Os filólogos, que foram seus precedentes imediatos, se encontravam ainda numa outra posição. Para eles a hermenêutica era determinada pelo conteúdo do que se devia compreender — e isso consistia a unidade óbvia da literatura vétero-cristã. O que Ast propõe como objetivo de uma hermenêutica universal, isto é, “alcançar a unidade da vida grega e cristã”, expressa o que pensam, no fundo, todos os “humanistas cristãos”. — Schleiermacher, ao contrário, já não busca a unidade da hermenêutica na unidade de conteúdo da tradição, a que se deve aplicar a compreensão, mas a procura, à margem de toda especificação de conteúdo, na unidade de um procedimento que nem sequer é diferenciada pelo modo como as ideias foram transmitidas, se por escrito ou oralmente, se numa língua estranha ou na própria e contemporânea. O esforço da compreensão tem lugar cada vez que não se dá uma compreensão imediata, e correspondentemente cada vez que se tem de contar com a possibilidade de um mal-entendido. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 1.
Para poder situar em seu pano de fundo correto a verdadeira virada que Schleiermacher dá à história da hermenêutica, começaremos com uma reflexão que nele não desempenha o menor papel, e que desde ele desapareceu por completo dos questionamentos da hermenêutica (coisa que também restringe de uma maneira muito peculiar o interesse histórico de Dilthey pela história da hermenêutica), que na verdade domina o problema da hermenêutica e só através da qual torna-se compreensível a posição que Schleiermacher ocupa na história da hermenêutica. Partiremos do lema: compreender significa, de princípio, entender-se uns com os outros. Compreensão é, de princípio, entendimento. Assim, os homens se entendem entre si, na maioria das vezes imediatamente, isto é, vão se pondo de acordo até chegar a um entendimento. Acordo é sempre, portanto, acordo sobre algo. Compreender-se é compreender-se em (184) algo. Já a linguagem mostra que o “sobre quê” e o “em quê” não são apenas um objeto qualquer do discurso, do qual a compreensão mútua pudesse prescindir ao buscar seu caminho, mas são, antes, caminho e meta do próprio compreender-se. E quando se pode dizer que duas pessoas se entendem, independentemente do “sobre quê” e do “em quê”, isso quer dizer que não somente se entendem nisso ou naquilo, mas em todas as coisas essenciais que unem os homens. A compreensão só se converte numa tarefa especial no momento em que esta vida natural experimenta alguma distorção no co-visar do visado, que é um visar da coisa em causa comum. No momento em que se produz um mal-entendido, ou alguém manifesta uma opinião que causa estranheza por ser incompreensível, é apenas aí que a vida natural fica tão inibida com relação à coisa em causa comum, que a opinião enquanto opinião, isto é, enquanto opinião do outro, do tu ou do texto, se converte num dado fixo. Mas mesmo assim, ainda se procura em geral chegar a um acordo, e não somente compreender. E isso, de tal modo, que se refaz o caminho em direção à coisa em causa. Só quando se mostram vãs todas essas idas e vindas, que perfazem a arte do diálogo, da argumentação, do perguntar e do responder, do objetar e do refutar, e que se realizam também face a um texto como diálogo interior da alma que busca a compreensão, far-se-á uma mudança no questionamento. Só então o esforço da compreensão vai perceber a individualidade do tu e considerar sua peculiaridade. Na medida em que se trata de uma língua estrangeira, o texto já será, isso não é mais do que uma condição prévia. O verdadeiro problema da compreensão aparece quando, no esforço de compreender um conteúdo, coloca-se a pergunta reflexiva de como o outro chegou à sua opinião. Pois é evidente que um questionamento como este anuncia uma forma de alteridade bem diferente, e significa, em último caso, a renúncia a um sentido comum. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 1.
E de se perguntar, se se pode fazer essa distinção entre a compreensão e a produção da igualdade com o leitor original. Na verdade, essa condição prévia ideal da equiparação com o leitor não se pode realizar antes do esforço da compreensão propriamente dito, já que está absolutamente absorvida por este. Também a intenção de um texto contemporâneo, com cuja linguagem não estamos suficientemente familiarizados ou cujo conteúdo nos seja estranho, só nos virá a ser revelada do modo já descrito, no vaivém do movimento circular entre o todo e as partes. É o que Schleiermacher também reconhece. É sempre nesse movimento, que se aprende a compreender uma opinião estranha, uma língua estrangeira, ou um passado estranho. Dá-se um movimento circular “porque nada do que se deve interpretar pode ser compreendido de uma só vez”. Pois, mesmo dentro da própria língua ainda vale o fato de que o leitor tem de apropriar-se inteiramente do acervo linguístico da sua intenção. Porém, dessas constatações, que são encontradas no próprio Schleiermacher, segue-se que a equiparação com o leitor original, da qual ele fala, não é uma operação precedente, que pudesse ser separada do esforço da compreensão propriamente dito, que para ele equivale à equiparação com o autor. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 1.