Gadamer (VM): arte da compreensão

A doutrina da arte da compreensão e da interpretação havia se desenvolvido por dois caminhos diversos, o teológico e o filológico, a partir de um estímulo análogo: a hermenêutica teológica, como mostrou Dilthey muito bem, a partir da autodefesa da compreensão reformista da Bíblia contra o ataque dos teólogos tridentinos e seu apelo ao caráter indispensável da tradição; a hermenêutica filológica apareceu como instrumentaria para as tentativas humanísticas de redescobrir a literatura clássica. Num caso e noutro trata-se de redescobrimentos, e talvez de um redescobrimento de algo que não é totalmente desconhecido, mas de cujo sentido se havia tornado estranho e inacessível: A literatura clássica, enquanto material de formação, até estava sempre presente, mas havia sido amoldada por completo ao mundo cristão; também a Bíblia era, sem dúvida alguma, o livro sagrado que se lia ininterruptamente na igreja, segundo a convicção dos reformados, também por ela encoberta. Em ambas as tradições trata-se de linguagens estranhas, não a linguagem universal dos eruditos da época medieval latina, de maneira que o estudo da tradição, que se procura recuperar originariamente, torna necessário tanto aprender grego e hebreu como purificar o latim. A hermenêutica procura em ambos os terrenos, da tradição, tanto para a literatura como para a Bíblia pôr a descoberto o sentido original dos textos, através de um procedimento de correção quase artesanal, e ganha uma importância decisiva o fato de que em Lutero e Melanchthon se reúnam a tradição humanística e o impulso reformador. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 1.

A formação de uma ciência da hermenêutica, como foi desenvolvida por Schleiermacher na confrontação como os filólogos RA. Wolf e F. Ast, e em continuação à hermenêutica teológica de Ersnesti, não representa, pois, um mero passo adiante na história da arte da própria compreensão. Em si mesma, essa história da compreensão tem estado acompanhada pela reflexão teórica desde os tempos da filologia antiga. Essas reflexões, porém, têm o caráter de uma “doutrina da arte”, isto é, pretendem servir à arte da compreensão do mesmo modo que a retórica serve à arte de falar e a poética à arte de compor e a seu julgamento.íesse sentido também a hermenêutica teológica da patrística e da Reforma foi uma doutrina da arte. Todavia, agora é a compreensão como tal que se converte em problema. A generalidade desse problema é um testemunho de que a compreensão se converteu em uma tarefa num sentido novo, e que com isso também a reflexão teórica recebe um novo sentido. Ela já não é uma doutrina da arte a serviço da práxis do filólogo ou do teólogo. É verdade que o próprio Schleiermacher acaba dando à sua hermenêutica o nome de doutrina da arte, porém, em um sentido sistemático completamente diferente. E busca alcançar a fundamentação teórica do procedimento comum a teólogos e filólogos, na medida em que, aquém de ambos os interesses, remonta a uma relação mais originária da compreensão do pensamento. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 1.

Heidegger somente entra na problemática da hermenêutica e das críticas históricas com a finalidade ontológica de desenvolver, a partir delas, a pré-estrutura da compreensão. Já nós, pelo contrário, perseguimos a questão de como, uma vez liberada das inibições ontológicas do conceito de objetividade da ciência, a hermenêutica pôde fazer jus à historicidade da compreensão. A autocompreensão tradicional da hermenêutica repousava sobre seu caráter de teoria da arte. Isso vale inclusive para a extensão diltheyana da hermenêutica como organon das ciências do espírito. Pode até parecer duvidoso que exista uma tal teoria da arte da compreensão; sobre isso voltaremos mais tarde. Em todo caso, cabe indagar pelas consequências que tem para a hermenêutica das ciências do espírito o fato de Heidegger derivar fundamentalmente a estrutura circular da compreensão a partir da temporalidade da pre-sença. Essas consequências não necessitam ser tais, como se aplicasse uma nova teoria à práxis e esta fosse exercida por fim, de uma maneira diferente, de acordo com sua arte. Poderiam também consistir em que a autocompreensão da compreensão exercida constantemente fosse corrigida e depurada de adaptações inadequadas; um processo que mormente se optimalizaria por meio da arte do compreender. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 2.

Surge então a indagação de se saber se esta descrição alcança realmente o fenômeno hermenêutico. Existem realmente, aqui, dois horizontes diferentes, aquele no qual vive o que compreende e o horizonte histórico a que este pretende se deslocar? Trata-se de uma descrição correta e suficiente da arte da compreensão histórica, a de que é necessário aprender a deslocar-se a horizontes alheios? Pode-se dizer, nesse sentido, que existem horizontes fechados? Convém lembrar a objeção que Nietzsche fez ao historicismo, de romper o horizonte circunscrito pelo mito, único lugar onde uma cultura pode viver. Pode-se dizer que o horizonte do próprio presente é algo tão fechado? É sequer pensável uma situação histórica limitada por um tal horizonte fechado? VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 2.

É sabido que Platão considerava o desamparo da escrita como uma debilidade muito maior do que a que afeta os discursos (to asthenes to logon); não obstante, quando requer ajuda dialética para compensar essa debilidade dos discursos, na medida em que o caso da escrita lhe parece não ter saída, isso não é evidentemente senão um exagero irônico, através do qual procura ocultar sua própria obra literária e sua própria arte. Na realidade, com a escrita ocorre o mesmo que com a fala. Assim como naquela, correspondem-se mutuamente uma arte da aparência e uma arte do pensar verdadeiro, sofística e dialética, existe também, evidentemente, uma dupla arte de escrever, de maneira que uma serve a um pensamento e a outra a outro. Verdadeiramente existe também uma arte da escrita capaz de vir em ajuda do pensar, e a ela deve subordinar-se a arte da compreensão, que proporciona ao escrito idêntico auxílio. VERDADE E MÉTODO TERCEIRA PARTE 1.

Como costuma ocorrer com as palavras derivadas do grego e adotadas em nossa linguagem científica, o título “hermenêutica abarca diversos níveis de reflexão. Hermenêutica significa em primeiro lugar praxis relacionada a uma arte. Sugere a “techne” como palavra complementaria. A arte, em questão aqui, é a arte do anúncio, da tradução, da explicação e interpretação, que inclui naturalmente a arte da compreensão que lhe serve de base e que é sempre exigida quando o sentido de algo se acha obscuro e duvidoso. Já no uso mais antigo da palavra, detecta-se uma certa ambiguidade. Hermes é chamado o mensageiro divino, aquele que transmite as mensagens dos deuses aos homens: No relato de Homero, ele costuma executar verbalmente a mensagem que lhe fora confiada. Mas frequentemente, e em especial no uso profano, a tarefa do hermeneus consiste em traduzir para uma linguagem acessível a todos o que se manifestou de modo estranho ou incompreensível. Assim, a tarefa da tradução sempre tem uma certa “liberdade”. Pressupõe a plena compreensão da língua estrangeira e, mais do que isso, a compreensão da verdadeira intenção de sentido do que se manifestou. Quem quiser se fazer compreender como intérprete deve trazer novamente à fala este sentido da intenção. A contribuição que a “hermenêutica” pode fazer é sempre essa transferência de um mundo para outro, do mundo dos deuses para o dos homens, do mundo de uma língua estrangeira para o mundo da língua própria (os tradutores humanos podem traduzir somente para sua própria língua). Visto, porém, que a tarefa própria do traduzir consiste em “executar” algo, o sentido de hermeneuein oscila entre tradução e diretiva, entre mera comunicação e requisito de obediência. E certo que, em sentido neutro, hermeneia costuma significar “enunciação de pensamentos”, todavia é significativo o fato de que, para Platão, não é qualquer expressão de pensamento que possui o (93) caráter de diretiva, mas somente o saber do rei, do arauto etc. A proximidade da hermenêutica com a mântica não pode ser compreendida de modo diverso: a arte de transmitir a vontade do deus segue paralela à arte de adivinhá-la ou de prever o futuro mediante sinais. Mesmo assim, quando Aristóteles trata da questão do logos apophantikos, no tratado Peri hermeneias, ele só tem em mente o sentido lógico do enunciado, concentrando-se no outro componente semântico, puramente cognitivo. De modo semelhante, desenvolve-se no mundo grego posterior um sentido de hermeneia e hermeneus puramente cognitivo, que pode significar “explicação erudita”, “comentador” e “tradutor”. É claro que, enquanto arte, encontram-se ligados à hermenêutica restos herdados da esfera sacral: é a única arte cuja palavra deve ser estabelecida como padrão de medida, que se acolhe com admiração porque pode compreender e explicitar o que oculta, seja em discursos estranhos, seja na convicção inexpressa de outro. Trata-se, portanto, de uma ars: uma técnica, como a oratória, a arte de escrever ou a aritmética. É mais aptidão prática do que propriamente “ciência”. VERDADE E MÉTODO II PRELIMINARES 8.

Creio que se torna necessário tematizar aqui as universalidades interativas da retórica, da hermenêutica e da sociologia em sua interdependência e esclarecer a legitimidade característica de cada uma dessas universalidades. Isso torna-se ainda mais importante à medida que comportam — principalmente as duas primeiras — uma certa ambiguidade em sua pretensão científica, co-determinada por sua relação com a praxis. Isso porque a retórica não é evidentemente uma mera teoria das formas de falar e dos recursos de persuasão. Ela pode, antes, progredir de uma capacidade natural para uma destreza prática. Sejam quais forem seus recursos e métodos, tampouco a arte da compreensão depende imediatamente da consciência pela qual segue suas regras. Também aqui a habilidade natural que todos possuem pode tornar-se numa capacidade pela qual alguém pode suplantar todos os outros, e a teoria, na melhor das hipóteses, só poderá perguntar pelo porquê. Em ambos os casos dá-se uma suplementaridade entre a teoria e aquilo de que foi extraída e que chamamos de práxis. Uma pertence à filosofia grega primitiva, a outra é uma consequência da dissolução tardia dos fortes vínculos da tradição e do esforço para manter o que está em vias de desaparecer, superando-o por uma consciência lúcida. VERDADE E MÉTODO II OUTROS 18.

Mas onde deveria se apoiar também a reflexão teórica sobre a compreensão, se não na retórica, a qual, desde a antiga tradição, representa o único advogado de uma pretensão de verdade que defende o verossímil, o eikos (verosimile)”? E o que se torna evidente pela razão comum contra a pretensão demonstrativa e de certeza da ciência? Persuadir e evidenciar sem lançar mão da demonstração é o objetivo e o parâmetro tanto da compreensão e da interpretação quanto da arte da persuasão e do discurso… e esse amplo domínio das convicções evidentes e das opiniões comuns reinantes não se restringe gradualmente pelo progresso da ciência, por maior que seja, mas estende-se antes a todo novo conhecimento da investigação, reivindicando-o como seu e adaptando-o para si. A ubiquidade da retórica é ilimitada. Graças a ela a ciência se sociabiliza na vida. O que saberíamos sobre a física moderna, que transforma nossa vida a olhos vistos, se dependêssemos apenas dela? Todas as suas explanações que extrapolem o círculo de especialistas (e talvez tenhamos que dizer: à medida que não se restringem a um pequeno círculo de especialistas consagrados) devem seus efeitos ao elemento retórico que as sustenta. Como demonstrou sobretudo Henri Gouhier, mesmo Descartes, esse grande e apaixonado defensor do método e da certeza, enquanto escritor, lança mão largamente dos recursos da retórica em todos os seus escritos. Não pode haver dúvidas quanto à sua fundamental função dentro da vida social. Toda ciência que queira ser prática depende dela. Por outro lado, a função da hermenêutica não é menos universal. A incompreensibilidade e a existência de mal-entendidos presentes nos textos da tradição de que se ocupou originariamente a hermenêutica é apenas um caso especial do que se encontra em toda orientação humana no mundo como o atopon, o estranho que jamais se deixa enquadrar nas expectativas habituais da experiência. E assim como no progresso do conhecimento os mirabila acabam perdendo sua estranheza, à medida que são compreendidos, assim também toda apropriação exitosa da tradição ganha uma nova familiaridade própria, pela qual ela nos pertence e nós pertencemos a ela. Ambas confluem num único mundo próprio e compartilhado, que abarca a história e a atualidade, o qual encontra sua articulação de linguagem nos discursos entre os seres humanos. Também da parte da compreensão, portanto, a universalidade da estrutura da linguagem humana mostra-se como um elemento ilimitado que sustenta tudo, não somente a cultura transmitida pela linguagem, mas simplesmente tudo, porque tudo é assumido pela compreensibilidade na qual nos relacionamos uns com os outros. Platão pode tomar como ponto de partida legítimo o fato de que quem considera as coisas no espelho dos discursos assegura-se de sua plena e irrestrita verdade. E quando Platão ensina que todo conhecimento só é tal pelo reconhecimento, isso tem um sentido profundo e correto. Um “primeiro” conhecimento é tão impossível como uma primeira palavra. Também o conhecimento mais recente, cujas consequências ainda não são visíveis, só será o que realmente foi quando tiver se decantado nelas e tiver trilhado o caminho da mediação do entendimento intersubjetivo. VERDADE E MÉTODO II OUTROS 18.

Exatamente essa parece ser a situação da hermenêutica filosófica. Enquanto se definir a hermenêutica como a arte da compreensão e se compreender o exercício dessa arte como um comportamento competente, do mesmo modo que a arte de discursar e de escrever, esse saber disciplinar pode fazer uso consciente das regras e pode ser chamado de teoria da arte. Assim Schleiermacher e seus seguidores concebiam a hermenêutica como “teoria da arte”. Mas a hermenêutica “filosófica” não é isso. Ela não está à procura de elevar uma competência à consciência de regras. Essa “elevação continua sendo um processo peculiarmente ambivalente, uma vez que por outro lado a consciência das regras “eleva-se” sempre de novo a uma competência “automática”. A hermenêutica filosófica, ao contrário, reflete sobre essa competência e sobre o saber onde essa repousa. Não se presta mais, portanto, à superação de determinadas dificuldades de compreensão como ocorre frente a textos ou no diálogo com outras pessoas, mas o que busca é, como diz Habermas, um “saber reflexivo crítico”. Mas o que significa isso? VERDADE E MÉTODO II OUTROS 19.

Desse modo, a tarefa da retórica deslocou-se para a hermenêutica, sem existir uma consciência expressa dessa mudança, e supostamente anterior à invenção do termo “hermenêutica”. Mesmo assim o grande legado da retórica continua influenciando em pontos decisivos no que diz respeito ao novo trabalho de interpretação dos textos. Assim como a verdadeira retórica, para o discípulo de Platão, é inseparável do conhecimento da verdade das coisas (rerum cognitio), sob pena de mergulhar numa absoluta nadidade, também para a interpretação dos textos representa o postulado óbvio de que estes contenham a verdade sobre as coisas. Isso já era uma evidência inquestionável para a primeira renovação da retórica durante a época humanista, que estava totalmente regida pelo ideal da imitatio; agora aplica-se inteiramente à nova virada rumo à hermenêutica que é o objeto de nosso estudo. Isso porque tanto em Melanchton, quanto no primeiro fundador da hermenêutica protestante, Flacius Illyrucius, a controvérsia teológica sobre a compreensibilidade da Sagrada Escritura constitui o fundamento motivador. Nesse sentido, não podemos perguntar se a arte da compreensão tem por objeto também o descobrimento do verdadeiro sentido de um enunciado errôneo. Isso só vai mudar com o incremento da consciência metodológica no século XVII — sob a influência de Sabarella — , que modifica também o apoio teórico-científico da hermenêutica. É o que observamos em Dannhauer, que faz da retórica um anexo e busca fundamentar a nova retórica na retórica aristotélica. Mas isso não significa que, do ponto de vista do conteúdo, Dannhauer não dependesse da tradição retórica, que continuava paradigmática na exposição dos textos. VERDADE E MÉTODO II OUTROS 20.

O testemunho de uma citação de Digesto do Corpus iuris civilis representou para mim uma nova contribuição. Ela refere-se à arte da compreensão, própria da profissão do agente de câmbio, e permite o entendimento sobre o preço que os contratantes deve negociar. É sobremodo significativa a referência que faz Jaeger ao humanista francês Antonio Conte (38s). Da citação, deduz-se que o humanista francês compreende já a arte da interpretação que encontramos na atividade do agente de câmbio num sentido mais geral. O humanista afirma que o pagamento pelos serviços nem sempre representa um lucro tão suspeito como o pagamento pelos serviços do agente de câmbio. Trata-se pois de um serviço de interpretação e de intermediação no sentido mais amplo dos termos. Mas, como mostra a analogia com o agente de câmbio, a função desse intérprete não se limita à versão técnica da linguagem nem ao mero esclarecimento de pontos obscuros, mas representa um recurso global para a compreensão que presta uma intermediação entre os interesses das partes (voluntatum contrahentium). Também aqui, como na passagem do Epinomis, trata-se de uma atividade mediadora geral que se dá muito mais no trato da vida diária do que no contexto da ciência (é claro que essas aplicações do termo hermeneia são uma mera arte prática para favorecer a compreensão e nunca se busca uma análise lógica das regras dessa arte). VERDADE E MÉTODO II OUTROS 21.

A palavra “hermenêutica” é antiga. Mas também a coisa que ela designa, tanto faz se hoje é retratada como interpretação, exposição, tradição ou simplesmente compreensão, é muito anterior à ideia de uma ciência metodológica como a construída na época moderna. Mesmo o uso moderno da linguagem ainda reflete algo de peculiar dualidade e ambivalência na perspectiva teórica e prática, sob as quais encontra-se o tema da hermenêutica. No final do século XVIII e princípios do XIX a ocorrência da palavra “hermenêutica” em casos particulares em alguns escritores mostra que o uso da expressão — provavelmente provinda da teologia — era corrente e designava somente a faculdade prática de compreender, isto é, uma perspicácia sutil e intuitiva para conhecer os demais. Era algo que se elogiava muito no diretor espiritual, por exemplo. Encontrei essa palavra no escritor alemão Heinrich Seume (que estudara com Morus em Leipzig) e em Johann Peter Hebel. Mas o próprio Schlei-ermacher, o promotor da nova evolução da hermenêutica na linha da metodologia geral das ciências do espírito, indica expressamente que a arte da compreensão não é necessária somente para o trato com textos, mas também no trato com pessoas. VERDADE E MÉTODO II OUTROS 22.

A oscilação de palavras como “hermenêutica”, entre um significado prático e um significado teórico, dá-se também em outros casos. Falamos assim da “lógica” ou da falta de lógica no trato cotidiano com as pessoas, sem referir-nos em absoluto a uma disciplina filosófica específica sobre a lógica. O mesmo podemos dizer da palavra “retórica”, que expressa tanto a arte de falar, passível de ser ensinada, quanto a capacidade natural de falar e sua realização. É evidente que a aprendizagem de algo sem possuir um talento natural leva a resultados muito modestos. A falta de talento natural (302) para falar é difícil de compensar com o ensino metodológico. O mesmo acontece com a arte da compreensão, a hermenêutica. VERDADE E MÉTODO II OUTROS 22.

Essas questões denunciam a importância da metodologia. Que tipo de ciência é essa que se apresenta mais como um prolongamento de dons naturais e como uma explicitação teórica dos mesmos? Trata-se de um problema pendente para a história da ciência. Onde se inscreve a arte da compreensão? A hermenêutica está mais próxima da retórica ou devemos aproximá-la mais da lógica e da metodologia das ciências? Ultimamente, eu mesmo tenho tentado contribuir para essas questões de história da ciência. Assim como o uso da linguagem, também essa questão histórica indica que o conceito de método que serve de base para a ciência moderna acabou dissolvendo um conceito de “ciência” que se orienta justamente na direção dessa capacidade natural do ser humano. VERDADE E MÉTODO II OUTROS 22.

Essa retórica compartilha com a dialética a universalidade de seu postulado, porque não se limita a um âmbito determinado, como o saber especializado de uma techne. Isso explica o fato de (306) ela competir com a filosofia e ter podido rivalizar com esta como uma propedêutica universal. O Fedro busca mostrar que essa retórica ampliada, se é que deve superar a estreiteza de uma mera técnica regrada, que segundo Platão só contém ta pro tes technes anankaia mathemata (Faidros, 269b), deve dissolver-se no final em filosofia, na globalidade do saber dialético. Essa demonstração interessa-nos aqui, pois o que disse o Fedro em favor da retórica, elevando-a de uma mera técnica para um verdadeiro saber (que Platão chamou de techne), deve poder estender-se também à hermenêutica como arte da compreensão. VERDADE E MÉTODO II OUTROS 22.

Na época do romantismo, quando Schleiermacher e seus seguidores conformaram a hermenêutica numa “arte” universal destinada a legitimar a peculiaridade da ciência teológica, equiparando sua metodologia ao círculo das ciências, isso significou um passo decisivo no desenvolvimento da hermenêutica. Schleiermacher, possuidor de um dom natural da intuição compreensiva do próximo e a quem podemos chamar o amigo mais genial de uma época em que a cultura da amizade alcançou um valor elevado, sabia perfeitamente que a arte da compreensão não se podia limitar à ciência. Segundo ele, essa arte desempenha um papel de destaque na vida interpessoal. E sempre que nos defrontamos com palavras de uma pessoa dotada de profundidade, buscando compreender seu sentido, de imediato inacessível, lançamos mão constantemente dessa arte. Tentamos captar, segundo ele, algo entre as palavras do interlocutor espiritual, do mesmo modo que fazemos quando lemos entre as linhas. Não obstante, é justamente em Schleiermacher onde aparece a pressão que o conceito moderno de ciência exerce na autocompreensão hermenêutica. Ele distingue entre uma hermenêutica em sentido amplo e uma prática mais estrita da hermenêutica. A práxis em sentido amplo parte do pressuposto de que, ante as afirmações do outro, a reta compreensão e o mútuo entendimento constituem a regra, e o mal-entendido a exceção. A práxis estrita, ao contrário, parte do pressuposto de que o mal-entendido é a regra e que só com um esforço técnico se pode evitar o mal-entendido e alcançar uma compreensão correta. É evidente que essa distinção afasta a tarefa da interpretação do contexto consensual onde se alterna constantemente a verdadeira vida da compreensão. Agora ela deve superar um estranhamento total. O emprego de um recurso artificial destinado a descobrir o estranho e apropriar-se dele toma o lugar da faculdade comunicativa que permite a convivência dos seres humanos e onde se relacionam com a tradição que os sustenta. VERDADE E MÉTODO II OUTROS 22.

Da dupla referência que a hermenêutica mantém com a retórica tradicional e com a filosofia prática de Aristóteles parece desprender-se que o problema da hermenêutica pode experimentar uma clareza muito maior do que seria possível partindo da problemática imanente à metodologia científica atual. É uma tarefa muito árdua determinar o lugar que ocupa uma disciplina como a retórica aristotélica no âmbito da teoria da ciência. Mas temos razões para associá-la à poética e não podemos negar aos dois escritos atribuídos a Aristóteles sua intenção teórica. Não pretendem substituir os manuais técnicos nem promover a arte da palavra e da poesia num sentido técnico. Aristóteles coloca essas artes no mesmo nível que a medicina e a ginástica, que nesse contexto ele qualifica como ciências técnicas. Não foi exatamente em sua “Política”, onde elaborou teoricamente um imenso material sobre o saber político, que Aristóteles ampliou o horizonte de problemas da filosofia prática de tal modo que a questão a respeito da melhor constituição, e assim, uma questão prática, a questão do “bem”, elevou-se acima da variedade das formas de constituição estudadas e analisadas por ele? Como é que a arte da compreensão a que damos o nome de hermenêutica irá encontrar então seu lugar no horizonte do modo de pensar aristotélico? VERDADE E MÉTODO II OUTROS 22.