Gadamer (VM): compreensão histórica

Se reconhecermos como tarefa seguir mais Hegel do que Schleiermacher, teremos de acentuar a história da hermenêutica de um modo totalmente novo. Esta já não terá sua realização na liberação da compreensão histórica de todos os pressupostos dogmáticos, e já não poder-se-á considerar a gênese da hermenêutica sob o aspecto em que a apresentou Dilthey, seguindo os passos de Schleiermacher. Nossa tarefa, antes, será refazer o caminho aberto por Dilthey, atendendo a objetivos diversos dos que ele tinha em mente com a sua autoconsciência histórica. Nesse sentido desviar-nos-emos inteiramente do interesse dogmático pelo problema hermenêutico que o Antigo Testamento despertou já na igreja antiga, e nos contentaremos em palmilhar o desenvolvimento do método hermenêutico na Idade Moderna, que desemboca da consciência histórica. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 1.

Aos olhos de um historiador que pensa de modo mais arguto, a problemática de tal autoconcepção teria de ficar clara. O significado filosófico da historiografia de Droysen se apoia no fato de procurar liberar o conceito da compreensão da indeterminação, da comunhão estético-panteísta, que ele assumiu em Ranke, e em que formula suas pressuposições conceituais. A primeira pressuposição é o conceito da expressão. Compreender é compreender uma expressão. Na expressão algo interior se faz imediatamente presente. Mas o interior, “a essência interna”, é a primeira e autêntica realidade. Droysen se movimenta aqui num solo inteiramente cartesiano, e segue a Kant e a Wilhelm von Humboldt. O eu individual é como um ponto solitário no mundo dos fenômenos. Mas em suas exteriorizações, sobretudo na linguagem, e fundamentalmente em todas as formas em que consegue dar-se expressão, deixa de ser um tal ponto solitário. Pertence ao mundo do compreensível. Assim, a compreensão histórica não é, fundamentalmente diferente da compreensão linguística. Como a linguagem, tampouco o mundo da história possui o caráter de um ser puramente espiritual: “Querer compreender o mundo ético, histórico, significa sobretudo reconhecer que ele não é nem somente docético, nem somente metabolismo. Isso é dito em contraposição ao empirismo raso de Buckle, mas vale também, no sentido inverso, com relação ao espiritualismo da filosofia da história de um Hegel. Droysen considera que a dupla natureza da história está fundamentada “no carisma peculiar de uma natureza humana, tão felizmente imperfeita, que tem que (217) comportar-se eticamente ao mesmo tempo com seu espírito e com seu corpo”. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 1.

O apoio que Ranke buscava no comportamento do poeta não lhe é suficiente. A auto-alienação na contemplação ou na narrativa não aproxima da realidade histórica. Pois os poetas “compõem para os acontecimentos uma interpretação psicológica dos mesmos. Mas nas realidades não operam somente as personalidades, mas também outros momentos” (Historik, § 41). Os poetas tratam a realidade histórica como se ela tivesse sido desejada e planejada, tal como o é, pelas pessoas que atuam nela. Porém, a realidade da história não se constitui por ter sido intentada dessa maneira. Por isso, o real querer e planejar dos homens não é o objeto autêntico da compreensão histórica. A interpretação psicológica dos indivíduos avulsos não está em condições de alcançar a interpretação do sentido dos próprios acontecimentos históricos. “Nem o sujeito que quer se esgota nessa conjuntura, nem o que chegou a ser foi apenas pela força de sua vontade, por sua inteligência; não é nem a expressão pura, nem completa dessa personalidade” (§ 41). A interpretação psicológica, portanto, representa apenas um momento subordinado na compreensão histórica. E isso não somente porque não alcança realmente sua meta. Não se trata somente de que aqui se experimente uma barreira. A interioridade da pessoa, o santuário da consciência, não somente é acessível ao historiador. Aquilo que só é penetrado pela simpatia e pelo amor não é, de modo algum, a meta e o objeto de sua investigação. Ele não tem por que querer entrar nos segredos das pessoas individuais. O que ele investiga não são indivíduos como tais, mas o que eles significam como momentos no movimento dos poderes morais. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 1.

Só que aqui convirá observar mais de perto. Sua crítica ao idealismo racional de Hegel se referia meramente ao apriorismo de sua especulação conceitual — a infinitude interna do espírito não apresentava nenhuma questionabilidade fundamental, antes enchia-se positivamente com o ideal de uma razão esclarecida historicamente, que amadureceria rumo à genialidade da compreensão total. Para Dilthey a consciência da finitude não significava uma finalização da consciência nem uma limitação. Antes, testemunha a capacidade da vida de elevar-se com sua energia e atividade para além de toda barreira. Nesse sentido aparece nele precisamente a infinitude potencial do espírito. É claro que não é a especulação, mas a razão histórica, o modo como se atualiza essa infinitude. A compreensão histórica estende-se sobre todo dado histórico e é verdadeiramente universal, porque tem seu sólido fundamento na totalidade e infinitude interna do espírito. Nisso, Dilthey adere à velha doutrina que deriva a possibilidade de compreensão da semelhança da natureza humana. Entende o próprio mundo das vivências como mero ponto de partida de uma ampliação, que, em viva transposição, completa a estreiteza e casualidade da própria vivência, através da infinitude daquilo que lhe é acessível revivendo o mundo histórico. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 1.

Quando Dilthey fala de simpatia universal, pensando no assentamento maduro da idade avançada, não se refere, certamente, a esse fenômeno ético da simpatia, mas ao ideal da consciência histórica consumada, que supera fundamentalmente os limites que são impostos à compreensão através da casualidade subjetiva das preferências e das afinidades com respeito a algum objeto. Segundo a coisa em questão, Dilthey acompanha aqui a Ranke, que via na compaixão e na consciência do todo a dignidade do historiador. Até dá a impressão que Dilthey restrinja Ranke, quando destaca como condições preferenciais da compreensão histórica aquelas em que subjaz “um condicionamento duradouro da própria vitalidade, através do grande objeto”, e quando vê nelas a suma possibilidade da compreensão. Entretanto, seria falso entender, sob esse condicionamento da própria vitalidade, outra coisa que não uma condição subjetiva de conhecimento. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 1.

Isso representa uma provocação para a hermenêutica tradicional. É verdade que na língua alemã a compreensão (Verstehen) designa também um saber fazer prático (“er versteht nicht zu lesen” “ele não entende ler”, o que significa tanto como: “ele fica perdido na leitura”, ou seja, não sabe ler). Mas isso parece muito diferente do compreender orientado cognitivãmente no exercício da ciência. Obviamente, se se olha mais detidamente, surgem traços comuns: nos dois significados aparece a ideia de conhecer, entender do assunto. E mesmo aquele que “compreende” um texto (ou mesmo uma lei) não somente projetou-se a si mesmo a um sentido, comprendendo — no (265) esforço do compreender — mas que a compreensão alcançada representa o estado de uma nova liberdade espiritual. Implica a possibilidade de interpretar, detectar relações, extrair conclusões em todas as direções, que é o que constitui o entender do assunto dentro do terreno da compreensão dos textos. E isso vale também para aquele que entende de uma máquina, isto é, aquele que entende de como se deve tratar com ela, ou aquele que entende de um ofício, ferramenta: admitindo-se que a compreensão racional-finalista está sujeita a normas diferentes do que, p. ex., a compreensão de externalizações da vida ou textos, o que é verdade é que todo compreender acaba sendo um compreender-se. Enfim, também a compreensão de expressões se refere não somente à captação imediata do que contém a expressão, mas também ao descobrimento do que há para além da interioridade oculta, de maneira que se chega a conhecer esse oculto. Mas isso significa que a gente tem de se haver com isso. Nesse sentido vale para todos os casos que aquele que compreende se compreende, projeta-se a si mesmo rumo à possibilidades de si mesmo. A hermenêutica tradicional havia estreitado, de uma maneira inadequada, o horizonte de problemas a que pertence a compreensão. A ampliação que Heidegger empreende, para além de Dilthey, será, por essa mesma razão, fecunda também para o problema da hermenêutica. E verdade que já Dilthey havia rechaçado, para as ciências do espírito, os métodos das ciências da natureza, e que Husserl havia qualificado de “absurda” a aplicação do conceito natural-científico de objetividade às ciências do espírito, estabelecendo a relatividade essencial de todo mundo histórico e de todo conhecimento histórico. Porém agora torna-se visível pela primeira vez a estrutura da compreensão histórica em toda sua fundamentação ontológica, sobre a base da futuridade existencial da pre-sença humana. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 1.

Nesse sentido, também nós nos reportamos ao sentido transcendental do questionamento heideggeriano. Através da interpretação transcendental da compreensão de Heidegger o problema da hermenêutica ganha uma feição universal, e até, o surgimento de uma dimensão nova. A pertença do intérprete ao seu objeto, que não conseguia encontrar uma legitimação correta na reflexão da escola histórica, obtém agora, por fim, um sentido concretamente demonstrável e é tarefa da hermenêutica demonstrar este sentido. Também para a realização da compreensão que se dá nas ciências do espírito, vale a ideia de que a estrutura da pre-sença é um projeto lançado, e de que a pre-sença é, segundo a realização de seu próprio ser, compreender. A estrutura geral da compreensão atinge a sua concreção na compreensão histórica, na medida em que na própria compreensão tornam-se operantes as vinculações concretas de costume e tradição e as correspondentes possibilidades de seu próprio futuro. A pre-sença, que se projeta para seu poder-ser, é já sempre “sido”. Este é o sentido do existencial do estar-lançado. O fato de que todo comportar-se livremente com respeito ao ser careça da possibilidade de retroceder para trás da facticidade deste ser, constitui a finesse da hermenêutica da facticidade e de sua oposição à investigação transcendental da constituição na fenomenologia de Husserl. A pre-sença já encontra (269) como uma premissa insuperável, o que torna possível e limita todo seu projetar. Essa estrutura existencial da pre-sença tem de encontrar sua cunhagem também na compreensão da tradição histórica, e por isso seguiremos em primeiro lugar a Heidegger. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 1.

Essa experiência levou a investigação histórica à conclusão de que um conhecimento objetivo só pode ser alcançado a partir de uma certa distância histórica. É verdade que o que está numa coisa, o conteúdo que lhe é próprio, somente se divisa a partir da distância com relação à atualidade, surgida de circunstâncias efêmeras. A possibilidade de adquirir uma certa visão panorâmica, o caráter relativamente fechado sobre si, de um processo histórico, o seu distanciamento com relação às opiniões objetivas que dominam o presente, tudo isso são, até certo ponto, condições positivas da compreensão histórica. A pressuposição tácita do método histórico é, pois, que o significado objetivo e permanente de algo somente se torna reconhecível quando pertence a um nexo mais ou menos concluído. Noutras palavras: quando está suficientemente morto para que já tenha somente interesse histórico. Somente então parece possível desconectar a participação subjetiva do observador. Na verdade, isto é um paradoxo — é o correlato, na teoria da ciência, do velho problema moral de se saber se alguém pode ser chamado feliz antes de sua morte. Assim como Aristóteles mostrou até que ponto um problema desse tipo consegue aguçar as possibilidades humanas de juízo, a reflexão hermenêutica tem que estabelecer aqui um aguçamento da autoconsciência metódica da ciência. É bem verdade que determinados requisitos hermenêuticos se satisfazem, por si sós, sem dificuldade aí onde um nexo histórico só tem ainda interesse histórico. Pois, em tal caso, há certas fontes de erro que se desconectam por si mesmas. Mas pergunta-se se com isso se esgota realmente o problema hermenêutico. A distância é a única que permite uma expressão completa do verdadeiro sentido que há numa coisa. Entretanto, o verdadeiro sentido contido num texto ou numa obra de arte não se esgota ao chegar a um determinado ponto final, pois é um processo infinito. Não acontece apenas que se vão eliminando sempre novas fontes de erro, de tal modo que se vão filtrando todas as distorções do verdadeiro sentido, mas que, constantemente, surgem novas fontes de compreensão que tornam patentes relações de sentido insuspeitadas. A distância de tempo, que possibilita essa filtragem, não tem uma dimensão concluída, já que ela mesma está em constante movimento e expansão. A par do lado negativo da filtragem operada (304) pela distância de tempo, aparece, simultaneamente, o aspecto positivo que ela tem para a compreensão. Não somente prestam sua ajuda para que os preconceitos de natureza particular feneçam, mas permite também que aqueles que levam a uma compreensão correta, venham à tona como tais. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 2.

É também interessante falar de horizontes no âmbito da compreensão histórica, sobretudo quando nos referimos à pretensão da consciência histórica de ver o passado em seu próprio ser, não a partir de nossos padrões e preconceitos contemporâneos, mas a partir de seu próprio horizonte histórico. A tarefa da compreensão histórica inclui a exigência de ganhar em cada caso o horizonte histórico, a fim de que se mostre, assim, o que queremos compreender em suas verdadeiras medidas. Quem omitir esse deslocar-se ao horizonte histórico a partir do qual fala a tradição, estará sujeito a mal-entendidos com respeito ao significado dos conteúdos daquela. Nesse sentido, parece ser uma exigência hermenêutica justificada o fato de termos de nos colocar no lugar do outro para poder entendê-lo. Só que teremos de indagar então se esse lema não se torna devedor precisamente da compreensão que nos é exigida. Ocorre como no diálogo que mantemos com alguém com o único propósito de chegar a conhecê-lo, isto é, de termos uma ideia de sua posição e horizonte. Esse não é um verdadeiro diálogo; não se procura o entendimento sobre um tema, já que os conteúdos objetivos do diálogo não são mais que um meio para conhecer o horizonte do outro. Pense-se, por exemplo, numa situação de exame ou em determinadas formas de consultas médicas. A consciência histórica opera de um modo análogo, quando se desloca para a situação do passado e supõe ter assim seu verdadeiro horizonte histórico. E tal como no diálogo, o outro se torna compreensível em suas opiniões, a partir do momento em que se tornou reconhecida sua posição e horizonte, sem que, no entanto, isso implique no fato de que chegamos a nos entender com ele, para quem pensa historicamente, a tradição se torna compreensível em seu sentido, sem que nos entendamos com ela e nela. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 2.

Surge então a indagação de se saber se esta descrição alcança realmente o fenômeno hermenêutico. Existem realmente, aqui, dois horizontes diferentes, aquele no qual vive o que compreende e o horizonte histórico a que este pretende se deslocar? Trata-se de uma descrição correta e suficiente da arte da compreensão histórica, a de que é necessário aprender a deslocar-se a horizontes alheios? Pode-se dizer, nesse sentido, que existem horizontes fechados? Convém lembrar a objeção que Nietzsche fez ao historicismo, de romper o horizonte circunscrito pelo mito, único lugar onde uma cultura pode viver. Pode-se dizer que o horizonte do próprio presente é algo tão fechado? É sequer pensável uma situação histórica limitada por um tal horizonte fechado? VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 2.

Porém, a fusão interna da compreensão e da interpretação trouxe como consequência a completa desconexão do terceiro momento da problemática da hermenêutica, o da aplicação, do contexto da hermenêutica. Aplicação edificante que se dispensava, por exemplo, à Sagrada Escritura no apostolado e sermões cristãos, parecia ser algo completamente distinto da compreensão histórica e teológica da mesma. Nisso, nossas considerações nos forçam a admitir que, na compreensão, sempre ocorre algo como uma aplicação do texto a ser compreendido, à situação atual do intérprete. Nesse sentido nos vemos obrigados a dar um passo mais além da hermenêutica romântica, considerando como um processo unitário não somente a compreensão e interpretação, mas também a aplicação. Não significa isso voltar à distinção tradicional das três subtilitatae de que falava o pietismo, pois pensamos, pelo contrário, que a aplicação é um momento do processo hermenêutico, tão essencial e integrante como a compreensão e a interpretação. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 2.

Não me pareceria suficiente limitar a tarefa do historiador do direito à “reconstrução do sentido original do conteúdo da fórmula legal”, e ao contrário, dizer do jurista, que “ele deve, além disso, pôr em concordância aquele conteúdo, com a atualidade presente da vida”. Uma delimitação desse tipo implicaria que o labor do jurista é o mais amplo, e incluiria em si também o do historiador. Quem quiser adaptar adequadamente o sentido de uma lei tem de conhecer também o seu conteúdo de sentido originário. Ele tem de pensar também em termos histórico-jurídicos. Só que a compreensão histórica não seria, aqui, mais do que um meio para um fim. Na direção oposta, a tarefa jurídico-dogmática não interessa ao historiador como tal. Como historiador ele se movimenta numa contínua confrontação com a objetividade histórica para compreendê-la em seu valor posicionai na história, enquanto que o jurista, além disso, procura reconduzir essa compreensão para a sua adaptação ao presente jurídico. A descrição de Betti trilha mais ou menos esse caminho. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 2.

Naturalmente, teríamos de nos perguntar se o caso que acabamos de analisar como modelo caracteriza realmente a problemática geral da compreensão histórica. O modelo de que partíamos era a compreensão de uma lei ainda em vigor. O historiador e o dogmático estavam voltados, pois, a um mesmo objetivo. Mas não será que este é um caso especial? O historiador do direito, que tem de enfrentar culturas jurídicas passadas, da mesma maneira que qualquer outro historiador que procura conhecer o passado e cuja continuidade com o presente não é imediata, seguramente não ficará meio perdido no caso apresentado da sobrevivência da valia de uma lei. Dirá que a hermenêutica jurídica possui uma tarefa dogmática especial que é completamente alheia ao nexo da hermenêutica histórica. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 2.

Inversamente, o historiador, que não tem diante de si nenhuma tarefa jurídica, mas que pretende simplesmente averiguar o significado histórico da lei — como o faria o conteúdo de qualquer outra tradição histórica — não pode ignorar que (334) seu objeto é uma criação do direito, que tem que ser entendida juridicamente. Ele tem de poder pensar também juridicamente e não apenas historicamente. É verdade que a consideração de um texto jurídico ainda vigente é para o historiador um caso especial. Porém esse caso especial serve para deixar claro o que é que determina nossa relação com qualquer tradição. O historiador que pretende compreender a lei a partir de sua situação histórica original não pode ignorar sua sobrevivência jurídica: ela lhe fornece as questões que ele coloca à tradição histórica. E isso não vale, na realidade, para qualquer texto, que tenha de ser compreendido precisamente no que diz? Não implica isso que sempre é necessária uma tradução? E não se dá esta tradução, sempre e em qualquer caso, nos moldes de uma mediação com o presente? Na medida em que o verdadeiro objeto da compreensão histórica não são eventos, mas sim seu “significado”, esta compreensão não estará descrita corretamente, se se fala de um objeto em si e de uma aproximação do sujeito a ele. Em toda compreensão histórica sempre já está implícito que a tradição que nos chega fala sempre ao presente e tem de ser compreendida nessa mediação — mais ainda: como essa mediação. O caso da hermenêutica jurídica não é portanto um caso especial, mas está capacitado para devolver à hermenêutica histórica todo o alcance de seus problemas e reproduzir assim a velha unidade do problema hermenêutico, na qual o jurista e o teólogo se encontram com o filólogo. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 2.

Admitir isso supõe ter de questionar, de um golpe, toda a relação entre filologia e historiografia de uma maneira diferente. O fato de nós termos falado do alheamento a que se viu induzida a filologia pela historiografia não representa o aspecto definitivo do assunto. Pelo contrário, o que me parece determinante também para a complicada situação objetiva da compreensão histórica é o problema da aplicação, que tivemos de tornar presente ao filólogo. É verdade que todas as (345) aparências estão contra isso, pois a compreensão histórica parece resistir fundamentalmente a toda tentativa de aplicação que a tradição lhe pudesse sugerir. Já tínhamos visto que o historiador, em virtude de um deslocamento peculiar das intenções, não deixa valer a intenção própria do texto, pois considera a este como fonte histórica, isto é, obtém dele a compreensão de algo que o texto não intencionava e que somente para nós se expressa dele. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 2.

Todavia, se fizermos um exame mais atento, perguntar-nos-emos se a diferença entre a compreensão do historiador e a do filólogo é verdadeiramente estrutural. É certo que o historiador contempla os textos em outra perspectiva, mas essa modificação da intenção só vale para o texto individual como tal. Todavia, para o historiador cada texto se junta com outras fontes e testemunhos, formando a unidade de toda a tradição. A unidade do todo desta tradição é seu verdadeiro objeto hermenêutico. E esta tem que ser compreendida por ele no mesmo sentido em que o filólogo compreende seu texto sob a unidade de sua intenção. Também ele tem de realizar uma tarefa de aplicação. Este é o ponto decisivo. A compreensão histórica se mostra como uma espécie de filologia em grande escala. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 2.

Na medida em que o historiador não reconhece essa sua ingenuidade estará inquestionavelmente em falta para com o nível da reflexão exigida pela coisa em causa. Mas sua ingenuidade se tornará verdadeiramente abissal quando começar a tornar-se consciente dessa problemática e se colocar, por exemplo, a exigência de que na compreensão histórica tem-se que deixar de lado os próprios conceitos e pensar unicamente nos da época que se trata de compreender. Essa exigência, que soa como uma continuação consequente da consciência histórica, não ocultará, a um leitor que pense, seu caráter de ilusão ingênua. A ingenuidade deste postulado não consiste, por exemplo, em que tal exigência e tal atitude da consciência histórica não logrem êxito, porque o intérprete não consegue alcançar, em grau suficiente, o ideal de deixar-se a si mesmo de lado. Isso continuaria significando que se trata de um ideal legítimo do qual se deva tentar aproximar-se na medida do possível. Todavia, o que a exigência legítima, da consciência histórica, de compreender cada época a partir de seus próprios conceitos, tem realmente em mente é completamente diferente. O requisito de pôr de lado os conceitos do presente não postula um deslocamento ingênuo ao passado. Trata-se, antes, de uma exigência essencialmente relativa e que somente tem um sentido por referência aos próprios conceitos. A consciência histórica compreende a si mesma erroneamente, quando, para compreender, pretende desconectar o que unicamente torna possível a (401) compreensão. Pensar historicamente quer dizer, na realidade, realizar a conversão que acontece aos conceitos do passado, quando neles procuramos pensar. Pensar historicamente implica sempre uma mediação entre aqueles conceitos e o próprio pensar. Querer evitar os próprios conceitos na interpretação, não somente é impossível, mas é também um absurdo evidente. Interpretar significa justamente colocar em jogo os próprios conceitos prévios, com a finalidade de que a intenção do texto seja realmente trazida à fala para nós. VERDADE E MÉTODO TERCEIRA PARTE 1.

No artigo Texto e interpretação, analisei as diversas formas de texto com que a hermenêutica tem de se haver. No entanto, o caso específico da historiografia necessita de um esclarecimento especial. Mesmo partindo da pressuposição de que também a investigação histórica é, em último caso, interpretação, e, portanto, a realização de um sentido, precisamos colocar a questão se a relação do historiador para com o texto investigado, ou para com a própria história, não é diferente da relação do filólogo para com o seu texto. A resistência que o historiador sente diante de minhas explanações em Verdade e método I(p. 482s) permite-me concluir que não escapei do perigo de equiparar excessivamente, neste ponto, o modo de ser característico da compreensão histórica com o do filólogo. Como eu posso ver claramente agora, não se trata apenas de uma questão de critério, como pensava em Verdade e método I. A história não é somente uma espécie de filologia em grande escala (Verdade e método I, p. 503). Em ambos os casos, está em jogo um outro sentido de texto e, com isso também, de sua compreensão. VERDADE E MÉTODO II Introdução 1.

Não é por acaso que Dilthey trabalha com o exemplo da compreensão estética. O que sustenta toda a sua doutrina do ser histórico e de sua atuação pela força e pelo significado é, pois, a pressuposição de que há uma distância real da compreensão e de que é possível haver soberania da razão histórica. Assim como a compreensão estética se realiza na distância compreensiva, também a compreensão da história fundamenta-se nessa distância. E justamente isto que Dilthey concebe como o movimento da própria vida, que a reflexão surge a partir dela. Dito negativamente, isto significa que a vida precisa libertar-se do conhecimento por conceitos, a fim de formar suas próprias objetivações. Será que existe essa liberdade da compreensão? Essa crença na liberação pelo esclarecimento histórico fundamenta-se de forma decisiva num momento estrutural da autoconsciência histórica: o fato de a autoconsciência ser concebida num processo infinito e irreversível. Já Kant e o idealismo haviam partido desse ponto: todo saber sobre si próprio, passível de se alcançar, pode tornar-se objeto de um novo saber. Se eu sei, posso também sempre saber que sei. Esse movimento da reflexão é infinito. Para a autoconsciência histórica, essa estrutura significa que, na própria busca de sua autoconsciência, o espírito transforma constantemente seu ser. Ao conceber a si mesmo, já se transformou num outro, diferente do que era. Esclareçamos isto num exemplo: Quando alguém se torna consciente da raiva que o assalta, essa autoconsciência já é sempre uma transformação, quando não, uma superação dessa raiva. Hegel descreveu esse movimento da autoconsciência em direção a si mesma, na Fenomenologia do espírito. Enquanto Hegel considerava a autoconsciência filosófica como o fim absoluto desse movimento, Dilthey refutou essa reivindicação metafísica considerando-a dogmática. Com isto, abrem-se-lhe as portas ao horizonte ilimitado da razão histórica. A compreensão histórica significa um constante crescimento da autoconsciência, uma constante ampliação do horizonte da vida. Esse processo não pode ser brecado nem poderá retroceder. A universalidade de Dilthey como historiador do espírito repousa justamente nessa ampliaição infinita da vida na compreensão. Dilthey é o pensador do» Iluminismo histórico. A consciência histórica representa o fim cLa metafísica. VERDADE E MÉTODO II PRELIMINARES 2.

Há muitos problemas, pelos quais a fé na ilimitação da razão histórica pode se tornar questionável. Refiro-me à questão das constantes naturais do espírito histórico, suas pressuposições biológicas, e à questão do começo da história. Será que a história só principia realmente onde a humanidade começa transmitir uma consciência de si própria? Será que as decisões que fazem história já de há muito não a precederam? Haverá um feito de maior significado do que a invenção do arado, que precede a qualquer tempo histórico? E o que é o mito, no qual os povos históricos se espelham, bem antes de adentrar seu destino histórico? Desde que a investigação filosófica deu alguns passos decisivos para além de Dilthey, o próprio problema a respeito da compreensão histórica se nos revela, hoje, a partir de uma nova luz. Martin Heidegger, em Ser e tempo, levou a historicidade da pre-sença (Dasein) humana a contextos fundamentais de questionamento. A problemática da história viu-se assim liberada das pressuposições ontológicas, sob as quais era vista também por Dilthey. Demonstrou que o ser não significa sempre e necessariamente objetividade (Gegenständlichkeit), mas que importa sobretudo “elaborar a diferença genérica entre o (34) ôntico e o histórico”. O ser da pre-sença humana é um ser histórico. Isso significa, porém, que não está dado como a existência dos objetos da ciência da natureza, mas de modo mais vulnerável e oscilante do que estes. A historicidade, isto é, a temporalidade é ser em sentido mais originário do que o ser simplesmente dado, que a ciência natural busca conhecer. Há uma razão histórica, somente porque a pre-sença humana tem caráter temporal e histórico. Há uma história do mundo somente porque esta pre-sença temporal do homem “tem um mundo”. Há uma cronologia somente porque a própria pre-sença histórica do homem é tempo. VERDADE E MÉTODO II PRELIMINARES 2.

A partir desta perspectiva, a teoria de Dilthey descobre um novo aspecto. De imediato pode-se perguntar o que se entende propriamente por liberdade da compreensão. Não será uma mera aparência? Dilthey acredita ser possível liberar a compreensão do conhecimento que se dá por meio de conceitos. Mas será que com isso ele não se referia aos conceitos de uma metafísica desacreditada? Toda nossa compreensão não permanece guiada por conceitos? A compreensão histórica vangloria-se de não ter preconceitos. VERDADE E MÉTODO II PRELIMINARES 2.

Mas essa ausência de preconceitos não é uma ausência condicionada? Essa reivindicação não tem sempre o sentido polêmico de estar livre deste ou daquele preconceito? Será que a reivindicação da ausência de preconceitos (como nos ensina também a experiência da vida humana) não camufla, na verdade, a persistência teimosa de preconceitos que acabam nos determinando de modo imperceptível? Conhecemos isso suficientemente a partir do modo como os historiadores trabalham. Pretendem ser críticos, isto é, ouvir as fontes e testemunhas sobre uma questão histórica, munidos da justiça superior de um juiz, para ver o que está por trás das coisas. Mas esta pretensa crítica superior já não vem sempre precedida e sustentada por uma atuação silenciosa de preconceitos orientadores? No fundo de toda crítica das fontes e dos testemunhos encontra-se sempre um último parâmetro de credibilidade, que depende apenas de uma coisa: do que se considera possível e se está disposto a acreditar. Sim, no fundo ainda resta algo mais a ser dito. Assim como a vida real, também a história só nos interessa quando sua fala atinge nosso julgamento prévio sobre as coisas, as pessoas e as épocas. Toda compreensão do que é significativo pressupõe que articulemos conjuntamente um uso desses preconceitos. Heidegger caracterizou esse estado de coisas como círculo hermenêutico: compreendemos somente o que já sabemos; ouvimos somente o que colocamos na leitura. Medido pelos parâmetros do conhecimento das ciências da natureza, isso parece inadmissível. Na verdade, só assim torna-se possível a compreensão histórica. Não se trata de evitar um tal círculo, mas de entrar nele de modo correto. VERDADE E MÉTODO II PRELIMINARES 2.

Surge aqui um segundo aspecto: A significação não se revela no distanciamento do elemento compreensivo como pensava Dilthey, mas pelo fato de nós mesmos estarmos inseridos no nexo de efeitos da história. A compreensão histórica é ela própria, sempre, a experiência de um efeito e o prolongamento de sua efetividade. (35) Seu envolvimento prévio significa sua força histórica de produzir efeitos. Por isso, o que é historicamente significativo torna-se acessível de modo mais originário na plenitude da ação do que no compreender. A existência (Dasein) histórica guarda sempre uma situação, uma perspectiva e um horizonte. É um caso semelhante ao da pintura: A perspectiva, isto é, a ordenação de “proximidade” ou “distância” das coisas inclui um ponto de vista, que precisa ser levado em conta. Assim, entramos numa relação de ser com as coisas e fazemos parte de sua ordenação, à medida que com elas nos alinhamos. Só assim torna-se representável a singularidade de um acontecimento, a plenitude do instante. A pintura pré-perspectivística, pelo contrário, mostra todas as coisas numa eternidade dilatada e pela ótica de um significado transcendente. A verdade histórica, correspondentemente, não é o transparecer de uma ideia, mas o vínculo de uma decisão irrepetível. VERDADE E MÉTODO II PRELIMINARES 2.

A ingenuidade do que chamamos de historicismo consiste em que, evitando esse tipo de reflexão e confiando em sua metodologia, acaba por esquecer sua própria historicidade. O que cabe reivindicar aqui é a passagem de um pensamento histórico mal compreendido a um pensamento histórico melhor compreendido. Um pensar verdadeiramente histórico deve pensar também sua própria historicidade. Somente assim deixará de perseguir a quimera de um objeto histórico, que é o tema de uma investigação progressiva, mas para aprender a reconhecer no objeto o outro de si próprio e com isso tanto um quanto o outro. O verdadeiro objeto histórico não é um objeto, mas a unidade de um e outro, uma relação que (65) compreende tanto a realidade da história quanto a realidade da compreensão histórica. Uma hermenêutica adequada e correta teria de demonstrar na compreensão essa realidade própria da história. Chamo de “história efeitual” o que corresponde a essa exigência. Compreender é um processo histórico-efeitual, e se poderia demonstrar que é na linguagem própria a toda compreensão que o acontecimento hermenêutico traça seu caminho. VERDADE E MÉTODO II PRELIMINARES 5.

E o que dizer do sentido e da interpretação de acontecimentos históricos? A consciência dos contemporâneos é de tal natureza (105) que aqueles que “vivenciam” a história não sabem como esta lhes acontece. Dilthey, pelo contrário, mantém-se até o fim fiel às consequências sistemáticas de seu conceito de vivência, como reza o modelo de biografia e autobiografia para a teoria formulada por Dilthey, acerca do contexto da história dos efeitos. Também a acirrada crítica feita por R.G. Collingwood à consciência metodológica positivista permanece presa à estreiteza subjetivista do problema, à medida que, lançando mão do instrumental dialético do hegelianismo de Croce com sua teoria do reenactment, fundamenta como caso modelar para a compreensão histórica a execução posterior de planos elaborados. Nesse ponto, Hegel foi mais consequente. Sua pretensão de se conhecer a razão na história fundamentava-se num conceito do “espírito”, cujo traço essencial é dar-se “no tempo” e a determinação do conteúdo dar-se apenas por sua história. Decerto, também para Hegel, havia os “indivíduos que participam da história do mundo”, por ele caracterizados como “encarregados do negócio do espírito universal”, e cujas decisões e paixões coincidiam com o que “se dava no tempo”. Esses casos excepcionais, porém, não definem para ele o sentido da compreensão histórica, sendo definidos como exceções a partir da concepção do filósofo acerca do que é o historicamente necessário. A saída que pretende atribuir ao historiador uma congenialidade com seu objeto, já tentada por Schleiermacher, certamente não traz resultado algum. Isso transformaria a história universal num espetáculo estético. Seria, por um lado, exigir demais do historiador e, por outro, subestimar sua tarefa de confrontar o próprio horizonte com o do passado. VERDADE E MÉTODO II PRELIMINARES 8.

Aqui está em questão o aspecto do problema hermenêutico apresentado nesse último caso. Tanto a compreensão da tradição cristã quanto a da Antiguidade Clássica implica para nós uma consciência histórica. Por mais vivo que ainda seja o que nos liga à grande tradição greco-cristã, compartilhamos todos a consciência da alteridade, a consciência de não pertencermos mais de modo inquestionável a esta tradição. Isso torna-se muito claro nos primórdios da crítica histórica à tradição e nos inícios da crítica bíblica empreendida por Spinoza, em seu tratado teológico-político. Ali mostra-se claramente que o caminho da compreensão histórica é uma espécie de desvio inevitável, que deve ser percorrido por todo aquele que, não tendo acesso direto ao que diz a tradição, quer compreendê-la. VERDADE E MÉTODO II COMPLEMENTOS 9.

A escola histórica, porém, sobretudo na forma decisiva que Droysen, seu metodologista mais arguto, reivindica para a tarefa (124) do historiador, não aceitou de modo algum essa total alienação objetivista do objeto da história. Pelo contrário, Droysen perseguiu essa “objetividade eunuca” com um sarcasmo mordente, e caracterizou a pertença às grandes forças morais, que regem a história, como a condição prévia de toda compreensão histórica. Sua célebre fórmula, segundo a qual a tarefa do historiador consiste em compreender pela via da investigação, contém um aspecto teológico. Os planos da Providência estão ocultos para o homem. Contudo, mediante a investigação das estruturas da história do mundo, o espírito histórico pode adquirir uma ideia do sentido oculto da totalidade. Compreender, aqui, é mais do que um método universal apoiado ocasionalmente na afinidade ou congenialidade do historiador com seu objeto histórico. Não é só uma questão de casual simpatia pessoal. Na escolha dos objetos e dos pontos de vista sob os quais se apresenta um objeto como um problema histórico, já está atuando um elemento da própria historicidade da compreensão. VERDADE E MÉTODO II COMPLEMENTOS 9.

Para expressar isso, escolhi a fórmula talvez demasiado ambígua de que nossa compreensão histórica está sempre determinada por uma consciência histórico-efeitual. VERDADE E MÉTODO II COMPLEMENTOS 10.

Pois bem, essa filosofia neokantiana dos valores constituía uma base muito frágil. Muito mais influente seria o legado romântico do espírito alemão, o legado de Hegel e de Schleiermacher, administrado especialmente pelo trabalho de Dilthey em torno a uma fundamentação hermenêutica das ciências do espírito. O pensamento de Dilthey teve um horizonte mais amplo do que o da teoria do conhecimento do neokantismo, uma vez que assumiu toda a herança de Hegel: a teoria do espírito objetivo. Segundo essa teoria, o espírito não ganha corpo apenas na subjetividade de sua realização atual, mas também na objetivação de instituições, sistemas de ação e sistemas de vida como a economia, o direito e a sociedade, e assim, enquanto “cultura”, convertem-se em objeto de possível compreensão. A tentativa diltheyana de renovar a hermenêutica de Schleiermacher, demonstrando, por assim dizer, como fundamento das humaniora o ponto de identidade entre o que compreende e o compreensível, foi condenada ao fracasso porque a história apresenta um estranhamento e uma heterogeneidade demasiado profundos para que possam ser considerados tão confiadamente a partir da perspectiva de sua compreensibilidade. Um sintoma característico de ausência da “facticidade” do acontecer no pensamento de Dilthey é este ter considerado a autobiografia, portanto, o caso em que alguém expõe uma trajetória de vida, vivenciando-a retrospectivamente, como modelo de compreensão histórica. Na verdade, uma autobiografia é mais uma história das ilusões privadas do que a compreensão do acontecimento histórico real. VERDADE E MÉTODO II OUTROS 23.

A afirmação de que a hermenêutica jurídica pertence ao nexo de problemas de uma hermenêutica geral não é evidente por si. De fato, nela não está em questão uma reflexão de caráter metodológico, como é o caso da filologia e da hermenêutica bíblica. Ela trata propriamente de um princípio jurídico subsidiário. Sua tarefa não é compreender enunciados jurídicos vigentes, mas encontrar o direito, isto é, interpretar as leis de tal modo que a ordem do direito impregne toda a realidade. Visto que a interpretação tem aqui uma função normativa, um autor como Betti pode separá-la totalmente da interpretação filológica, e mesmo daquela compreensão histórica, cujo objeto é de natureza jurídica (constituições, leis etc). Não se pode discutir o fato de a interpretação da lei, no sentido jurídico, acabar sendo uma atividade criadora de direito. Os diversos princípios que devem ser aplicados no fazer — como, por exemplo, o princípio da analogia, o princípio da complementação de lacunas da lei ou finalmente o princípio produtivo, implicado ele próprio na sentença jurídica, isto é, (400) dependente do caso jurídico concreto — não representam apenas problemas metodológicos, mas penetram profundamente e atingem a própria matéria do direito. VERDADE E MÉTODO II ANEXOS 27.

Na minha opinião, foi isso que marcou a orientação do debate hermenêutico mais recente. A própria fé nessa história deve ser compreendida como um acontecimento histórico, como um apelo (406) da palavra de Deus. Isso vale já para a relação do Antigo com o Novo Testamento. Também pode ser compreendido (segundo Hofmann, por exemplo) como a relação existente entre a profecia e sua realização, de modo que a própria profecia que fracassa historicamente só pode ser determinada em seu sentido a partir de sua realização. A compreensão histórica das profecias vétero-testamentárias não prejudica em nada o sentido do anúncio que elas recebem a partir do Novo Testamento. Ao contrário, o acontecimento salvífico anunciado no Novo Testamento só pode ser compreendido como um acontecimento verdadeiro quando sua profecia não é uma mera “reprodução do fato futuro”. É importante salientar sobretudo que o conceito de autocompreensão da fé, o conceito fundamental da teologia bultmanniana, possui um sentido histórico (e não idealístico). VERDADE E MÉTODO II ANEXOS 27.

A consciência de não podermos dizer que somos os últimos a quem se dirige a palavra de Deus vem unida com esse prestar ouvidos. Mas disso segue-se que “podemos e devemos permitir que nos sejam indicados nossos limites históricos, tal como tomam forma na nossa compreensão histórica de mundo. Com isso, recebemos a mesma tarefa que vale de há muito para a auto-reflexão da fé. É uma tarefa que partilhamos também com os autores do Novo Testamento”. Desse modo, Fuchs ganha uma nova base hermenêutica, que pode ser legitimada a partir da própria ciência neotestamentária. O anúncio da palavra de Deus é uma tradução das proposições do Novo Testamento, cuja justificação é a teologia. VERDADE E MÉTODO II ANEXOS 27.

Mas a interpretação não se limita aos textos e à compreensão histórica que neles se deve alcançar. Todas as estruturas de sentido concebidas como textos, desde a natureza (interpretatio naturae, (435) Bacon), passando pela arte (cuja carência de conceitos (Kant) converte-se em exemplo preferencial de interpretação (Dilthey)), até as motivações conscientes ou inconscientes da ação humana, são suscetíveis de interpretação. Essa pretende mostrar não o que é óbvio mas as verdadeiras e latentes concreções de sentido da ação humana, mesmo que o faça revelando o ser real de cada um como o ser de sua própria história (P. Ricoeur), mostrando assim que os condicionamentos sociais e históricos determinam imperceptivelmente nosso pensamento. A psicanálise e a crítica da ideologia, como inimigos a se enfrentar ou aliados em uma síntese cética ou utópica (Adorno, Marcuse), devem submeter-se ainda a uma reflexão hermenêutica. Isso porque o que eles assim descobrem e compreendem não é independente da situação do intérprete. Nenhum campo interpretativo se dá aleatoriamente e muito menos “objetivamente”. A reflexão hermenêutica mostra ao objetivismo do historicismo e da teoria positivista das ciências que eles agem a partir de pressupostos ocultos determinantes. Sobretudo a sociologia do saber e a crítica marxista da ideologia demonstraram aqui sua fecundidade hermenêutica. O valor cognitivo dessas interpretações só pode ser garantido mediante uma consciência crítica e uma reflexão da história dos efeitos. O fato de não possuírem a objetividade da science não desmerece seu valor cognitivo. Mas é só uma reflexão hermenêutica crítica, atuante nelas consciente ou inconscientemente, que faz aflorar sua verdade. VERDADE E MÉTODO II ANEXOS 28.