A isso se acrescenta um segundo caso. Mesmo a percepção tida como adequada jamais viria a ser um simples reflexo daquilo que é. Pois continuaria sendo sempre uma apreensão de algo. Toda a apreensão como… articula o que está ali, na medida em que tira a vista de… olha para… vê conjuntamente como… — e tudo isso pode, novamente, encontrar-se no centro de uma observação ou ser meramente “vista junto com outra coisa” (mitgesehen), à margem e um pano de fundo. Portanto, não há dúvida de que o ver é como um ler articulado daquilo que lá está, de muita coisa que lá está, ele ao mesmo tempo desvia a vista, de maneira que para o olhar já não está mais lá; da mesma forma, porém, também guiado por suas antecipações, “olha para dentro” e vê o que lá nem está. Imagine-se também uma tendência de invariante, que atua no próprio olhar, de maneira que sempre se vêem as coisas da forma mais igual possível. VERDADE E MÉTODO PRIMEIRA PARTE 1.
Essa descrição é, naturalmente, uma abreviação rudimentar: o fato de que toda revisão do projeto prévio está na possibilidade de antecipar um novo projeto de sentido; que projetos (272) rivais possam se colocar lado a lado na elaboração, até que se estabeleça univocamente a unidade do sentido; que a interpretação comece com conceitos prévio que serão substituídos por outros mais adequados. Justamente todo esse constante reprojetar, que perfaz o movimento de sentido do compreender e do interpretar, é o que constitui o processo que Heidegger descreve. Quem procura compreender está exposto a erros de opiniões prévias, as quais não se confirmam nas próprias coisas. Elaborar os projetos corretos e adequados às coisas, que como projetos são antecipações que apenas devem ser confirmadas “nas coisas”, tal é a tarefa constante da compreensão. Aqui não existe outra “objetividade” que a confirmação que uma opinião prévia obtém através de sua elaboração. Pois o que caracteriza a arbitrariedade das opiniões prévias inadequadas, senão que no processo de sua execução acabam se aniquilando? A compreensão somente alcança sua verdadeira possibilidade, quando as opiniões prévias, com as quais ela inicia, não são arbitrárias. Por isso faz sentido que o intérprete não se dirija aos textos diretamente, a partir da opinião prévia que lhe subjaz, mas que examine tais opiniões quanto à sua legitimação, isto é, quanto à sua origem e validez. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 2.
No entanto, examinando-o mais de perto, reconhecemos que também as opiniões não podem ser entendidas de maneira arbitrária. Da mesma forma que não é possível manter muito tempo uma compreensão incorreta de um hábito linguístico, sem que se destrua o sentido do todo, tampouco se podem manter, às cegas, as próprias opiniões prévias sobre as coisas, quando se compreende a opinião de outro. Quando se ouve alguém ou quando se empreende uma leitura, não é necessário que se esqueçam todas as opiniões prévias sobre seu conteúdo e todas as opiniões próprias. O que se exige é simplesmente a abertura à opinião do outro ou à do texto. Mas essa abertura já inclui sempre que se ponha a opinião do outro em alguma relação com o conjunto das opiniões próprias, ou que a gente se ponha em certa relação com elas. Claro que as opiniões representam uma infinidade de possibilidades mutáveis (em comparação com a univocidade de uma linguagem ou de um vocabulário), mas dentro dessa multiplicidade do opinável, isto é, daquilo em que um leitor pode encontrar sentido e, enquanto tal pode esperar, nem tudo é possível, e quem não ouve direito o que o outro está dizendo, realmente, acabará por não conseguir integrar o mal-entendido em suas próprias e variadas expectativas de sentido. Por isso também aqui existe um padrão. A tarefa hermenêutica se converte por si mesma num questionamento pautado na coisa, e já se encontra sempre determinada por este. Com isso o empreendimento hermenêutico ganha um solo firme sob seus pés. Aquele que quer compreender não pode se entregar, já desde o início, à casualidade de suas próprias opiniões prévias e ignorar o mais obstinada e consequentemente possível a opinião do texto — até que este, finalmente, já não possa ser ouvido e perca sua suposta compreensão. Quem quer compreender um texto, em princípio, disposto a deixar que ele diga alguma coisa por si. Por isso, uma consciência formada hermeneuticamente tem que se mostrar receptiva, desde o princípio, para a alteridade do texto. Mas essa receptividade não pressupõe nem “neutralidade” com (274) relação à coisa nem tampouco auto-anulamento, mas inclui a apropriação das próprias opiniões prévias e preconceitos, apropriação que se destaca destes. O que importa é dar-se conta das próprias antecipações, para que o próprio texto possa apresentar-se em sua alteridade e obtenha assim a possibilidade de confrontar sua verdade com as próprias opiniões prévias. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 2.
Com isso não faz, no fundo, senão o que requer a consciência histórico-hermenêutica em qualquer caso. Uma compreensão guiada por uma consciência metódica procurará não simplesmente realizar suas antecipações, mas, antes, torná-las conscientes para poder controlá-las e ganhar assim uma compreensão correta a partir das próprias coisas. Isso é o que Heidegger quer dizer quando exige que se “assegure o tema científico na elaboração de posição prévia, visão prévia e concepção prévia, a partir das coisas, elas mesmas. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 2.
Heidegger empreendeu uma descrição fenomenológica plenamente correta ao revelar a estrutura prévia da compreensão na presumida “leitura” daquilo que “está ali”. Ele também deu um exemplo de que dali surge uma tarefa. Em Ser e tempo, concretizou na questão pelo ser o enunciado universal, elevado a um problema hermenêutico (cf. Ser e tempo, vol. II, p. 104s). Para explicitar a situação hermenêutica da pergunta pelo ser segundo a posição prévia, visão prévia e concepção prévia, examinou criticamente a questão por ele dirigida à metafísica, em momentos decisivos da história da metafísica. Com isso, acabou fazendo o que a consciência histórico-hermenêutica exige para todos os casos. Uma compreensão efetuada com consciência metodológica não buscará simplesmente confirmar suas antecipações, mas tomar consciência delas, a fim de controlá-las e com isso alcançar a compreensão correta a partir das coisas elas mesmas. É o que pensa Heidegger, quando exige que na elaboração da posição prévia, visão prévia e concepção prévia se “assegure” o tema científico a partir das coisas elas mesmas. VERDADE E MÉTODO II PRELIMINARES 5.
Isso tem consequências no que Heidegger ensinou sobre a produtividade do círculo hermenêutico. Eu próprio formulei esse princípio afirmando que, mais que nossos conceitos, são nossos preconceitos que perfazem nosso ser. Isso é uma formulação provocativa, uma vez que busca restituir o direito ao conceito positivo do preconceito que o Iluminismo francês e inglês expulsou do uso da linguagem. Pode-se mostrar que originalmente o conceito de preconceito ultrapassa o sentido que lhe damos à primeira vista. Os preconceitos não são necessariamente injustificados e errôneos, de modo a distorcer a verdade. Na realidade, o fato de os preconceitos, no sentido literal da palavra, constituírem a orientação prévia de toda nossa capacidade de experiência é constitutivo da historicidade de nossa existência. São antecipações de nossa abertura para o mundo, que se tornam condições para que possamos experimentar qualquer coisa, para que aquilo que nos vem ao encontro possa nos dizer algo. De certo, isso não significa que estejamos cercados por um muro de preconceitos, e que somente permitiríamos o acesso a quem mostrasse seu passaporte, contendo a seguinte inscrição: aqui não se diz nada de novo. Ao contrário, é bem-vindo o hóspede que promete nos trazer algo novo para nossa curiosidade. Mas como vamos reconhecer o hóspede, admitido na nossa companhia, que vai dizer-nos algo novo? Também nossa expectativa e (225) nossa disposição para ouvir o novo não são trazidas necessariamente pelo antigo, onde nos encontramos? A comparação deve servir como uma espécie de legitimação para justificar por que o conceito de preconceito, que contém uma relação interna profunda com o conceito de autoridade, necessita de uma reabilitação hermenêutica. Como toda comparação, também essa é caolha. A experiência hermenêutica não consiste em que algo esteja fora e cioso para entrar. Ao contrário, somos tomados por algo, e, em virtude disso que nos toma, sentimo-nos abertos para o novo, o outro, o verdadeiro. É o que nos mostra Platão com a bela comparação entre a comida para o corpo e o alimento espiritual: enquanto podemos recusar o primeiro, por exemplo, pelo conselho do médico, o segundo é sempre assimilado. VERDADE E MÉTODO II OUTROS 17.
A autoconsciência metodológica da ciência moderna opõe-se certamente a isso. Assim, um historiador objetará que tudo isso é muito bonito, essa coisa de tradição histórica, único lugar onde as vozes do passado ganhariam significado e que inspiram os preconceitos que determinam a atualidade. Ele dirá ainda que a coisa muda de figura quando se trata realmente de investigação histórica. Como se pode levar a sério as opiniões de que por exemplo a explicação dos usos fiscais das cidades no século XV ou dos costumes matrimoniais dos esquimós recebam sua significação apenas a partir da consciência do presente e suas antecipações. Segundo ele, essas questões dizem respeito ao conhecimento histórico, e devem ser tratadas independentemente de qualquer relação com atualidade. VERDADE E MÉTODO II OUTROS 17.
É evidente que a expressão que utilizo, às vezes, dizendo que importa aderir à tradição, favorece a mal-entendidos. Não significa uma preferência pelo tradicional, ao qual deveríamos nos submeter cegamente. A expressão “adesão à tradição” significa, antes, que a tradição não se esgota no que sabemos de nossa própria tradição e da qual temos consciência, de tal modo que pudéssemos suspendê-la mediante uma consciência histórica adequada. A mudança do vigente é uma forma de adesão à tradição não menos que a defesa do vigente. A tradição se dá propriamente numa constante mudança. A “adesão” a ela impõe-se como formulação de uma experiência, em virtude da qual nossos planos e desejos sempre se adiantam à realidade, como se não tivessem ligação com essa. O que importa, então, é fazer a intermediação entre as antecipações do desejável e as possibilidades do factível, entre o mero desejo e o querer real, isto é, conformar as antecipações no material da realidade. VERDADE E MÉTODO II OUTROS 19.