O conceito da “cosmovisão”, que nos é familiar e que surge pela primeira vez em Hegel, na Fenomenologia do Espíritom, para caracterizar a complementação postulatória da experiência ética fundamental em uma ordem moral do mundo, de Kant e de Fichte, só irá encontrar sua genuína cunhagem na estética. É a multiplicidade e a possível mudança das cosmovisões que acabou emprestando ao conceito “cosmovisão” esse tom com que estamos familiarizados. Nesse sentido, porém, o exemplo condutor é a história da arte, porque essa multiplicidade histórica não se deixa suspender na unidade de uma meta do progresso, voltada para a verdadeira arte. É verdade que Hegel só conseguiu reconhecer a verdade da arte devido ao fato de tê-la sobrepujado com o saber conceitual da filosofia, e construiu a história das cosmovisões, bem como a história mundial e a história da filosofia, a partir de uma completa autoconsciência do presente. Também nisso, porém, não se pode ver apenas que seja um desvio do caminho, já que, com isso, se ultrapassa o campo do espírito subjetivo. Nessa ultrapassagem reside um momento da verdade permanente do pensamento de Hegel. É verdade que, na medida em que a verdade do conceito, através disso, se torna todo-poderosa e suspende em si toda experiência, a filosofia de Hegel desautoriza, ao mesmo tempo e novamente, o caminho da verdade, que reconhecera na experiência da arte. Se procurarmos defender esse caminho no que lha cabe de razão, teremos de prestar conta, por princípio, ao que, aqui, se chama de verdade. São as ciências do espírito no seu conjunto onde se terá de ir encontrar uma resposta para essa pergunta. Pois estas não querem suplantar, mas compreender a variabilidade de todas as experiências, quer seja variabilidade da consciência estética ou histórica, quer a da consciência religiosa ou política, o que, porém, significa: exceder-se em sua verdade. Ainda vamos pormenorizar essa questão de como Hegel e o que há de evidente nas ciências do espírito, o que representa a “escola histórica”, se comportam reciprocamente, e de como se reparte a ambos os lados, o que possibilita uma compreensão adequada daquilo que denominamos a verdade das ciências do espírito. Não poderemos fazer justiça ao problema da arte do ponto de vista da consciência estética, mas apenas do ponto de vista dessa moldura mais ampla. VERDADE E MÉTODO PRIMEIRA PARTE 1.
A pressuposição da hermenêutica bíblica — na medida em que a hermenêutica bíblica interessa enquanto pré-histórica da hermenêutica moderna das ciências do espírito — é o princípio escriturístico da Reforma. O ponto de vista de Lutero é mais ou menos o seguinte: a Sagrada Escritura é sui ipsius interpres. Não se tem necessidade da tradição para lograr uma compreensão adequada dela, nem tampouco de uma técnica interpretativa ao estilo da antiga doutrina do quádruplo sentido da Escritura, já que sua literalidade possui um sentido unívoco, que deve ser intermediado por ela própria, o sensus literalis. Em particular, o método alegórico, que até então parecia indispensável para alcançar uma unidade dogmática na doutrina bíblica, só é legítimo quando a intenção alegórica se encontra dada na própria Escritura. Por exemplo, é correto aplicá-la quando se trata de parábolas. Por outro lado, o Antigo Testamento não deve querer ganhar sua relevância especificamente cristã, através de uma interpretação alegórica. Deve ser entendido ao pé da letra, e justamente ao ser entendido assim e ao se reconhecer nele o ponto de apoio da lei, que a ação (179) salvadora de Cristo suspende, é que ele adquire um significado cristão. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 1.
É justamente aqui que se encontra o ponto onde deverá engatar criticamente a tentativa de uma hermenêutica histórica. A superação de todo preconceito cuja revisão liberará primeiramente o caminho para uma compreensão adequada da finitude, que domina não apenas o nosso ser-homens, mas também nossa consciência histórica. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 2.
3. O saber-se da reflexão ética possui, de fato, uma relação para consigo mesmo muito característica. As modificações que Aristóteles apresenta no contexto de sua análise da phronesis são uma boa demonstração disso. Junto à phronesis, pois, a virtude da ponderação reflexiva, aparece o entendimento (Verständnis). O entendimento (Verständnis) é introduzido como uma modificação da virtude do saber ético, na medida em que aqui já não se trata do eu-mesmo, que deve agir. Segundo isso, “synesis” significa, inequivocamente, a capacidade de julgamento ético. Elogia-se, portanto, a compreensão de alguém, quando ele, julgando, consegue deslocar-se completamente para a plena concreção da situação em que o outro tem de atuar. Portanto, também aqui não se trata de um saber em geral, mas de uma concreção momentânea. Esse saber também não é, em nenhum sentido razoável, um saber técnico ou a aplicação do mesmo. O homem muito experimentado, aquele que conhece e tem experiência em toda classe de tramas e práticas e em tudo que existe, somente alcançará uma compreensão adequada daquele que atua, na medida em que satisfaça também a seguinte premissa: que também ele deseje o justo, que se encontre portanto nessa relação de comunidade com o outro. Isso tem sua concreção no fenômeno do conselho em “questões de consciência”. A pessoa que pede conselho, assim como quem o dá, situa-se sob a premissa de que o outro mantém uma relação de amizade com ele. Só um amigo pode aconselhar o outro ou, dito de outra maneira, somente um conselho com intenção de amizade pode ter sentido para o aconselhado. Também aqui se torna claro que o homem compreensivo não sabe nem julga a partir de um simples estar postado frente ao outro de modo que não é afetado, mas a partir de uma pertença específica que o une com o outro, de modo que é afetado com ele e pensa com ele. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 2.
Mas na medida em que essa hermenêutica, a partir da teoria, destrói essas deformações práticas procedentes da teoria, ocorre sem dúvida um efeito retroativo de uma falsa autocompreensão sobre o procedimento prático e também o efeito retroativo inverso de uma autocompreensão adequada. Mas a tarefa da reflexão da história dos efeitos não é buscar atualização e “aplicação”, mas antes descobrir e impedir todas as ingerências atualizantes na compreensão da tradição, não apenas pela disciplina formal da metodologia científica, mas pela reflexão concreta sobre o conteúdo. Apel expressa exatamente o que penso quando diz: “pertence ao âmbito dos deveres de um método de interpretação, com consciência de sua aplicação, ter de dificultar em certas circunstâncias sua aplicação ao presente no interesse de um entendimento não limitado” (141). Ousaria ir mais longe, e em lugar de “em certas circunstâncias”, dizer “em todas as circunstâncias”; só que não considero esse princípio como a consequência da consciência de aplicação, mas como a realização do verdadeiro dever da cientificidade, que muitas vezes parece-me ferido onde os preconceitos ideológicos continuam atuando como pano de fundo, como uma vis a tergo. Isso porque um senso metodológico de falsa exatidão não quer verificá-los. Nesse ponto, vejo com Apel (32) um perigo de real corrupção ideológica. Não saberia dizer se esse perigo atinge, como diz Apel (35), também aquelas ciências hermenêuticas do espírito que ele chama de “existencialistas”, uma vez que não sei o que ele tem em mente. Mas certamente o perigo não atinge aquelas ciências nas quais se orienta a reflexão hermenêutica, nem atinge essa reflexão. É só nesse caso que a reflexão hermenêutica pode tornar-se “prática”. Ela torna suspeita toda ideologia, à medida que evidencia seus preconceitos. VERDADE E MÉTODO II OUTROS 19.
“O mais importante é a intenção primordial e o ponto de vista central, ou, como dizemos nós, a finalidade do discurso”. Melanchton introduz, assim, um conceito que é determinante na hermenêutica tardia de Flacius e que ele toma emprestado da introdução metodológica à ética aristotélica. É claro que, ao afirmar que os gregos costumavam interrogar desse modo ao iniciar seus livros (sid), Melanchton não se refere ao discurso em sentido estrito. O conhecimento da intenção básica de um texto é essencial, segundo ele, para uma compreensão adequada. Esse ponto é essencial também para a principal teoria exposta por Melanchton, que é sem dúvida sua doutrina sobre os loci comunes. Introduz essa doutrina como parte da inventio, seguindo assim a antiga tradição da tópica. Ele está, porém, plenamente consciente da problemática hermenêutica que nela se aloja. Ele acentua que esses capítulos mais importantes, “que contêm as fontes e o resumo de toda a arte” , não é apenas um grande cabedal de opiniões, cujo conhecimento seria muito proveitoso para o orador e o mestre — porque na verdade uma boa compilação desses loci constituiria a totalidade do saber. Implicitamente, isso significa uma crítica hermenêutica à superficialidade de uma tópica retórica. Ao contrário, busca a justificação de seu próprio proceder. Isso porque Melanchton foi o primeiro a fundamentar a dogmática do protestantismo antigo numa escolha e compilação significativas de passagens decisivas da Sagrada Escritura; os lociprecipui editados em 1519. A crítica católica tardia ao princípio bíblico protestante não é totalmente justa quando denuncia uma inconsequência no princípio bíblico dos formadores à luz da apresentação desses enunciados dogmáticos. De certo, toda seleção de textos inclui uma interpretação, apresentando assim implicações dogmáticas, mas o postulado hermenêutico da teologia protestante primitiva consiste justamente em legitimar suas abstrações dogmáticas através da própria Escritura e a intenção desta. Uma outra questão é saber até onde os teólogos reformadores seguiram realmente o princípio da Escritura. VERDADE E MÉTODO II OUTROS 20.
Antes disso, na época do romantismo alemão, a hermenêutica se orientara pelas questões centrais da filosofia por obra de Schleiermacher. Seu pensamento, baseado na filosofia do diálogo, como a concebia sobretudo Friedrich Schlegel, parte do significado metafísico da individualidade e de sua subordinação e tendência ao infinito. Em seguida, com Wilhelm Dilthey a hermenêutica adquiriu seu caráter propriamente filosófico. Em 1966, publicou-se pela primeira vez, entre os materiais diltheyanos sobre a vida de Schleiermacher reunidos em um segundo volume, o grande estudo do jovem Dilthey sobre hermenêutica. Desse estudo só conhecíamos alguns fragmentos, graças ao tratado acadêmico de 1900. Entre outras coisas ele mostra como as bases da problemática filosófica da hermenêutica radicam-se no idealismo alemão, mas não somente na descrição dialética de Schleiermacher sobre a compreensão como ação recíproca de subjetividade e objetividade, de (426) individualidade e identidade, mas sobretudo na crítica de Fichte ao conceito dogmático de substância e nas possibilidades que ele abriu para se pensar o conceito de força histórica. Baseia-se também em Hegel, na medida em que eleva o espírito “subjetivo” ao caráter de espírito “objetivo”. Dilthey soube ver justamente a relevância pioneira da Historik (Historiografia) de Droysen para a metodologia das ciências do espírito, na medida em que Droysen aproveitou o legado idealista para uma autocompreensão adequada do método histórico. A herança dessa hermenêutica idealista continua viva até os nossos dias. Uma excelente apresentação sistemática e um desenvolvimento atual devemos ao historiador de direito Emilio Betti, cujo “manifesto” hermenêutico em língua alemã recolhe o resumo dessa tradição (cf. Betti). Ele fez sua exposição sistemática em uma obra muito abrangente. VERDADE E MÉTODO II ANEXOS 28.