O que chamamos de obra de arte e vivenciamos esteticamente repousa, portanto, sobre um desempenho de abstração. Na medida em que não se leva em consideração tudo em que uma obra se enraíza, como seu contexto de vida originário, isto é, toda função religiosa ou profana em que se encontrava e em que possuía seu significado, é aí que se tornará visível a “pura obra de arte”. A abstração da consciência estética produz, nesse particular, um desempenho que é, para si mesma, positivo. Permite ver e ser para si próprio aquilo que é a pura obra de arte. Denomino esse seu desempenho a “DIFERENCIAÇÃO ESTÉTICA“. VERDADE E MÉTODO PRIMEIRA PARTE 1.
Poder-se-ia objetar que a simultaneidade não ocorreu primeiramente através da DIFERENCIAÇÃO ESTÉTICA, mas é, desde sempre, um produto de integração da histórica. Pelo menos as grandes obras arquitetônicas permanecem como testemunhos vivos do passado pela vida do presente adentro, e toda a preservação do que é hereditário nos usos e costumes, nas imagens e nos ornatos, age de forma semelhante, enquanto também eles transmitem algo mais antigo à vida do presente. Disso, por certo, difere somente a consciência da formação estética. Esta não se concebe como uma tal integração dos tempos, já que a simultaneidade que lhe é própria baseia-se na relatividade histórica do gosto de que tem consciência. Somente através de uma predisposição básica de não encarar simplesmente como mau gosto um gosto que diverge de seu próprio “bom” gosto, é que a efetiva concomitância torna-se uma simultaneidade de princípio. No lugar da unidade de um gosto surge então um movediço sentimento de qualidade. VERDADE E MÉTODO PRIMEIRA PARTE 1.
A “DIFERENCIAÇÃO ESTÉTICA“, que atua como consciência estética, produz para si mesma uma própria existência externa. Comprova sua produtividade na medida em que prepara, para a simultaneidade, os seus devidos lugares, a “biblioteca universal”, no âmbito da literatura ou museu ou teatro permanente, a sala de concertos etc. Deve-se diferenciar claramente aquilo que surge agora daquilo que é mais antigo: O museu, p. ex., não é simplesmente um acervo que se tornou público. Mais do que isso, os antigos acervos espelhavam (nas cortes e nas cidades) a escolha de um determinado gosto e continham, preponderantemente, os trabalhos de uma mesma “escola”, concebida como exemplar. O museu, ao contrário, é o acervo de tais acervos e, caracteristicamente, alcança sua perfeição no encobrir seu próprio surgimento a partir desses acervos, quer através de uma reordenação histórica do conjunto, quer através da complementação mais abrangente possível. Algo semelhante pode-se apontar no teatro que devem permanente ou no empreendimento de concertos do último século, onde o repertório se distancia mais e mais do criar contemporâneo e se adequa à necessidade de uma auto-afirmação, que é característica para a sociedade instruída que sustenta essa instituição. Mesmo formas artísticas que tanto parecem resistir à simultaneidade da vivência estética, como a arte da construção, acabam sendo envolvidas por ela, quer através da moderna técnica de reprodução, quais aquelas maquetes em imagens, quer através do turismo moderno, que transforma as viagens em páginas de livros ilustrados. VERDADE E MÉTODO PRIMEIRA PARTE 1.
É assim que, através da “DIFERENCIAÇÃO ESTÉTICA“, a obra perde o seu lugar e o mundo a que pertence por se tornar parte integrante da consciência estética. Por outro lado, a isso corresponde o fato de que também o artista perde seu lugar no mundo. Isso constata-se no descrédito daquilo a que denominamos arte por encomenda. Na consciência pública dominada pela época da arte vivencial, é preciso que se lembre expressamente que a criação ocorria por inspiração livre, sem encomenda, sem tema predeterminado, sem uma oportunidade dada, pois que na criação artística isso era caso de exceção, enquanto que nós vemos hoje o arquiteto, justamente por isso, como um fenômeno suigeneris, porque a sua produção, ao contrário dos poetas, pintores e músicos, não é independente de uma encomenda ou de uma oportunidade. O artista livre cria sem receber encomenda. Parece que o que o caracteriza é a completa independência de seu trabalho criativo, o que, por isso, lhe confere, mesmo socialmente, as feições características de um excêntrico, cujas formas de vida não podem ser mensuradas de acordo com as massas que obedecem aos costumes públicos. O conceito da boêmia, que surgiu no século XIX, espelha esse processo. A terra natal das pessoas itinerantes torna-se um termo genérico para o estilo de vida do artista. VERDADE E MÉTODO PRIMEIRA PARTE 1.
Voltemo-nos agora para o conceito da DIFERENCIAÇÃO ESTÉTICA, cuja configuração formativa já descrevemos, e desenvolvemos as dificuldades teóricas que se encontram, no conceito do estético. A abstração ao “estético puro” suspende claramente a si mesma. Isso me parece tornar-se nítido na mais consequente tentativa de desenvolver ao final das diferenciações kantianas uma estética sistemática, o que devemos agradecer a Richard Hamann. Essa tentativa de Hamann notabiliza-se pelo fato de que ele realmente se reporta à intenção transcendental de Kant, demolindo assim o padrão unívoco da arte vivencial. Na medida em que elabora regularmente o momento estético onde quer que o encontre, surgem também formas especiais vinculadas a um fim, como a arte monumental ou a arte do cartaz, a reclamar seu direito estético. Mas também aqui, Hamann apega-se à sua tarefa da DIFERENCIAÇÃO ESTÉTICA. Pois nela diferencia o estético das relações extra-estéticas, nas quais a situação é a mesma, como a que nós podemos dizer também fora da experiência da arte, que alguém se comporta esteticamente. Portanto, restituir-se-á ao problema da estética sua inteira abrangência e restabelecer-se-á o questionamento transcendental que fora abandonado pelo ponto de partida da arte e pela sua separação entre a bela aparência e a rude realidade. À vivência estética é indiferente se o seu objetivo é ou não real, se a cena é o palco ou a vida. A consciência estética possui uma soberania ilimitada sobre tudo. VERDADE E MÉTODO PRIMEIRA PARTE 1.
Mas a tentativa de Hamann malogrou no outro lado: No conceito da arte que ela, de uma maneira consequente, empurrou para tão longe do âmbito do estético que veio a coincidir com o da virtuosidade. Aqui a “DIFERENCIAÇÃO ESTÉTICA” é levada ao seu extremo. Ela abstrai até da arte. VERDADE E MÉTODO PRIMEIRA PARTE 1.
Observa-se isso com maior nitidez na forma de representação que é a ação cúltica. Aqui encontra-se à mão sua relação com a comunidade. Um consciente estético ainda tão reflexo não pode mais achar que somente a DIFERENCIAÇÃO ESTÉTICA, que coloca o objeto estético para si, atinja o verdadeiro sentido da imagem cúltica ou do jogo (espetáculo) religioso. Ninguém poderá imaginar que a execução da ação cúltica seja algo inessencial para a verdade religiosa. VERDADE E MÉTODO PRIMEIRA PARTE 2.
Voltemos a nos lembrar da fórmula utilizada acima, da “transformação em configuração”. O jogo (espetáculo) é configuração — essa tese significa: a despeito de sua dependência do tornar-se-representado, é um todo significante, que como tal pode ser representado repetidas vezes e entendido em seu sentido. A configuração é, porém, também jogo (espetáculo), porque — a despeito dessa sua unidade ideal — somente alcança seu ser pleno a cada novo tornar-se-representada. É a mútua pertença de ambas as partes o que temos de acentuar contra a abstração da DIFERENCIAÇÃO ESTÉTICA. VERDADE E MÉTODO PRIMEIRA PARTE 2.
A isso podemos dar agora a forma que opomos à DIFERENCIAÇÃO ESTÉTICA, ao elemento constitutivo real da consciência estética, a “indiferenciação estética”. Com isso, tornou-se claro: o que é imitado na imitação, formulado pelo poeta, representado pelo ator, reconhecido pelo espectador, é de tal modo o que se tem em mente (Gemeinte), aquilo onde reside o significado da representação, que a formulação poética ou o desempenho da representação nem chegam a ser realçados. Onde se diferencia, o que se diferencia é a matéria de sua formulação, a composição poética de sua “concepção”. Mas essas diferenciações são de natureza secundária. O que o ator representa e o espectador reconhece são as formulações e a própria ação, tal qual foram pensadas pelo poeta. Temos aqui uma dupla mimesis: o poeta representa e o ator representa. Mas justamente essa dupla mimesis é una: O que se torna existência em um e no outro é a mesma coisa. VERDADE E MÉTODO PRIMEIRA PARTE 2.
Pode-se dizer com mais exatidão: a representação mímica da encenação leva isso a ser-aí (Da-sein = existência) o que, aliás, a obra poética exige. À dupla diferenciação da obra poética e de sua matéria e da obra poética e a encenação, corresponde a uma dupla indiferenciação tida como a unidade da verdade, que se reconhece no jogo da arte. Trata-se de um cair-fora da efetiva experiência de uma obra poética, quando se considera a fábula, que lhe está à base, sob, por exemplo, o ponto de vista de sua origem, e da mesma forma, já é um cair-fora da efetiva experiência do espetáculo, quando o espectador (123) reflete sobre a concepção que está à base de uma encenação, ou sobre o desempenho do ator como tal. Uma tal reflexão contém já a DIFERENCIAÇÃO ESTÉTICA da própria obra com relação à sua representação. Porém, para o conteúdo da experiência como tal, como já o vimos, é até indiferente se a cena trágica ou cômica, que se desenrola diante de alguém, está acontecendo no palco ou ao vivo, quando se é só espectador. Na medida em que se representa assim, como um todo com sentido, então é o que chamamos uma configuração. Não é em si e para isso encontra-se numa intermediação acidental, mas alcança o seu ser verdadeiro na intermediação. VERDADE E MÉTODO PRIMEIRA PARTE 2.
A ideia de uma única representação correta, em face da finitude da nossa existência histórica, possui, ao que parece, algo que é um contra-senso. Ainda voltaremos a falar disso, numa outra correlação. Aqui, a conjuntura evidente, de que toda representação quer ser correta, serve apenas para confirmar, que a não diferenciação entre a intermediação e a obra ela mesma, é a verdadeira experiência da obra. Que a consciência estética sabe como realizar a DIFERENCIAÇÃO ESTÉTICA entre a obra e a sua intermediação, em geral somente na forma da crítica, portanto, aí onde essa intermediação malogra, está de acordo com isso. A intermediação é, de acordo com a sua ideia, total. VERDADE E MÉTODO PRIMEIRA PARTE 2.
Nesse sentido, a simultaneidade convém principalmente à (133) ação cúltica, como também à anunciação na pregação. O sentido do tomar-parte é, aqui, a genuína participação no próprio acontecimento salvífico. Ninguém pode duvidar que a DIFERENCIAÇÃO ESTÉTICA, por exemplo, da “bela” cerimónia ou da “boa pregação”, rente à reivindicação que nos é dirigida, encontra-se fora do lugar. No entanto, eu afirmo que, no fundo, a mesma coisa vale para a experiência da arte. Também aqui a intermediação tem de ser pensada como sendo total. Nem o ser-para-si do artista que cria — por exemplo, sua biografia — nem o ser-para-si do ator que representa uma obra, nem mesmo o ser-para-si do espectador, que acolhe o espetáculo, nenhum deles possui, em face do ser da obra de arte, uma legitimação própria. VERDADE E MÉTODO PRIMEIRA PARTE 2.
Desta análise do trágico não extraímos apenas o fato de que aqui se trata de um conceito fundamental da estética, na medida em que o distanciamento do ser do espectador pertence à essência do trágico — mais importante é que o distanciamento do ser do espectador, que determina o modo de ser do estético, não contém algo como a “DIFERENCIAÇÃO ESTÉTICA“, que tínhamos reconhecido como o traço essencial da consciência estética. O espectador não se comporta no distanciamento da consciência, que usufrui da arte da representação, mas sim na comunhão do tomar parte (Dabeisein). O genuíno centro de gravidade do fenômeno trágico reside, ao cabo, naquilo que está sendo representado e reconhecido e no qual, obviamente, a participação não pode ser aleatória. Por mais que o espetáculo teatral trágico, que é encenado solenemente no teatro, represente uma situação de exceção na vida de cada um, não é, certamente, como uma vivência aventuresca e não produz uma embriaguez de perplexidade, da qual redespertamos para o nosso verdadeiro ser, más a elevação e a comoção que se (138) apossam do espectador aprofundam, na verdade, sua continuidade consigo mesmo. A nostalgia trágica provém do autoconhecimento com que é contemplado o espectador. Reencontra-se a si mesmo na situação trágica, porque é seu próprio mundo, conhecido a partir da tradição religiosa ou histórica, que assim vem ao seu encontro, e ainda que para uma tomada de consciência posterior — certamente já a de Aristóteles, mais ainda a de Sêneca ou de Corneille — essa tradição já não possua mais caráter obrigatório, na atuação subsequente de tais obras e temas trágicos, encontra-se mais do que a manutenção da validade de um modelo literário. Não pressupõe apenas que o espectador ainda esteja familiarizado com a saga, inclui também o fato de que sua linguagem ainda o alcance realmente. Somente assim o encontro com tais temas e com tais obras trágicas poderá se tornar um auto-encontro. VERDADE E MÉTODO PRIMEIRA PARTE 2.
Assim de início, parece que, nas artes plásticas, a obra possui uma identidade tão inequívoca, que a ela não corresponde nenhuma variabilidade da representação. O que varia não parece pertencer à faceta da própria obra, e tem, visto desse ângulo, um caráter subjetivo. Assim, do ponto de vista do sujeito, é possível que surjam restrições que prejudicam a vivência adequada da obra, porém tais restrições subjetivas podem ser fundamentalmente superadas. Cada uma das obras da arte plástica pode ser “diretamente” experienciada por si mesma, isto é, sem que necessite de outra intermediação. Na medida em que existem reproduções de quadros, estes certamente já não pertencem à obra de arte, ela mesma. Porém, na medida em que sempre existem pré-requisitos subjetivos, sob os quais um quadro se torna acessível, teremos naturalmente, de abstrair deles, se quisermos experienciar a ele próprio. Por essa razão, parece que a DIFERENCIAÇÃO ESTÉTICA possui aqui sua inteira legitimidade. VERDADE E MÉTODO PRIMEIRA PARTE 2.
Ela poderá apelar, especialmente, para aquilo que, segundo o uso da linguagem corrente, se chama um “quadro”. Sob essa designação, entendemos, sobretudo, o quadro de parede contemporâneo, que não está fixado em lugar determinado, e cercado pela moldura, a si mesmo se representa inteiramente — possibilitando, por isso mesmo, uma justaposição ao gosto de cada um, tal qual se vê na galeria moderna. Um tal quadro, ao que parece, não tem absolutamente nada em si da dependência objetiva de intermediação, que realçamos na obra literária e na música. Esse quadro, que é pintado exclusivamente para a exposição ou galeria, o que foi se tornando regra com o recuo da arte por encomenda, vem claramente ao encontro da exigência de abstração da consciência estética, bem como da teoria da inspiração, que foi formulada na estética do gênio. O quadro parece pois dar razão à imediaticidade da consciência estética. É como se fosse a principal testemunha com relação à sua exigência universal e não se trata, visivelmente, de nenhuma coincidência casual o fato de que a consciência estética, que desenvolve o conceito da arte e do artístico como forma de concepção de configurações tradicionais, e que, com isso, realiza a DIFERENCIAÇÃO ESTÉTICA, é simultânea com a criação de acervos que reúnem no museu tudo o que, nesse sentido, estamos vendo. Com isso, tornamos toda obra de arte ao mesmo tempo num quadro; ao livrá-la de todas as suas relações vitais e do que há de especial nas suas condições de acesso, como um quadro, colocamo-la cercada por uma moldura e penduramo-la igualmente na parede. VERDADE E MÉTODO PRIMEIRA PARTE 2.
O palco teatral é, por isso, uma instituição política de extraordinária espécie, porque somente na encenação transparece aquilo tudo que há no jogo, a que está aludindo, o que desperta na repercussão. Ninguém sabe com anterioridade qual será o “resultado” e o que, de alguma forma, irá se perder no vazio. Cada encenação é um acontecimento, mas não um acontecimento que venha a se opor ou posicionar-se paralelamente à obra poética, como algo próprio — a própria obra é que acontece no acontecimento da encenação. É da sua natureza ser tão “ocasional” assim, que a ocasião da encenação traz à fala e deixa transparecer o que está nela. O diretor de teatro, que encena a obra literária, demonstra sua capacidade no fato de que sabe aproveitar a oportunidade. Nisso, porém, age também segundo a indicação. A DIFERENCIAÇÃO ESTÉTICA bem pode mensurar por dentro a música executada, a partir da tonalidade extraída da leitura da partitura — mas ninguém pode duvidar que ouvir música não é ler. VERDADE E MÉTODO PRIMEIRA PARTE 2.
O que é um quadro — a despeito de toda DIFERENCIAÇÃO ESTÉTICA — continua sendo uma manifestação daquilo que ele representa, ainda que permita a manifestação do mesmo, através de sua capacidade autônoma de expressão. Na imagem do culto isso é indiscutível. Mas a diferença do sagrado e do profano é relativa nas próprias obras de arte. Mesmo o portrait individual, quando se trata de uma obra de arte, tem ainda parte na radiação misteriosa do ser, que resulta do status ontológico, daquilo que vem à representação ali. VERDADE E MÉTODO PRIMEIRA PARTE 2.
De todas essas ponderações, justifica-se caracterizar o modo de ser da arte, no seu todo, através do conceito da representação, o qual abarca do mesmo modo jogo como quadro, comunhão como representação. A obra de arte será entendida, com isso, como um acontecimento do ser e desfaz-se sua abstração, na qual a DIFERENCIAÇÃO ESTÉTICA a coloca. Também o quadro é um acontecimento da representação. Sua relação com o quadro original é tampouco uma redução de sua autonomia de ser, que nós, ao contrário, tendo em vista o quadro, tivemos motivo para falar de um crescimento de seu ser. O emprego de conceitos jurídico-sacrais mostrou-se, a partir daí, como um mandato. VERDADE E MÉTODO PRIMEIRA PARTE 2.
Um quadro, portanto, não é, certamente, um sinal. Mesmo a lembrança, na verdade, não permite que alguém se demore junto a si, mas junto ao passado que a lembrança apresenta a ele. O quadro, em contraposição, realiza sua referência ao representado apenas através de seu próprio conteúdo. Ao nos aprofundarmos nele, chegamos, ao mesmo tempo, ao representado. O quadro referência, na medida em que permite que nos demoremos nele. Pois é isso que perfaz aquela valência de ser, que acentuamos, que não está simplesmente separada daquilo que representa, mas que participa de seu ser. Vimos que o representado torna-se ele próprio, no quadro. Ele experiencia um crescimento de ser. Isso significa, porém, que ele está ali no próprio quadro. É somente uma reflexão estética — que denominamos de DIFERENCIAÇÃO ESTÉTICA — , que abstrai dessa presença do quadro original no quadro. VERDADE E MÉTODO PRIMEIRA PARTE 2.
Há que se colocar isso em prova agora, igualmente, no exemplo de se saber, se o aspecto ontológico que temos elaborado até aqui se estende também ao modo de ser da literatura. Aqui já não parece haver nenhuma representação que pudesse reivindicar uma valência ôntica própria. A leitura é um processo da pura interioridade. Nela parece consumada a liberação com respeito a toda ocasião e contingência, como se encontram na conferência pública ou na encenação. A única condição, sob a qual se encontra a literatura, é a transmissão linguística e seu cumprimento na leitura. Será que a DIFERENCIAÇÃO ESTÉTICA não encontrará, com o fato de que a consciência estética se afirma a si mesma ante a obra, uma legitimação na autonomia da consciência ontológica. De qualquer livro não somente daquele afamado — pode-se dizer que é para todos e para ninguém. VERDADE E MÉTODO PRIMEIRA PARTE 2.
Disso se segue, no entanto, que temos de poder afirmar o mesmo para toda compreensão que se realiza na leitura silenciosa. Visto fundamentalmente, também a leitura contém sempre uma interpretação. Não é que a compreensão na leitura seja uma espécie de encenação interior, na qual a obra de arte alcançaria uma existência autônoma — ainda que encerrada na intimidade da interioridade da alma — como se dá na encenação à vista de todos. Pelo contrário, isso quer dizer que uma encenação colocada na exterioridade do espaço e do tempo, na verdade, não tem, ante a própria obra, uma existência autônoma, e que somente numa DIFERENCIAÇÃO ESTÉTICA secundária poderia chegar a alcançá-la. A interpretação da música ou da poesia, quando executadas, não diferem essencialmente da compreensão de um texto, quando é lido: Compreender implica sempre interpretar. O que faz o filólogo consiste também em tornar legíveis e compreensíveis os textos ou, o que dá no mesmo, em assegurar a correta compreensão de um texto face a seus possíveis mal-entendidos. E então já não há nenhuma diferença de princípio entre a interpretação que uma obra experimenta por sua reprodução e a que é produto do filólogo. Por mais secundária que seja considerada a justificação de sua interpretação em palavras por um artista que reproduz obras, e por mais que a rechace como não-artística, o que não poderá negar é que a interpretação reprodutiva é fundamentalmente capaz de uma justificação desse tipo. Também ele tem de querer que a sua acepção seja correta e convincente, e seguramente não pretenderá contestar a vinculação ao texto que tem como base. E, todavia, esse texto é o mesmo que coloca sua tarefa ao intérprete científico. Por.conseguinte, não poderá arguir nada de fundamental contra o fato de que sua própria compreensão de uma obra, tal como se manifesta em sua interpretação reprodutiva, possa ser, por sua vez, novamente compreendida, e isto significa que possa ser justificada interpretativamente, e tal interpretação terá de realizar-se em forma linguística. (404) Tampouco ela será, por sua vez, uma nova criação de sentido. Também a ela acontecerá que irá desaparecer como interpretação e conservar sua verdade na imediatez da compreensão. VERDADE E MÉTODO TERCEIRA PARTE 1.
O problema fica bem caracterizado no conceito kierkegaardiano da “simultaneidade”. Seu significado não é exatamente a onipresença, no sentido de uma atualização histórica, mas coloca uma tarefa que posteriormente eu mesmo chamei de tarefa da aplicação. Frente à objeção de Bormann, gostaria de argumentar que a diferenciação que propus entre simultaneidade e concomitância estética segue a mesma linha de Kierkegaard, embora formulada com uma aplicação de conceitos distinta. É possível que Bormann se refira à seguinte nota do diário: “A situação da simultaneidade é levada a bom termo”. Nesse caso, eu digo a mesma coisa com a expressão “totalmente mediado”, e isso significa, até a imediata coexistência (Zugleichsein). Para quem tem presente o uso de linguagem de Kierkegaard em sua polêmica contra a “mediação”, isso soa como uma clara recaída em Hegel. Deparamo-nos aqui com dificuldades típicas que a hermeticidade da sistemática hegeliana provoca a toda tentativa de manter distância de sua coerção conceitual. Elas atingem tanto Kierkegaard quanto minha própria tentativa de ganhar distância frente a Hegel, à mão de um conceito kierkegaardiano (472). Assim, comecei a estudar Hegel a fim de aguçar a dimensão hermenêutica da mediação, tanto de antanho quanto do hoje, frente à ingênua falta de conceitos da concepção histórica. Foi nesse sentido que confrontei Hegel com Schleiermacher. Mas, na verdade, na concepção da historicidade do espírito, dou um passo a mais que Hegel. O conceito de Hegel sobre “religião da arte” designa exatamente aquilo que move a minha dúvida hermenêutica sobre a consciência estética: A arte tem sua possibilidade suprema não como arte, mas como religião, como presença do divino. Mas quando Hegel declara que toda arte é algo já passado, essa arte acaba sendo absorvida também pela consciência que recorda historicamente, e como passada ganha sincronicidade estética. Foi a visão desse contexto que me impôs a tarefa hermenêutica de afastar a verdadeira experiência da arte — que não experimenta a arte como arte — da consciência estética, lançando mão do conceito da não DIFERENCIAÇÃO ESTÉTICA. Creio tratar-se aqui de um problema legítimo, que não procede da devoção à história, mas que nossa experiência da arte não pode perder de vista. Trata-se de uma alternativa falsa querer considerar “arte” como originariamente contemporânea, como a-histórica ou como vivência da formação histórica. Hegel tem razão. Por isso, continuo sem poder concordar com a crítica de Oskar Becker, assim como com qualquer objetivismo histórico, que dentro de certos limites poderia ser válido: a tarefa da integração hermenêutica continua de pé. Pode-se dizer que isso corresponde mais ao estágio ético de Kierkegaard do que ao religioso. E nisso Bormann poderia ter razão. Mas o estágio ético não contém um certo predomínio conceitual também no próprio Kierkegaard? E é assim que alcança transcendência religiosa, mas apenas na medida em que “chama a atenção”, e não de outro modo. VERDADE E METODO II ANEXOS 29.