Desse modo, através do conceito da expressão, a realidade histórica se eleva à esfera do que tem sentido, e com isso também na auto-reflexão metodológica de Droysen a hermenêutica se converte em senhora da historiografia: “O individual se compreende o todo, e o todo se compreende a partir do individual” (§ 10). Essa é a velha regra retórico-hermenêutica fundamental, que agora se aplica ao interior: “Aquele que compreende, porque é um eu, uma totalidade em si, tal qual aquele a quem ele tem que compreender, completa-se da totalidade deste, a partir da exteriorização individual, e esta completa-se a partir da totalidade daquele”. É a fórmula de Schleiermacher. Ao aplicá-la, Droysen está compartilhando de sua pressuposição, isto é, a história, que ele considera como ações da liberdade, lhe é tão profundamente compreensível e carregada de sentido como um texto. O pleno cumprimento da compreensão da história é, como a compreensão de um texto, “atualidade espiritual”. Droysen até determina com mais rigor que Ranke, quais as mediações que encerram a investigação e a compreensão, mas nem mesmo ele consegue, ao final, pensar a tarefa da historiografia, mais que em categorias estético-hermenêuticas. O que pretende a historiografia é, também segundo Droysen, reconstruir, a partir dos fragmentos da tradição, o grande texto da história. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 1.
Em geral tem-se de dizer que é somente a experiência do choque com um texto — seja porque ele não oferece nenhum sentido, seja porque seu sentido não concorda com nossas expectativas — o que nos faz parar e perceber um possível ser-diverso do uso da linguagem. É uma pressuposição geral, que alguém que fala a mesma língua toma as palavras que ele emprega no sentido que me é familiar; essa pressuposição somente se torna questionável em casos singulares. A mesma coisa ocorre no caso da língua estrangeira, pois que supomos conhecê-la de modo mediano (durchschnittlich), e pressupomos esse uso linguístico mediano na compreensão de um texto. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 2.
O círculo, portanto, não é de natureza formal. Não é nem objetivo nem subjetivo, descreve, porém, a compreensão como a interpretação do movimento da tradição e do movimento do intérprete. A antecipação de sentido, que guia a nossa compreensão de um texto, não é um ato da subjetividade, já que se determina a partir da comunhão que nos une com a tradição. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 2.
E se isso é correto, então se coloca a tarefa de voltar a determinar a hermenêutica espiritual-científica a partir da jurídica e da teológica. Para isso faz-se necessária a ideia recém-alcançada, de que a hermenêutica romântica e sua coroação na interpretação psicológica, isto é, no deciframento e fundamentação da individualidade do outro, aborda o problema da compreensão de um modo excessivamente parcial. Nossas considerações não nos permitem dividir a colocação do problema hermenêutico na subjetividade do intérprete e na objetividade de sentido que se trata de compreender. Esse procedimento partiria de uma falsa contraposição que tampouco pode ser superada pelo reconhecimento da dialética do subjetivo e do objetivo. A distinção entre uma função normativa e uma função cognitiva faz cindir, definitivamente, o que claramente é uno. O sentido da lei, que se apresenta em sua aplicação normativa, não é, em princípio, diferente do sentido de um tema, que ganha validez na compreensão de um texto. É completamente errôneo fundamentar a possibilidade de compreender textos na pressuposição da “congenialidade” que uniria o criador e o intérprete de uma obra. Se isso fosse assim, as ciências do espírito estariam em maus lençóis. O milagre da compreensão consiste, antes, no fato de que não é necessária a congenialidade para reconhecer o que é verdadeiramente significativo e o sentido originário de uma tradição. Somos, antes, capazes de nos abrir à pretensão excelsa de um texto e corresponder compreensivamente ao significado com o qual nos fala. A hermenêutica, no âmbito da filologia e da ciência espiritual da história, não é um “saber dominador”, isto é, apropriação por apoderamento, mas se submete à pretensão dominante do texto. Mas para isso o verdadeiro modelo é constituído pela hermenêutica jurídica e teológica. A interpretação da vontade jurídica e da promessa divina não são evidentemente formas de domínio, mas de servidão. Ao serviço daquilo que deve valer, elas são interpretações, que incluem aplicação. A tese é, pois, que também a hermenêutica histórica tem que levar a cabo o fornecimento da aplicação, pois também ela serve à validez de sentido, na medida em que supera, expressa e conscientemente, a distância de tempo que separa o intérprete do texto, superando assim a alienação de sentido que o texto experimentou. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 2.
Isto é o que Collingwood claramente tem em mente quando discute que exista alguma diferença entre a pergunta histórica e a pergunta filosófica, para a qual o texto deve ser uma resposta. Face a isso devemos reter que a pergunta que se trata de reconstruir não concerne, em princípio, às vivências intelectuais do autor, mas exclusivamente ao sentido do próprio texto. Por consequência, quando se compreendeu o sentido de uma frase, isto é, quando se reconstruiu a pergunta a que ela responde realmente, tem de ser possível perguntar, então, por aquele que faz a pergunta e pela sua opinião, à qual o texto talvez seja somente uma resposta presumível. Collingwood não tem razão quando, por motivos de método, considera absurdo distinguir a pergunta, a que o texto deveria responder, da pergunta, a que realmente responde. Somente tem razão na medida em que a compreensão de um texto não contém essa distinção, no geral, na medida em que nós nos referimos às coisas das quais o texto fala. Face a isso, a reconstrução das ideias de um autor é uma tarefa completamente diferente. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 2.
Se tentamos considerar o fenômeno hermenêutico, segundo o modelo da conversação que tem lugar entre duas pessoas, o caráter de unidade e o de orientação entre essas duas situações aparentemente tão diversas, como são a compreensão de um texto e o chegar a um acordo numa conversação consiste sobretudo no fato de que toda compreensão e todo acordo têm presente alguma coisa que está postada diante de nós. Da mesma forma que nos pomos de acordo com o nosso interlocutor sobre uma coisa, também o intérprete entende a coisa que lhe diz seu texto. Esta compreensão da coisa ocorre necessariamente em forma linguística, mas não no sentido de revestir secundariamente com palavras uma compreensão já feita. Antes, a realização da compreensão, quer se trate de textos ou de interlocutores que nos apresentam o tema, consiste justamente neste vir-à-fala da própria coisa. Rastrearemos, pois, de início, a estrutura da verdadeira conversação, com o fim de dar realce, a partir dela, à peculiaridade daquela outra conversação que é o compreender textos. Assim como antes havíamos destacado o significado constitutivo da pergunta para o fenômeno hermenêutico, e o fizemos pela mão da conversação, que subjaz, por sua vez, à pergunta, como um momento hermenêutico. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 2.
Disso se segue, no entanto, que temos de poder afirmar o mesmo para toda compreensão que se realiza na leitura silenciosa. Visto fundamentalmente, também a leitura contém sempre uma interpretação. Não é que a compreensão na leitura seja uma espécie de encenação interior, na qual a obra de arte alcançaria uma existência autônoma — ainda que encerrada na intimidade da interioridade da alma — como se dá na encenação à vista de todos. Pelo contrário, isso quer dizer que uma encenação colocada na exterioridade do espaço e do tempo, na verdade, não tem, ante a própria obra, uma existência autônoma, e que somente numa diferenciação estética secundária poderia chegar a alcançá-la. A interpretação da música ou da poesia, quando executadas, não diferem essencialmente da compreensão de um texto, quando é lido: Compreender implica sempre interpretar. O que faz o filólogo consiste também em tornar legíveis e compreensíveis os textos ou, o que dá no mesmo, em assegurar a correta compreensão de um texto face a seus possíveis mal-entendidos. E então já não há nenhuma diferença de princípio entre a interpretação que uma obra experimenta por sua reprodução e a que é produto do filólogo. Por mais secundária que seja considerada a justificação de sua interpretação em palavras por um artista que reproduz obras, e por mais que a rechace como não-artística, o que não poderá negar é que a interpretação reprodutiva é fundamentalmente capaz de uma justificação desse tipo. Também ele tem de querer que a sua acepção seja correta e convincente, e seguramente não pretenderá contestar a vinculação ao texto que tem como base. E, todavia, esse texto é o mesmo que coloca sua tarefa ao intérprete científico. Por.conseguinte, não poderá arguir nada de fundamental contra o fato de que sua própria compreensão de uma obra, tal como se manifesta em sua interpretação reprodutiva, possa ser, por sua vez, novamente compreendida, e isto significa que possa ser justificada interpretativamente, e tal interpretação terá de realizar-se em forma linguística. (404) Tampouco ela será, por sua vez, uma nova criação de sentido. Também a ela acontecerá que irá desaparecer como interpretação e conservar sua verdade na imediatez da compreensão. VERDADE E MÉTODO TERCEIRA PARTE 1.
Na medida em que a experiência hermenêutica contém um acontecer linguístico, que corresponde à representação dialética de Hegel, também ela participa numa dialética, que desenvolvemos acima, como dialética de pergunta e resposta. Como já vimos, a compreensão de um texto transmitido tem uma relação interna essencial com a sua interpretação, e ainda que esta seja, por sua vez, sempre um movimento relativo e inconcluso, a compreensão alcança nela sua perfeição relativa. Pela mesma razão, o conteúdo especulativo dos enunciados filosóficos necessita, como ensina Hegel, uma representação dialética das contradições contidas nele, se é que quer ser verdadeira ciência. Aqui há uma real correspondência. A interpretação toma parte na discursividade do espírito humano, que somente é capaz de pensar a unidade da coisa na mútua alternância do um ou do outro. A interpretação tem a estrutura dialética de todo ser finito e histórico, na medida em que toda interpretação tem que começar em algum ponto e procurar superar a parcialidade que ela introduz com seu começo. Há algo que parece necessário ao intérprete, ou seja, que se diga e se torne expresso. Nesse sentido toda interpretação é motivada e obtém seu sentido a partir de seu nexo de motivações. Sua parcialidade outorga a um dos aspectos da coisa uma clara preponderância, e para compensá-la tem de continuar dizendo mais coisas. Assim como a dialética filosófica consegue expor o todo da verdade através da auto-suspensão de todas as imposições unilaterais e pelo caminho do aguçamento e da superação das contradições, o esforço hermenêutico tem como tarefa pôr a descoberto um todo de sentido na multilateralidade de suas relações. À totalidade das determinações do pensamento, corresponde a individualidade de sentido a que se tem em mente. Pense-se, por exemplo, em Schleiermacher, que fundamenta sua dialética na metafísica da individualidade e constrói, na sua teoria hermenêutica, o procedimento da interpretação a partir de orientações antitéticas do pensamento. VERDADE E MÉTODO TERCEIRA PARTE 3.
Em suma, podemos dizer que o que o linguista converte em tema ao prescindir do acordo sobre a coisa, representa para o próprio acordo um mero caso-limite de uma possível consideração. O que sustenta a realização do acordo, em contraposição à linguística, é precisamente o esquecimento da linguagem que envolve formalmente a fala ou o texto. Somente quando esse esquecimento é turvado, isso é, quando não alcançamos o acordo, perguntamos pela letra do texto. Então a recuperação do texto pode se converter numa tarefa própria. De certo, no uso da linguagem distinguimos entre letra e texto, mas não é por acaso que ambos os termos podem intercambiar-se (também no grego o falar e o escrever confluem no conceito de grammatike). Ao contrário, a ampliação do conceito de texto encontra sua fundamentação na hermenêutica. A compreensão de um texto, seja oral ou escrito, depende, em todo caso, de condições comunicativas que ultrapassam o mero conteúdo fixo do que nele é dito. Podemos afirmar inclusive que o fato de recorrer à letra ou ao texto como tal está sempre motivado pela peculiaridade da situação do consenso. VERDADE E MÉTODO II OUTROS 24.
O intérprete deve superar o elemento estranho que impede a inteligibilidade de um texto. Faz-se mediador quando o texto (o discurso) não pode realizar sua missão de ser escutado e compreendido. O intérprete não tem outra função que a de desaparecer uma vez alcançada a compreensão. O discurso do intérprete não é um texto, mas serve ao texto. Isso não significa, porém, que a contribuição do intérprete se esgote no modo de escutar o texto. Essa contribuição não é temática, não é objetivável como texto, mas está incorporada ao texto. Essa figura caracteriza a relação entre texto e interpretação em seus aspectos mais gerais. Aqui aparece um momento da estrutura hermenêutica que convém ressaltar. Essa linguagem mediadora possui, ela própria, uma estrutura dialogai. O intérprete que faz a intermediação entre as duas partes do diálogo nada pode fazer a não ser considerar sua distância frente ao emaranhado de ambas as posições como uma espécie de superioridade. Por isso, sua ajuda no entendimento não se limita ao plano de linguagem, mas passa sempre por uma intermediação real que busca equilibrar o direito e os limites de ambas as partes. O “intermediador do discurso” converte-se em “negociador”. Creio que se dá uma relação muito parecida entre o texto e o leitor. Após superar o elemento estranho de um texto, ajudando assim o leitor a compreendê-lo, a retirada do intérprete não significa desaparecimento em sentido negativo. Significa antes sua entrada na comunicação, resolvendo assim a tensão entre o horizonte do texto e o horizonte do leitor. É que chamo de fusão de horizontes. Os horizontes separados como pontos de vista diferentes fundem-se num. Por isso a compreensão de um texto tende a integrar o leitor no que diz o texto. É justamente aí que o texto desaparece. VERDADE E MÉTODO II OUTROS 24.