Temos pois de renovar a indagação: o que é confirmado pelo espectador? É evidente que se trata justo da inconveniência e da dimensão assustadora das consequências que resultam de uma ação culposa, que representam a verdadeira provocação do espectador. A afirmação trágica é a superação dessa provocação. Tem o caráter de uma genuína comunhão. O que se experiecia num tal excesso de desgraça trágica é algo verdadeiramente comunitário. O espectador reconhece a si mesmo e ao seu próprio ser finito em face do poder do destino. O que acontece com os grandes passa a ter significado exemplar. A confirmação da nostalgia trágica não vale para o processo trágico como tal ou para a justiça do destino, que atinge o herói, mas significa uma ordenação metafísica do ser, válida para todos. O “é assim mesmo” é uma espécie de autoconhecimento do espectador, que retorna de modo clarividente dos ofuscamentos em que ele, como qualquer outro, vive. A afirmação trágica é clarividência por força da continuidade de sentido, no qual o próprio espectador volta a se colocar. VERDADE E MÉTODO PRIMEIRA PARTE 2.
Desta análise do trágico não extraímos apenas o fato de que aqui se trata de um conceito fundamental da estética, na medida em que o distanciamento do ser do espectador pertence à essência do trágico — mais importante é que o distanciamento do ser do espectador, que determina o modo de ser do estético, não contém algo como a “diferenciação estética”, que tínhamos reconhecido como o traço essencial da consciência estética. O espectador não se comporta no distanciamento da consciência, que usufrui da arte da representação, mas sim na comunhão do tomar parte (Dabeisein). O genuíno centro de gravidade do fenômeno trágico reside, ao cabo, naquilo que está sendo representado e reconhecido e no qual, obviamente, a participação não pode ser aleatória. Por mais que o espetáculo teatral trágico, que é encenado solenemente no teatro, represente uma situação de exceção na vida de cada um, não é, certamente, como uma vivência aventuresca e não produz uma embriaguez de perplexidade, da qual redespertamos para o nosso verdadeiro ser, más a elevação e a comoção que se (138) apossam do espectador aprofundam, na verdade, sua continuidade consigo mesmo. A nostalgia trágica provém do autoconhecimento com que é contemplado o espectador. Reencontra-se a si mesmo na situação trágica, porque é seu próprio mundo, conhecido a partir da tradição religiosa ou histórica, que assim vem ao seu encontro, e ainda que para uma tomada de consciência posterior — certamente já a de Aristóteles, mais ainda a de Sêneca ou de Corneille — essa tradição já não possua mais caráter obrigatório, na atuação subsequente de tais obras e temas trágicos, encontra-se mais do que a manutenção da validade de um modelo literário. Não pressupõe apenas que o espectador ainda esteja familiarizado com a saga, inclui também o fato de que sua linguagem ainda o alcance realmente. Somente assim o encontro com tais temas e com tais obras trágicas poderá se tornar um auto-encontro. VERDADE E MÉTODO PRIMEIRA PARTE 2.
Não há dúvida de que isso é uma reformulação do conceito hegeliano. Mas o que significa? Até que ponto leva em conta a “realidade da vida”? O mais significativo é evidentemente a expansão do conceito do espírito objetivo à arte, à religião e à filosofia; pois isso significa que Dilthey vê também neles não uma verdade imediata, mas formas de expressão da vida. Equiparando a arte e a religião com a filosofia, rechaça simultaneamente as pretensões do conceito especulativo. Dilthey não nega, em absoluto, que essas formas tenham primazia ante as outras formas do espírito objetivo, na medida em que é “justamente nas suas poderosas formas” onde o espírito se objetiva e é conhecido. De outra parte, foi essa primazia do pleno autoconhecimento do espírito que permitiu a Hegel compreender essas formas como formas do espírito absoluto. Nelas já não havia nada de estranho e, por isso, o espírito estaria inteiramente em casa, estando consigo mesmo. Também para Dilthey as objetivações da arte representavam, como já vimos, o verdadeiro triunfo da hermenêutica. E assim, a oposição a Hegel se releva a término o retorno do espírito, enquanto que para Dilthey o conceito filosófico não tem significado cognitivo, mas expressivo. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 1.
E assim teremos de nos indagar se não haverá também para Dilthey uma forma do espírito que seja verdadeiro “espírito absoluto”, isto é, plena autotransparência, total extensão de toda estranheza e de todo ser diverso. Para Dilthey, não há dúvida de que isso existe e que é a consciência histórica que corresponde a esse ideal, e não a filosofia especulativa. Essa consciência vê todos os fenômenos do mundo humano-histórico tão-somente como objetos, nos quais o espírito se conhece mais profundamente a si mesmo. E, na medida em que os entende como objetivações do espírito, transfere-os de volta “à vitalidade espiritual de onde procedem”. As configurações do espirito objetivo são para a consciência histórica, portanto, objetos do autoconhecimento desse espírito. A consciência histórica se estende ao universal, na medida em que entende todos os dados da historia como manifestação da vida, da qual procedem; “a vida compreende aqui a vida”. Nessa medida, toda a tradição se converte, para a consciência histórica, num auto-encontro do espirito humano. Com isso, atrai para si o que parecia reservado às criações específicas da arte, da religião e da filosofía. Não é no saber especulativo do conceito, mas na consciência histórica, onde se leva a cabo o saber de si mesmo do espírito. Esta descobre o espirito histórico em tudo. A (234) própria filosofía só vale como expressão da vida. E, na medida em que ela é consciente disso, renuncia à sua antiga pretensão de ser conhecimento por conceitos. Volta a ser filosofía da filosofía, uma fundamentação filosófica do fato de que, na vida — e junto à ciência — há filosofía. Em seus últimos trabalhos, Dilthey esboça uma tal filosofia na qual ele reconduz os diversos tipos de concepção de mundo à pluralidade de facetas da vida que se desenvolve neles. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 1.
Em Dilthey não se encontra resposta explícita a essa pergunta. Todavia, toda sua obra científica responde indiretamente a ela. Talvez se pudesse dizer: a consciência histórica não é tanto um apagar-se a si mesmo, como uma progressiva posse de si mesmo, e é isso o que distingue a consciência histórica de todas as demais formas do espírito. Por mais indissociável que seja o fundamento da vida histórica, do qual ela se eleva, a consciência histórica é capaz de compreender historicamente sua própria possibilidade de comportar-se historicamente. Por isso, não se trata — como acontece com a consciência, frente a seu desenvolvimento vitorioso que se torna consciência histórica — de expressão imediata de uma realidade da vida à tradição, na qual se encontra, nem a continuar assim, em ingênua apropriação da tradição, essa mesma tradição. Pelo contrário, se reconhece em uma relação reflexiva consigo mesma e com a tradição na qual se encontra. Compreende-se a si mesma a partir de sua história. A consciência histórica é uma forma do autoconhecimento. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 1.
Uma resposta como esta poderia indicar a necessidade de determinar mais profundamente a essência do autoconhecimento. E, de fato — como veremos — as fracassadas tentativas de Dilthey acabam se encaminhando ao fito de tornar compreensível, “a partir da vida”, o modo como a consciência científica se eleva, partindo do autoconhecimento. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 1.
Penetração de espírito é mais que conhecimento deste ou daquele estado de coisas. Contém sempre um retorno de algo em que estávamos presos por cegueira. Nesse sentido implica sempre um momento de autoconhecimento e representa um lado necessário do que chamamos experiência num sentido autêntico. Também a penetração de espírito é algo a que se chega. Também isto é afinal uma determinação do próprio ser humano: ser perspicaz e compreensivo. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 2.
Acrescenta-se agora um terceiro aspecto, uma concepção que se tornou cada vez mais relevante para mim: A liberdade ilimitada da compreensão não é apenas uma ilusão, descoberta pela reflexão filosófica. Nós mesmos experimentamos esse limite da liberdade de compreensão sempre que procuramos compreender. E só pelo fato de a liberdade de compreensão precisar limitar-se que a compreensão consegue apreender o real com sucesso, ou seja, ali onde renuncia a si própria, isto é, diante do incompreensível. Com isso, não me refiro a nenhuma modéstia piedosa frente ao insondável, mas a um elemento de nossa experiência ética da vida, conhecida por todos nós: a compreensão na relação entre eu e tu. A experiência ensina que nada mais impede um verdadeiro entendimento entre um eu e um tu do que a pretensão de uma das partes de compreender o outro em seu ser e em sua opinião. Ser de antemão “compreensivo” diante de todas as réplicas do outro nada mais é que tirar o corpo fora do postulado feito pelo outro. É um modo de não se deixar dizer nada. Onde porém, alguém está disposto a escutar o que o outro tem a dizer, onde se deixa espaço para o postulado do outro, sem compreendê-lo de antemão e com isso limitá-lo, ali se adquire um autoconhecimento autêntico. É justamente neste ponto que se lhe revela algo. Não é portanto num compreender soberano que se dá uma real ampliação desse nosso eu, confinado à estreiteza da vivência, como pensa Dilthey, mas antes no encontro com o incompreensível. Talvez não compreendamos nunca tão bem nosso próprio ser histórico como quando somos atingidos por um halo de mundos históricos totalmente estranhos. O caráter fundamental do ente histórico é o de ser revelador, ser significativo, isso, porém, no sentido ativo da palavra. E ser para a história é deixar que algo tenha significado. Um vínculo autêntico entre eu e tu só pode surgir desta forma; aquilo que vincula o destino histórico entre nós e a história só pode formar-se desta forma. VERDADE E MÉTODO II PRELIMINARES 2.
O que reconhecemos historicamente, no fundo, somos nós mesmos. O conhecimento próprio das ciências do espírito tem em si sempre um quê de autoconhecimento. Em nenhum outro lugar é tão fácil e tão próximo o engano do que no autoconhecimento. Só (41) que em nenhum outro lugar é tão significativo para o ser do homem como quando este conhecimento alcança êxito. Dessa forma, nas ciências do espírito é importante auscultar da tradição histórica não apenas a nós mesmos, do jeito que já nos conhecemos, mas também algo diferente: Vale a pena experimentar o impulso que ela nos dá e que nos faz ir além de nós mesmos. Por isso, uma investigação que não mexa conosco, que sirva apenas para satisfazer nossas expectativas, não merece propriamente ser promovida; é preciso reconhecer, no entanto — contra nós mesmos — , onde surgem novos impulsos. VERDADE E MÉTODO II PRELIMINARES 3.
As ciências do espírito, que fazem esta experiência em si mesmas, têm assim a possibilidade especial de evitar as seduções do poder e a corrupção da sua razão. Isto porque o seu autoconhecimento desilude-as de querer empregar mais ciência a fim de alcançar o que elas ainda não podem gerar. O ideal de um iluminismo pleno acabou contradizendo a si próprio, e foi justamente isso que forneceu às ciências do espírito sua tarefa específica: tanto ter o pensamento sempre voltado para a elaboração científica da própria finitude e do condicionamento histórico quanto resistir à auto-apoteose do Iluminismo. Não podem desincumbir-se da responsabilidade da influência que exercem. Frente à manipulação da opinião pública pela publicidade imposta pelo mundo moderno, elas exercem, através da família e da escola, uma influência sobre o universo dos adolescentes. Onde elas se pautam pela verdade, imprimem um vestígio indelével de liberdade. VERDADE E MÉTODO II PRELIMINARES 3.
Examinemos, por outro lado, Wilhelm Dilthey, o principal adversário dessa filosofia epistemológica da história desenvolvida pelo neokantismo, considerando Dilthey desde as consequências de seu próprio enfoque, que assume uma psicologia como ciência do espírito. Percebemos que ele de fato investiga a estrutura básica do curso histórico e tenta formular, mediante conceitos adequados, a continuidade do contexto histórico disperso no tempo. Em Dilthey o ponto de partida desta empresa é, porém, a psicologia, a autocerteza humana que reside em suas próprias vivências. Essa mesma certeza deverá legitimar também a continuidade do processo histórico. Essa autocerteza da continuidade de um processo encontra sua expressão mais característica e mesmo sua realização literária mais sólida na autobiografia. Aqui encontramos realmente a tentativa, numa visão retrospectiva, de extrair do conjunto das vivências, de sua sucessão e das constelações que presidiram a própria vida, uma espécie de estrutura de sentido: a unidade de um todo histórico-vital. E contudo inegável que a autobiografia só reflete isso que chamamos história em aspectos particulares. O que se compreende na autobiografia sempre se encontra na luz íntima da auto-interpretação do observador. O que se encadeia retrospectivamente numa unidade compreensível é o passado vivido e a história autovivenciada. Mesmo deixando de lado todo o difícil problema do autoconhecimento, não fica claro como dessa continuidade psicológica das vivências pode resultar a continuidade tão diversa e sustentada numa escala tão ampla dos nexos históricos. VERDADE E MÉTODO II COMPLEMENTOS 10.
A experiência hermenêutica carrega uma tensão não só desde o surgimento da ciência moderna, mas desde que se pleiteou um questionamento hermenêutico: uma tensão que jamais se resolve. Desse modo, ela não se deixa enquadrar sob o esquema de um autoconhecimento na alteridade, no qual o sentido seria sempre apreendido e transmitido plenamente. Esse conceito idealista do sentido do compreender não me parece desorientar apenas Apel, mas a maioria de meus críticos. Eu próprio admito que uma hermenêutica filosófica reduzida a idealismo necessita de complemento crítico. Procurei demonstrar isso na crítica aos seguidores hegelianos do século XIX, Droysen e Dilthey. Mas o impulso da hermenêutica não foi sempre “compreender” pela interpretação o estranho, a vontade inescrutável dos deuses, a mensagem de salvação ou as obras dos clássicos. Tampouco isso significa sempre uma inferioridade constitutiva daquele que compreende frente àquele que fala ou que dá a entender? VERDADE E MÉTODO II OUTROS 19.
Esse conceito distingue-se do conceito de autoconhecimento, não somente no sentido psicologista de que no autoconhecimento conhece-se algo dado de antemão, mas também no sentido especulativo mais profundo, que determina o conceito de espírito do idealismo alemão, segundo o qual a autoconsciência perfeita conhece a si mesma no ser outro. Não há dúvidas de que o desenvolvimento dessa autoconsciência na Fenomenologia do Espírito de Hegel só se tornou possível em grande parte pelo reconhecimento do outro. O vir-a-ser do espírito autoconsciente é uma luta por reconhecimento. Ele é o que veio a ser. Por outro lado, no conceito da autocompreensão que diz respeito ao teólogo está em questão algo bem diferente. VERDADE E MÉTODO II ANEXOS 27.
Por fim, a própria tarefa que se estava empreendendo estava condicionada pela história dos efeitos, baseando-se numa tradição filosófica e cultural alemã muito concreta. Em nenhuma outra região, as chamadas ciências do espírito haviam reunido tão vigorosamente como na Alemanha as funções científicas e as funções de cosmovisão; ou melhor, em nenhuma outra região haviam ocultado de maneira tão consequente a determinidade cosmovisiva e ideológica de seu próprio interesse por trás da consciência metodológica de seu procedimento científico. A unidade indissolúvel de todo autoconhecimento humano se expressou com mais claridade em outras regiões: na França, com o termo vago das lettres, em inglês com o termo naturalizado das humanities. O reconhecimento da consciência histórico-efeitual implicava, sobretudo, uma retificação na autoconcepção das ciências históricas do espírito, o que incluía também as ciências da arte. VERDADE E MÉTODO II ANEXOS 30.