Gadamer (VM): compreensão da existência

Com isso repetem-se no fundo as aporias da consciência estética que apresentamos acima. Pois é justamente a continuidade que tem de produzir toda compreensão do tempo, mesmo quando se trata da temporalidade da obra de arte. É aqui que o mal-entendido que se deu com a exposição ontológica do horizonte do tempo de Heidegger se vinga. Em vez de reter o sentido metodológico da análise existencial da pre-sença, procura-se tratar essa temporalidade existencial e histórica da pre-sença, determinada pela cura, pelo preceder a morte, isto é, pela finitude radical, como uma entre outras possibilidades de compreensão da existência, esquecendo além do mais que o que se revela aqui como temporalidade é o próprio modo de ser da compreensão. Querer distinguir a verdadeira temporalidade da obra de arte, como “tempo sagrado”, do tempo decadente e histórico, não passa, na verdade, de um mero reflexo da experiência humano-finita da arte. Somente uma teologia bíblica do tempo, cujo saber não procede do ponto de vista da autocompreensão humana mas da revelação divina, poderia falar de um “tempo sagrado” e legitimar teologicamente a analogia entre a a-temporalidade da obra de arte e esse “tempo sagrado”. Sem essa legitimação teológica, o discurso sobre o “tempo sagrado” encobre o verdadeiro problema que reside não no fato de a obra de arte poder subtrair-se ao tempo mas na sua temporalidade. VERDADE E MÉTODO PRIMEIRA PARTE 2.

Quando comecei a elaborar uma hermenêutica filosófica, sua própria pré-história exigia que se tomasse as ciências “da compreensão” como ponto de partida. Mas acrescia-se a elas um complemento que até o momento não foi levado em conta. Refiro-me à experiência da arte. Isso porque ambas, a arte e as ciências históricas, são modos de experiência que implicam diretamente nossa própria compreensão da existência. A ajuda conceitual para a problemática da “compreensão”, formulada em sua amplitude correta, foi tomada da elaboração heideggeriana da estrutura existencial da compreensão, que ele chamou primeiramente de “hermenêutica da facticidade”, a auto-interpretação do fáctico, quer dizer, da existência humana real. Meu ponto de partida foi, então, a crítica ao idealismo e a suas tradições românticas. Vi claramente que as formas de consciência que havíamos herdado e adquirido, a consciência estética e a consciência histórica, eram figuras alienadas de nosso verdadeiro ser histórico e que as experiências originárias transmitidas pela arte e pela história não podiam ser compreendidas partindo-se daí. A distância tranquila que a consciência burguesa gozava de sua cultura ignorava o fato de que todos estamos implicados na situação e nela estamos em jogo. Por isso, a partir do conceito de jogo, busquei superar as ilusões da autoconsciência e os preconceitos do idealismo da consciência. O jogo nunca é um mero objeto, mas existe para aquele que participa dele, mesmo que seja ao modo de espectador. A inadequação dos conceitos de sujeito e objeto, já assinalada por Heidegger na exposição da pergunta pelo ser, formulada em Ser e tempo, poderia ser mostrada aqui de maneira concreta. O que mais tarde levou à “guinada” do pensamento em Heidegger, eu próprio procurei descrever como uma experiência-limite de nossa autocompreensão, como a consciência da história dos efeitos, que é mais ser do que consciência. O que assim formulei não era uma tarefa para a práxis (496) metodológica da arte e da ciência histórica nem tampouco se referia em primeira mão à consciência de método dessas ciências. Referia-se exclusivamente e em primeiro lugar à ideia filosófica da prestação de contas, da explicação. Até que ponto o método é uma garantia de verdade? A filosofia deve exigir da ciência e do método que reconheçam sua parcialidade no conjunto da existência humana e de sua racionalidade. VERDADE E MÉTODO II ANEXOS 30.