Gadamer (VM): caráter hermenêutico

Outra coisa é, porém, a questão da consistência interna da obra, do que se fez dentro de seus limites. Nesse sentido, quero que este volume, o segundo de minhas obras completas, entre como complemento. O seu conteúdo divide-se em três seções: Preliminares, que podem ser úteis à sua própria conceptibilidade prévia; Complementos, que se impuseram no decorrer dos anos (essas duas partes já foram publicadas, no essencial, em meus Kleine Schrifterí). A parte mais importante desse volume II contém Outros desenvolvimentos; em parte, já previstos, mas em parte provocados pelas discussões críticas de minhas ideias. A teoria da Literatura, especificamente, constava desde o princípio de meus planos como um desenvolvimento de meus pensamentos, e que aparece mais detalhadamente agora (nos volumes VIII e IX dos Gesamelte Schriften) numa sintonia mais estreita com a práxis hermenêutica. As questões fundamentais de caráter hermenêutico receberam novas luzes tanto nas discussões com Habermas quanto nos reiterados encontros com Derrida, que se enquadram perfeitamente no contexto deste volume. Por fim, acrescentaram-se no anexo os excursos, os complementos, prefácios e posfácios acrescidos às edições posteriores de Verdade e método. Minha auto-apresentação, escrita em 1973, conclui este volume. Os índices remissivos comuns aos volumes I e II acentuam a pertença mútua dos dois volumes. Com este volume espero ter a oportunidade de melhorar as (5) deficiências de meu livro e de ajudar aos mais jovens na continuidade do trabalho. VERDADE E MÉTODO II Introdução 1.

Se pudermos dar crédito a Platão, será interessante notar não só que a interpretação dos poetas foi feita tanto por Sócrates quanto por seus adversários sofistas. Mais importante é o fato de toda a dialética platônica ter sido expressamente relacionada pelo próprio Platão com a problemática da literatura escrita, e que, mesmo no âmbito da realidade do diálogo, a dialética assume, não raro, expressamente um caráter hermenêutico, seja porque se introduza a conversação dialética por uma tradição mítica de sacerdotes e sacerdotisas, seja pelos ensinamentos de Diotima ou simplesmente pela constatação de que os antigos não teriam se preocupado se nós compreendemos ou não, e por isso ter-nos-iam deixado sem ajuda, como diante de uma lenda. Devemos considerar também a posição inversa: Até que ponto os próprios mitos de Platão fazem parte do curso da preocupação dialética, possuindo assim, eles próprios, caráter de interpretação? Assim, a partir dos impulsos dados por Hermann Gundert, a construção de uma hermenêutica platônica poderia ser sumamente instrutiva. VERDADE E MÉTODO II ANEXOS 27.

Nesse sentido, a dimensão da teoria da ciência foi radicalmente ultrapassada. Nessa teoria, desde Dilthey até Betti o pensamento idealista foi utilizado em função da hermenêutica. Schleiermacher já havia destacado a conexão interna existente entre falar, compreender e interpretar, dissolvendo a vinculação tradicional do tema hermenêutico a “manifestações vitais fixadas por escrito” (Dilthey). Com isso, restituiu o caráter hermenêutico ao diálogo vivo. Mas também no estreitamento epistemológico que hermenêutica voltou a sofrer no século XIX não se puderam esconder as dificuldades que se opunham a uma teoria geral da interpretação inspirada no idealismo. O fato de a hermenêutica jurídica, que reivindica uma função legislativa, dever conectar-se à área da metodologia hermenêutica das ciências do espírito tornava-se tão obscuro como o sentido reprodutivo da interpretação que desempenha papel tão importante no teatro e na música. Ambos indicam para além da problemática inerente à teoria da ciência. Isso vale também para a teologia. Pois, mesmo que a hermenêutica teológica não lance mão de nenhuma outra fonte de inspiração ou de revelação para o ato de compreensão da Sagrada Escritura, o acontecimento querigmático da interpretação da Bíblia, como se dá na pregação ou no cuidado pastoral individual, enquanto fenômeno hermenêutico, não pode ser simplesmente desqualificado nem reduzido à problemática científica da teologia. Desse modo, foi preciso interrogar qual a necessidade de se abordar a unidade do problema hermenêutico num âmbito que ultrapassa a teoria da ciência e apreender o fenômeno da compreensão e da interpretação em um sentido mais originário. Mas então deveríamos ultrapassar também a ampliação universal da hermenêutica feita por Schleiermacher e sua fundamentação na unidade do pensamento e da fala. Isso porque deveríamos englobar também a hermenêutica jurídica, que antes estava estreitamente ligada à hermenêutica teológica, porque ambas incluíam “interpretação” e aplicação, isto é, o emprego de algo normativo ao caso particular. VERDADE E MÉTODO II ANEXOS 28.