Gadamer (VM): concomitância

Poder-se-ia objetar que a simultaneidade não ocorreu primeiramente através da diferenciação estética, mas é, desde sempre, um produto de integração da histórica. Pelo menos as grandes obras arquitetônicas permanecem como testemunhos vivos do passado pela vida do presente adentro, e toda a preservação do que é hereditário nos usos e costumes, nas imagens e nos ornatos, age de forma semelhante, enquanto também eles transmitem algo mais antigo à vida do presente. Disso, por certo, difere somente a consciência da formação estética. Esta não se concebe como uma tal integração dos tempos, já que a simultaneidade que lhe é própria baseia-se na relatividade histórica do gosto de que tem consciência. Somente através de uma predisposição básica de não encarar simplesmente como mau gosto um gosto que diverge de seu próprio “bom” gosto, é que a efetiva concomitância torna-se uma simultaneidade de princípio. No lugar da unidade de um gosto surge então um movediço sentimento de qualidade. VERDADE E MÉTODO PRIMEIRA PARTE 1.

Esse conceito da simultaneidade se origina, como se sabe, em Kierkegaard, que lhe deu um cunho especialmente teológico. Simultâneo, em Kierkegaard, não quer dizer ser-ao-mesmo-tempo, mas, formula a tarefa, que é proposta aos crentes, ou seja, de intermediar entre si aquilo que não é ao-mesmo-tempo, como a própria presença e a salvação de Cristo, de tal maneira pleno, que elas, apesar de tudo, possam ser experimentadas e levadas a sério como algo presente (em vez do distanciamento de outrora). Pelo contrário, a concomitância da consciência estética repousa no encobrimento da tarefa que foi proposta com a simultaneidade. VERDADE E MÉTODO PRIMEIRA PARTE 2.

O problema fica bem caracterizado no conceito kierkegaardiano da “simultaneidade”. Seu significado não é exatamente a onipresença, no sentido de uma atualização histórica, mas coloca uma tarefa que posteriormente eu mesmo chamei de tarefa da aplicação. Frente à objeção de Bormann, gostaria de argumentar que a diferenciação que propus entre simultaneidade e concomitância estética segue a mesma linha de Kierkegaard, embora formulada com uma aplicação de conceitos distinta. É possível que Bormann se refira à seguinte nota do diário: “A situação da simultaneidade é levada a bom termo”. Nesse caso, eu digo a mesma coisa com a expressão “totalmente mediado”, e isso significa, até a imediata coexistência (Zugleichsein). Para quem tem presente o uso de linguagem de Kierkegaard em sua polêmica contra a “mediação”, isso soa como uma clara recaída em Hegel. Deparamo-nos aqui com dificuldades típicas que a hermeticidade da sistemática hegeliana provoca a toda tentativa de manter distância de sua coerção conceitual. Elas atingem tanto Kierkegaard quanto minha própria tentativa de ganhar distância frente a Hegel, à mão de um conceito kierkegaardiano [472]. Assim, comecei a estudar Hegel a fim de aguçar a dimensão hermenêutica da mediação, tanto de antanho quanto do hoje, frente à ingênua falta de conceitos da concepção histórica. Foi nesse sentido que confrontei Hegel com Schleiermacher. Mas, na verdade, na concepção da historicidade do espírito, dou um passo a mais que Hegel. O conceito de Hegel sobre “religião da arte” designa exatamente aquilo que move a minha dúvida hermenêutica sobre a consciência estética: A arte tem sua possibilidade suprema não como arte, mas como religião, como presença do divino. Mas quando Hegel declara que toda arte é algo já passado, essa arte acaba sendo absorvida também pela consciência que recorda historicamente, e como passada ganha sincronicidade estética. Foi a visão desse contexto que me impôs a tarefa hermenêutica de afastar a verdadeira experiência da arte — que não experimenta a arte como arte — da consciência estética, lançando mão do conceito da não diferenciação estética. Creio tratar-se aqui de um problema legítimo, que não procede da devoção à história, mas que nossa experiência da arte não pode perder de vista. Trata-se de uma alternativa falsa querer considerar “arte” como originariamente contemporânea, como a-histórica ou como vivência da formação histórica. Hegel tem razão. Por isso, continuo sem poder concordar com a crítica de Oskar Becker, assim como com qualquer objetivismo histórico, que dentro de certos limites poderia ser válido: a tarefa da integração hermenêutica continua de pé. Pode-se dizer que isso corresponde mais ao estágio ético de Kierkegaard do que ao religioso. E nisso Bormann poderia ter razão. Mas o estágio ético não contém um certo predomínio conceitual também no próprio Kierkegaard? E é assim que alcança transcendência religiosa, mas apenas na medida em que “chama a atenção”, e não de outro modo. VERDADE E MÉTODO II ANEXOS 29.