O primeiro exemplo é o que constitui a base dos estudos de Wilhelm Dilthey sobre a história da hermenêutica, aquela obra premiada da Academia das ciências de Berlim, escrita por Dilthey em sua juventude e da qual só conhecíamos alguns fragmentos e um resumo de 1900, até ser finalmente publicada em 1966 graças à redação de Martin Redekner do segundo volume inacabado da Vida de Schleiermacher, de Dilthey. Ali Dilthey faz uma apresentação magistral de Flacius documentada com inúmeras citações. Examina e valoriza a teoria hermenêutica de Flacius utilizando o critério do sentido histórico que tomou consciência de si próprio e do método científico, histórico-crítico. À luz desse critério mescla-se na obra de Flacius a antecipação genial de certas verdades com incríveis recaídas na estreiteza dogmática e no formalismo vazio. Na realidade, se a interpretação da Sagrada Escritura não tivesse apresentado outro problema a não ser o que ocupou a teologia histórica da época liberal, à qual pertenceu Dilthey, teríamos dito a última palavra com isso. A intenção louvável de se compreender cada texto desde sua circunstância própria, sem submetê-lo a nenhuma pressão dogmática, leva finalmente, na aplicação ao Novo Testamento, à dissolução do cânon, se dermos prioridade, com Schleiermacher, à interpretação “psicológica”. Cada escritor do Novo Testamento é um caso à parte nessa perspectiva hermenêutica, e isso leva a solapar a dogmática protestante apoiada no princípio bíblico. É uma consequência que Dilthey aprovou implicitamente. Está implícita em sua crítica a Flacius. Dilthey contesta a exegese de Flacius em sua concepção histórica e abstratamente lógica do princípio da Escritura global ou do cânon. A tensão entre dogmática e exegese aparece também em outras passagens da exposição de Dilthey e sobretudo na crítica a Franz e à sua ênfase na primazia do contexto da Escritura global frente aos textos soltos. Atualmente a crítica à teologia histórica levada a efeito nos últimos cinquenta anos e que culmina na elaboração do conceito de “querigma” nos tornou mais receptivos à legitimidade hermenêutica do cânon e em consequência à legitimidade hermenêutica do interesse dogmático em Flacius. VERDADE E MÉTODO II OUTROS 20.
Em minhas investigações, coloquei em jogo conceitos “clássicos” como o conceito de mimesis, de “re-presentação”, não para (478) defender ideais classistas, mas para poder ultrapassar o conceito do estético, que corresponde à religião da cultura burguesa. Compreendeu-se isso como uma espécie de recaída em um platonismo, completa e definitivamente superado pela concepção moderna de arte. Mas isso também não me parece tão simples. A teoria do reconhecimento, sobre o que repousa toda representação mimética, não é mais que um primeiro aceno para compreender corretamente a pretensão ontológica da representação artística. O próprio Aristóteles, que derivou a arte, como mimesis, a partir da alegria do conhecimento, caracteriza a diferença entre o poeta e o historiador pelo fato de que aquele não apresenta as coisas como aconteceram, mas como poderiam acontecer. Com isso, atribui à poesia uma generalidade que nada tem a ver com a metafísica substancialista de uma estética classista da imitação. A formulação conceitual de Aristóteles aponta, antes, para a dimensão do possível — e com isso também a da crítica à realidade (podemos sentir um forte sabor dessa crítica na comédia antiga). Apesar de tantas teorias classistas da imitação terem se apoiado em Aristóteles, a legitimidade hermenêutica desses conceitos parece-me incontestável. VERDADE E MÉTODO II ANEXOS 29.