermenêutica romântica. VERDADE E MÉTODO II ANEXOS EXCURSO VI