Para o conteúdo da palavra “formação”, que nos é familiar, a primeira importante constatação é a de que o antigo conceito de uma “formação natural”, que se refere à aparência externa (a formação dos membros, uma figura bem formada), e sobretudo à configuração produzida pela natureza (p. ex., “formação de montanha”), foi naquela época quase inteiramente desvinculado do novo conceito. Formação integra agora, estreitamente, o conceito de cultura, e designa, antes de tudo, especificamente, a maneira humana de aperfeiçoar suas aptidões e faculdades. Através de Kant e de Hegel completa-se o cunho que Herder deu ao nosso conceito. Kant ainda não utiliza a palavra “formação” nesse contexto. Ele fala da “cultura” da faculdade (ou da “aptidão natural”), que, como tal, é um ato de liberdade do sujeito atuante. É por isso que, entre os deveres para consigo mesmo, cita o de não deixar enferrujar seus talentos, sem, nesse caso, utilizar a palavra “formação”. Hegel, ao contrário, já fala de formar-se e de formação ao acolher o mesmo pensamento kantiano do dever para consigo mesmo, e Wilhelm von Humboldt, com a capacidade auditiva que o celebriza, já percebe perfeitamente uma diferença de significado entre cultura e formação: “Quando nós, porém, em nosso idioma dizemos formação, estamos com isso nos referindo a algo ao mesmo tempo mais íntimo, ou seja, à índole que vem do conhecimento e do sentimento do conjunto do empenho espiritual e moral, a se derramar harmonicamente na sensibilidade e no caráter”. Aqui, formação não significa mais cultura, isto é, aperfeiçoamento de faculdades e de talentos. A ascensão da palavra formação desperta, mais do que isso, a antiga tradição mística, segundo a qual o homem traz em sua alma a imagem de Deus segundo a qual ele foi criado, e tem de desenvolvê-la em si mesmo. O equivalente latino para formação é formatio e corresponde noutros idiomas, p. ex., no inglês (em Shaftesbury) a form e formation. Também no alemão existem as correspondentes derivações do conceito de forma, p. ex., Formierung e Formation, há muito tempo em concorrência com a palavra Bildung (formação). Forma vem sendo inteiramente desvinculada de seu significado técnico desde o aristotelismo da Renascença, sendo interpretada de uma maneira puramente dinâmica e natural. Da mesma forma, o triunfo da palavra formação sobre forma não parece só acaso. Porque em “formação” (Bildung) encontra-se a palavra “imagem” (Bild). O conceito da forma fica recolhido por trás da misteriosa duplicidade, com a qual a palavra “imagem” (Bild) abrange ao mesmo tempo “cópia” (Nachbild) e “modelo” (Vorbild). VERDADE E MÉTODO PRIMEIRA PARTE 1.
Foram sobretudo dois princípios a partir dos quais se apresentou esse tema abrangente, que diz respeito à correlação entre a vida e a vivência; e veremos mais tarde como Dilthey, e especialmente Husserl, se enredaram na presente problemática. De um lado, trata-se do significado fundamental que possui a crítica de Kant sobre toda a doutrina substancial da alma e sobre a unidade transcendental da autoconsciência, que é diferente daquela, e que é a unidade sintética da aperception. Nessa crítica da psicologia racionalista foi possível vincular a ideia de uma psicologia baseada num método crítico, iniciativa que Paul Natorp já havia tomado em 1888127 e a partir do que Richard Hõnigswald viria a fundamentar, mais tarde, o conceito da psicologia do pensamento. Através do conceito do estar-consciente, que proclama a imediaticidade da vivência, Natorp designou o objeto da psicologia crítica e desenvolveu o método de uma subjetivação universal como sendo a forma de pesquisa da psicologia reconstrutiva. Natorp apoiou e continuou desenvolvendo, mais tarde, seu princípio fundamental através de uma crítica pormenorizada à formação do conceito da pesquisa psicológica contemporânea. Mas já em 1888 estava fixado o pensamento básico de que a concreção da vivência originária, isto é, a totalidade da consciência, constitui uma unidade indivisível, que somente se diferencia e determina através do método objetivador do conhecimento. “O consciente, porém, significa vida, isto é, relações recíprocas generalizadas.” Isso se observa principalmente na relação entre o consciente e o tempo: “O dado não é o consciente como fenômeno no tempo, mas o tempo como forma do consciente”. VERDADE E MÉTODO PRIMEIRA PARTE 1.
Finalmente isso acaba tendo influência também no desenvolvimento da estética filosófica, que, até, assume o conceito de símbolo no sentido universal de Goethe, mas do ponto de vista oposto, à realidade e à arte, isto é, pensando no “ponto de vista da arte” e da religião estética instruída do século XIX. Característico para isso é o posterior F.Th. Wischer, o qual, quanto mais se libera de Hegel, tanto mais amplia o conceito de símbolo de Hegel e vê no símbolo um dos desempenhos básicos da subjetividade. O “obscuro simbolismo da índole” empresta alma e significado ao, em si, inanimado (da natureza ou do fenômeno evidente aos sentidos). Como a consciência estética sabe-se livre — em face do mítico-religioso — o simbolismo, que empresta a todos, também é “livre”. Por mais que uma indeterminação ambígua continue sendo adequada ao símbolo, já não mais pode ser caracterizada através de sua relação privativa para com o conceito. Passa a ter, antes, sua própria positividade como uma criação do espírito humano. É a completa concordância do fenômeno com a ideia, que — de acordo com Schelling — é pensada no conceito de símbolo, enquanto a não-concordância é reservada à alegoria ou à consciência mítica. Ainda em Cassirer encontramos, num sentido semelhante, o simbolismo estético, em face do simbolismo mítico, caracterizado pelo fato de que no símbolo estético a tensão da imagem e do significado é compensada pelo equilíbrio — um último eco do conceito classicista da “religião artística”. VERDADE E MÉTODO PRIMEIRA PARTE 1.
Face a isso, Hegel oferece uma possibilidade diferente, isto é, de compensar entre si o ganho e a perda da empresa hermenêutica. Hegel tem a mais clara consciência da importância de qualquer restauração, quando ele, com relação ao ocaso da vida antiga e de sua “religião da arte”, escreve: “As obras da musa são agora, o que são para nós — belos frutos arrancados da árvore; um destino amável nô-los ofereceu, como uma jovem (173) presenteia aqueles frutos; não existe a vida real de sua existência, não existe a árvore que os produziu, não há a terra nem os elementos que perfizeram sua sustância, nem o clima que perfez sua determinação, nem a mudança das estações que dominavam o processo de seu devir. Assim, com as obras daquela arte, o destino não nos dá seu mundo, nem a primavera ou o verão da vida moral em que floresceram e maduraram, mas apenas a lembrança velada daquela realidade”. E, ao comportamento das gerações posteriores com respeito às obras de arte transmitidas, denomina ele de um “labor exterior”, “que talvez retire uma gota de chuva ou um pozinho desses frutos, e que em lugar dos elementos interiores da realidade do ético, que os rodeava, que os produziu e lhes deu alma, erige o aparato prolixo dos elementos mortos de sua existência externa, da linguagem, do histórico etc, não para adentrá-los, experimentando-lhe a vida, mas somente para imaginá-los”. O que Hegel descreve aqui é exatamente o que compreende a exigência de Schleiermacher de uma conservação histórica, mas que em Hegel traz, desde o princípio, um acento negativo. A investigação do ocasional, que complementa o significado das obras de arte, não está em condições de reconstruir a este. Continuam sendo frutos arrancados da árvore. Fazendo-os retornar ao seu contexto histórico, não se adquire nenhuma relação vital com eles, mas apenas uma relação imaginativa. Hegel não contesta, com isso, a legitimidade de adotar um tal comportamento histórico ante a arte do passado. O que faz é expressar o princípio da investigação da história da arte, que, como todo comportamento “histórico”, não é, aos olhos de Hegel, mais que um labor externo. VERDADE E MÉTODO PRIMEIRA PARTE 2.
Para poder situar em seu pano de fundo correto a verdadeira virada que Schleiermacher dá à história da hermenêutica, começaremos com uma reflexão que nele não desempenha o menor papel, e que desde ele desapareceu por completo dos questionamentos da hermenêutica (coisa que também restringe de uma maneira muito peculiar o interesse histórico de Dilthey pela história da hermenêutica), que na verdade domina o problema da hermenêutica e só através da qual torna-se compreensível a posição que Schleiermacher ocupa na história da hermenêutica. Partiremos do lema: compreender significa, de princípio, entender-se uns com os outros. Compreensão é, de princípio, entendimento. Assim, os homens se entendem entre si, na maioria das vezes imediatamente, isto é, vão se pondo de acordo até chegar a um entendimento. Acordo é sempre, portanto, acordo sobre algo. Compreender-se é compreender-se em (184) algo. Já a linguagem mostra que o “sobre quê” e o “em quê” não são apenas um objeto qualquer do discurso, do qual a compreensão mútua pudesse prescindir ao buscar seu caminho, mas são, antes, caminho e meta do próprio compreender-se. E quando se pode dizer que duas pessoas se entendem, independentemente do “sobre quê” e do “em quê”, isso quer dizer que não somente se entendem nisso ou naquilo, mas em todas as coisas essenciais que unem os homens. A compreensão só se converte numa tarefa especial no momento em que esta vida natural experimenta alguma distorção no co-visar do visado, que é um visar da coisa em causa comum. No momento em que se produz um mal-entendido, ou alguém manifesta uma opinião que causa estranheza por ser incompreensível, é apenas aí que a vida natural fica tão inibida com relação à coisa em causa comum, que a opinião enquanto opinião, isto é, enquanto opinião do outro, do tu ou do texto, se converte num dado fixo. Mas mesmo assim, ainda se procura em geral chegar a um acordo, e não somente compreender. E isso, de tal modo, que se refaz o caminho em direção à coisa em causa. Só quando se mostram vãs todas essas idas e vindas, que perfazem a arte do diálogo, da argumentação, do perguntar e do responder, do objetar e do refutar, e que se realizam também face a um texto como diálogo interior da alma que busca a compreensão, far-se-á uma mudança no questionamento. Só então o esforço da compreensão vai perceber a individualidade do tu e considerar sua peculiaridade. Na medida em que se trata de uma língua estrangeira, o texto já será, isso não é mais do que uma condição prévia. O verdadeiro problema da compreensão aparece quando, no esforço de compreender um conteúdo, coloca-se a pergunta reflexiva de como o outro chegou à sua opinião. Pois é evidente que um questionamento como este anuncia uma forma de alteridade bem diferente, e significa, em último caso, a renúncia a um sentido comum. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 1.
A própria formulação de Ranke ganha com isso um perfil histórico universal, um perfil dentro da história universal do pensamento e da filosofia. Nesse mesmo contexto, o próprio Platão já havia enfocado, pela primeira vez, a estrutura reflexiva (210) da dynamis, tornando possível a sua transposição à essência da alma, que Aristóteles empreendeu da teoria das dynameis, as potências da alma. A força é, segundo sua essência ontológica, “interioridade”. Nesse sentido é absolutamente correto que Ranke escreva: “A liberdade se associa à força”. Pois a força, que é mais que a sua exteriorização, já é sempre liberdade. Sabe que tudo poderia ter sido diferente, que cada indivíduo que atua teria podido também atuar de outra maneira. A força que faz história não é um momento mecânico. Para evitar isso, Ranke fala expressamente de “uma força original”, e da “fonte primeira e comum de todo fazer e deixar de fazer humano” — e isto é para Ranke a liberdade. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 1.
Mesmo a mentalidade empírica da escola histórica não está livre de pressuposições filosóficas. Continua sendo mérito do arguto metodólogo Droysen havê-las despojado de seus revestimentos empiristas, reconhecendo sua significação fundamental. Seu ponto de vista básico é o seguinte: a continuidade é a essência da história, porque, diferentemente da natureza, a história inclui o momento do tempo. Para isso, Droysen cita sempre de novo a frase aristotélica de que a alma é um acréscimo para si mesma (epidosis eis auto). Em oposição às meras formas de repetição da natureza, a história se caracteriza por esse tal crescimento em si mesma. Isso significa, porém: ela se caracteriza por um conservar e superar o conservado ultrapassando-o. Uma e outra coisa incluem saber-se. A própria história não é, portanto, somente um objeto do saber, mas está determinada em seu ser pelo saber-se. “O saber sobre ela é ela própria” (Historik, § 48). VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 1.
Já essa colocação de tarefa torna patente a repulsa ao idealismo especulativo. Apresenta uma analogia que deve ser entendida em sentido completamente literal. Dilthey quer que a razão histórica necessita de uma justificação igual à da razão pura. Se a crítica da razão pura fez época, não foi só por ter destruído a metafísica como pura ciência racional do mundo, da alma e de Deus, mas porque, ao mesmo tempo, apontava para um âmbito, dentro do qual o emprego de conceitos apriorísticos estava justificado e tornava possível o conhecimento. A crítica da razão pura não somente destruía os sonhos de um vidente do espírito, mas, ao mesmo tempo, respondia à pergunta de como é possível uma ciência da natureza pura. Assim, nesse entremeio, o idealismo especulativo havia acolhido o mundo da história junto com a auto-explicação da razão, e, além disso, havia conseguido, sobretudo em Hegel, resultados geniais precisamente no terreno histórico. Com isso, a pretensão de ciência racional pura ficava estendida, em princípio, ao conhecimento histórico. Este fazia parte da enciclopédia do (224) espírito. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 1.
Já nas suas ideias “para uma psicologia descritiva e analítica” Dilthey havia distinguido a tarefa de deduzir “o adquirido nexo da vida da alma”, das formas de explicação próprias do conhecimento da natureza. Havia empregado o conceito de estrutura para, com ele, destacar o caráter vivencial dos nexos da alma com relação aos nexos causais dos acontecimentos da natureza. O que caracterizava logicamente essa “estrutura” era que aqui intentava-se a um todo de relações, que não repousava sobre a sucessão temporal do ser efetivado, mas sobre relações internas. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 1.
Dilthey procura desde o início diferenciar as relações do mundo espiritual das relações causais no nexo da natureza, e essa é a razão pela qual o conceito da expressão e da compreensão da expressão ocupam nele, desde o início, uma posição central. Caracteriza a nova clareza metódica, que ganhou apoiando-se em Husserl, o fato de que ele acaba integrando com as Investigações lógicas de Husserl, o conceito do significado que se eleva do nexo de atuação. Nesse sentido, o conceito de Dilthey do caráter estrutural da vida da alma corresponde à teoria da intencionalidade da consciência, mesmo que essa descreva fenomenologicamente não só um fato psicológico, mas uma determinação essencial da consciência. Toda consciência é consciência de algo; todo comportamento é comportamento para com algo. O para que (Wozu) dessa intencionalidade, o objeto intencional, não é para Husserl um componente psíquico real, mas uma unidade ideal, um intencionado (Gemeintes) como tal. Nesse sentido, Husserl tinha defendido na primeira investigação lógica o conceito de um significado ideal-unitário face aos preconceitos do psicologismo lógico. Essa indicação teve, para Dilthey, uma importância decisiva, pois só a partir da análise de Husserl é que ele definiu verdadeiramente o que distingue a “estrutura”, do nexo causal. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 1.
Agora Dilthey pode dizer também até que ponto esse nexo estrutural está dado — seu principal ponto de atrito com Ebbinghaus — : não está dado na imediatez de uma vivência, mas tampouco se constrói simplesmente como resultante de fatores operativos sobre a base do “mecanismo” da vida da alma. A teoria da intencionalidade da consciência permite agora uma nova fundamentação do conceito do dado. A partir daqui já não se pode colocar como tarefa o derivar nexos a partir de átomos de vivências e explicá-los desse modo. Ao contrário, a consciência já se encontra sempre em tais nexos e tem seu próprio ser ao intensioná-los. Dilthey entendia que as investigações (230) lógicas de Husserl fizeram época, porque legitimaram conceitos como estrutura e significado, embora não fossem deduzíveis a partir de elementos. Esses conceitos foram caracterizados como sendo mais originários do que esses supostos elementos, a partir dos quais e sobre os quais deve construir-se. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 1.
Schleiermacher distingue nesse círculo hermenêutico do todo e da parte um aspecto objetivo e um aspecto subjetivo. Tal como cada palavra forma parte do nexo da frase, cada texto forma parte do nexo da obra de um autor, e esta forma parte, por sua vez, do conjunto do correspondente gênero literário e mesmo de toda a literatura. Mas, por outro lado, o mesmo texto pertence, como manifestação de um momento criador, ao todo da vida da alma de seu autor. A compreensão acaba acontecendo, a cada caso, a partir desse todo, de natureza tanto objetiva como subjetiva. No que se relaciona com essa teoria, Dilthey falará de “estruturas” e da “concentração em um ponto central”, a partir do qual se produz a compreensão do todo. Com isso ele transporta ao mundo histórico, como já dizíamos, o que desde sempre tem sido um fundamento de toda interpretação textual: que cada texto deve ser compreendido a partir (297) de si mesmo. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 2.
O modelo original da argumentação vazia é a pergunta sofística de como se pode perguntar algo que não se conhece. Essa objeção sofística formulada por Platão no Menon, não é superada, neste caso, por uma refutação argumentativamente superior, coisa digna de nota, mas é superada pelo apelo ao mito da preexistência da alma. É um apelo bastante irônico, pois o mito da preexistência e da anamnesis, destinado a resolver o enigma do perguntar e do buscar, não coloca em jogo, na realidade, uma certeza do conhecimento, e que se impõe face à vacuidade das argumentações formais. De outra parte, é uma caracterização clara da debilidade que Platão reconhece no logos o fato de que a crítica à argumentação sofística é fundamentada por ele, não lógica mas míticamente. Tal como a opinião verdadeira é um favor e um dom divino, a busca e o conhecimento do logos verdadeiro não é uma autopossessão do espírito. Mais tarde reconheceremos que a legitimação mítica que Platão dá, aqui, à dialética socrática possui um significado fundamental. Se o sofisma ficasse sem refutação — e argumentativamente não é refutável — esse argumento levaria à resignação. É o argumento da “razão preguiçosa” e possui um alcance verdadeiramente simbólico, na medida em que a reflexão vazia conduz, apesar de sua aparência triunfal, ao descrédito de qualquer reflexão. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 2.
O caráter original da conversação, como mútua referência de pergunta e resposta, mostra-se inclusive num caso tão extremo como o que representa a dialética hegeliana em sua condução de método filosófico. O desenvolvimento da totalidade da determinação do pensar como era o interesse da lógica hegeliana é também a tentativa de abranger, no grande monólogo do “método” moderno, a continuidade de sentido que se realiza particularmente, a cada vez, na conversação dos que falam. Quando Hegel impõe a tarefa de tornar fluidas e de dar alma às determinações abstratas do pensar, isso significa refundir a lógica na forma de realização da linguagem, o conceito da força de sentido da palavra que pergunta e responde; mesmo no seu fracasso, isso foi uma grandiosa recordação do que era e é a dialética. A dialética hegeliana é um monólogo do pensar que procura produzir, adiantadamente, o que pouco a pouco vai amadurecendo em cada conversação autêntica. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 2.
Disso se segue, no entanto, que temos de poder afirmar o mesmo para toda compreensão que se realiza na leitura silenciosa. Visto fundamentalmente, também a leitura contém sempre uma interpretação. Não é que a compreensão na leitura seja uma espécie de encenação interior, na qual a obra de arte alcançaria uma existência autônoma — ainda que encerrada na intimidade da interioridade da alma — como se dá na encenação à vista de todos. Pelo contrário, isso quer dizer que uma encenação colocada na exterioridade do espaço e do tempo, na verdade, não tem, ante a própria obra, uma existência autônoma, e que somente numa diferenciação estética secundária poderia chegar a alcançá-la. A interpretação da música ou da poesia, quando executadas, não diferem essencialmente da compreensão de um texto, quando é lido: Compreender implica sempre interpretar. O que faz o filólogo consiste também em tornar legíveis e compreensíveis os textos ou, o que dá no mesmo, em assegurar a correta compreensão de um texto face a seus possíveis mal-entendidos. E então já não há nenhuma diferença de princípio entre a interpretação que uma obra experimenta por sua reprodução e a que é produto do filólogo. Por mais secundária que seja considerada a justificação de sua interpretação em palavras por um artista que reproduz obras, e por mais que a rechace como não-artística, o que não poderá negar é que a interpretação reprodutiva é fundamentalmente capaz de uma justificação desse tipo. Também ele tem de querer que a sua acepção seja correta e convincente, e seguramente não pretenderá contestar a vinculação ao texto que tem como base. E, todavia, esse texto é o mesmo que coloca sua tarefa ao intérprete científico. Por.conseguinte, não poderá arguir nada de fundamental contra o fato de que sua própria compreensão de uma obra, tal como se manifesta em sua interpretação reprodutiva, possa ser, por sua vez, novamente compreendida, e isto significa que possa ser justificada interpretativamente, e tal interpretação terá de realizar-se em forma linguística. (404) Tampouco ela será, por sua vez, uma nova criação de sentido. Também a ela acontecerá que irá desaparecer como interpretação e conservar sua verdade na imediatez da compreensão. VERDADE E MÉTODO TERCEIRA PARTE 1.
Isso pode ser reconhecido, e, todavia, sempre iremos perder alguma coisa: é claro que Platão retrocede ante a verdadeira relação entre palavra e coisa. Nesse ponto considerava que a pergunta de como se pode conhecer o ente é na realidade demasiado ampla, e onde fala dela, onde portanto descreve a verdadeira essência da dialética, como ocorre no excurso da sétima carta, a linguisticidade somente aparece como um momento externo de uma não univocidade cambaleante. Faz parte dos pretextos (proteinomena) que procuram se nos impor e que o verdadeiro dialético deve deixar para trás, tal como a aparência sensível das coisas. O puro pensar as ideias, a dia-noia, é, em sua qualidade de diálogo da alma consigo mesma, mudo (aneu phones). O logos é a corrente que, partindo desse pensar, flui ressoando através da boca (reuma dia tou stomatos meta phthoggou): é claro que a sensorialização fônica não pode pretender para si nenhum significado de verdade próprio. Indubitavelmente, Platão não reflete sobre o fato de que a realização do pensamento, concebida como diálogo da alma, implica, por sua vez, uma vinculação, à linguagem. E se na sétima carta se expressa ainda algo disso, essa referência se dá, no entanto, no contexto da dialética do conhecimento, isto é, da orientação de todo o movimento do conhecer na direção do uno (auto). Ainda que aqui se reconheça fundamentalmente a vinculação linguística, esta não aparece, todavia, no seu verdadeiro significado: só é um dos momentos do conhecimento, e todos eles se manifestam em sua provisoriedade dialética (412), a partir da própria coisa, para a qual se dirige o conhecimento. Tem de se concluir, pois, que o descobrimento das ideias por Platão oculta a essência da linguagem ainda mais do que o fizeram os teóricos sofísticos, que desenvolveram sua própria arte (techne) no uso e abuso da linguagem. VERDADE E MÉTODO TERCEIRA PARTE 2.
Existe, no entanto, um pensamento que não é grego e que faz mais justiça ao ser da linguagem: a ela se deve que o esquecimento da linguagem pelo pensamento ocidental não se tornasse total. É a ideia cristã da encarnação. Encarnação não é evidentemente corporalização. Nem a ideia da alma nem a ideia de Deus, vinculadas a essa corporalização, correspondem ao conceito cristão da encarnação. VERDADE E MÉTODO TERCEIRA PARTE 2.
A relação entre alma e corpo, como é pensada nesse tipo de teorias, por exemplo, na filosofia platônico-pitagórica, e a que corresponde a ideia religiosa da transmigração das almas, instaura, antes, a completa alteridade da alma em relação ao corpo. A alma retém em todas as corporalizações seu ser para si, e a liberação do corpo é para ela purificação, isto é, reconstrução de seu ser verdadeiro e autêntico. Também a manifestação do divino na forma humana, que torna tão humana a religião grega, nada tem a ver com a encarnação. Ali, Deus não se torna homem, mas se mostra aos homens em forma humana, mantendo ao mesmo tempo, por inteiro e absolutamente, toda sua divindade supra-humana. Frente a isso, o Deus feito homem, como ensina a religião cristã, implica o sacrifício que assume o crucificado como filho do homem, e implica, com isso, uma relação misteriosamente diferente, cuja interpretação teológica tem lugar na doutrina da trindade. VERDADE E MÉTODO TERCEIRA PARTE 2.
Pois bem, também a filosofia do logos grego conhecia certamente este fato. Platão descreve o pensamento como uma conversação interior da alma consigo mesma, e a infinitude do esforço dialético que ele exige do filósofo é a expressão da discursividade da nossa compreensão finita. E, no fundo, por mais que Platão exigisse o “pensar puro”, ele mesmo não deixa de reconhecer constantemente que, para o pensamento da coisa, não se pode prescindir do meio da onoma e do logos. Mas se a doutrina da palavra interior não quer dizer outra coisa que a discursividade do pensar e do falar humano, como pode então a “palavra” ser uma analogia do processo das pessoas divinas, de que fala a doutrina da trindade? Não está em jogo nisso precisamente a oposição entre intuição e discursividade? Onde está o fator comum entre este e aquele “processo”? VERDADE E MÉTODO TERCEIRA PARTE 2.
Com isso viemos parar, como era de se supor, num âmbito de questões com as quais a filosofia está familiarizada desde antigamente. Na metafísica, pertença quer dizer a relação transcendental entre o ser e a verdade, que pensa o conhecimento como um momento do próprio ser, não primariamente como um comportamento do sujeito. Essa inclusão do conhecimento no ser é pressuposto do pensamento antigo e medieval. O que é, é verdadeiro por sua essência, isto é, está presente na atualidade de um espírito infinito, e somente por isso, torna-se possível ao pensamento humano e finito conhecer o ente. Por conseguinte, aqui não se parte do conceito de um sujeito que fosse por si e convertesse tudo o mais em objeto. Ao contrário, em Platão, o ser da “alma” se determina por sua participação no ser verdadeiro, isto é, porque pertence à mesma esfera da essência a que pertence a ideia. E Aristóteles dirá que a alma é, de um certo modo, todo ente. Nesse pensamento, não se faz menção de nenhum espírito sem mundo, com certeza de si mesmo e que tivesse de achar o caminho rumo ao ser (463) do mundo, mas que ambas as coisas vão originariamente juntas. O primário é a relação. VERDADE E MÉTODO TERCEIRA PARTE 3.
Essa incomum inibição que o pensamento experimenta quando, por seu conteúdo, a frase obriga a suspender o comportamento usual do saber, é o que constitui de fato a essência especulativa de toda filosofía. A grandiosa historia da filosofía de Hegel mostra até que ponto a filosofía é, desde seus primordios, especulação nesse sentido. Quando se expressa sob a forma da predicação, isto é, quando trabalha com representações fixas de Deus, da alma e do mundo, mal-interpreta sua própria essência e cultiva uma atividade unilateral, a de “olhar com os olhos do entendimento o que é objeto da razão”. Para Hegel, é esta a essência da metafísica dogmática pré-kantiana, e o que caracteriza em geral “os novos tempos da não-filosofia. Seja qual for o caso, Platão não é um metafísico desses, e Aristóteles muito menos, ainda que em certas ocasiões acredite-se ser o contrário”. VERDADE E MÉTODO TERCEIRA PARTE 3.
Assim, na filosofia platônica encontra-se uma relação bastante estreita, e em certas ocasiões uma verdadeira troca, entre a ideia do bem e a ideia do belo. Ambas encontram-se além do que é condicionado e múltiplo: O belo em si encontra-se finalmente com a alma amante, ao cabo de um caminho que passa por múltiplas belezas, como o uno, o que somente possui uma forma, o supremo (Banquete), tal como a ideia do bem, que se encontra acima do que está condicionado e do múltiplo que somente é bom num determinado sentido (República). O belo em si, tal como o bom em si (epekeina), está acima de todo ente. A ordenação do ente, que consiste em sua referência ao bem uno, coincide assim com a ordenação do belo. O caminho do amor que Diotima ensina, conduz dos corpos belos às almas belas, e destas às instituições, costumes e leis belas, e finalmente às ciências (por exemplo, as belas relações numéricas que a teoria dos números conhece), a esse “amplo mas dos belos discursos”, e inclusive mais além de tudo isso. Poderíamos nos perguntar se a superação da esfera do que se vê com os sentidos, e o acesso à esfera do “inteligível”, significa realmente uma diferenciação e elevação da beleza do belo e não meramente do ente que é belo. Todavia, é inteiramente claro que para Platão a ordenação teleológica do ser é também uma ordenação de beleza, que a beleza se manifesta no âmbito inteligível de maneira mais pura e mais clara que no sensível, onde pode aparecer distorcida pela imperfeição e pela desmedida. De um modo parecido, a filosofia medieval vincula estreitamente o conceito do belo com” o do bom, bonum, tão estreitamente que uma passagem clássica de Aristóteles sobre o kalon ficou incompreendida na Idade Média porque o termo grego tinha sido traduzido diretamente por bonum. VERDADE E MÉTODO TERCEIRA PARTE 3.
Por mais estreita que seja a relação entre a ideia do belo e a ideia do bom em Platão, este não deixa de ter presente uma diferença entre ambos, diferença que contém um característico predomínio do belo. Já vimos que o caráter inacessível do bom no belo, isto é, no caráter de medida do ente e na abertura que lhe é própria (aletheia), encontra uma correspondência na medida em que ainda lhe convém uma última exaltação. Mas Platão pode afirmar paralelamente que na tentativa de apreender o bom em si mesmo, este se refugia no belo. Assim, o belo se distingue do bem, que é o completamente inapreensível, porque se apreende mais facilmente. Ele tem por essência a característica de aparecer. Na busca do bem, o que se mostra é o belo. Este representa de imediato uma caracterização daquele para a alma humana. O que se mostra na sua forma mais (485) completa atrai para si o desejo amoroso. O belo atrai imediatamente, enquanto que as imagens diretrizes da virtude humana só podem ser reconhecidas obscuramente, no meio confuso dos fenômenos, porque elas não possuem luz própria e isto faz que sucumbamos, muitas vezes, às imitações impuras e às formas somente aparentes da virtude. Isso não ocorre com o belo. O belo tem sua própria luminosidade, e isso faz que sejamos desviados por cópias desfiguradas. Pois “somente à beleza foi dado ser o mais reluzente (ekphanestaton) e amável”. VERDADE E MÉTODO TERCEIRA PARTE 3.
A “reluzir” não é, portanto, somente uma das propriedades do que é belo, mas perfaz a sua verdadeira essência. A característica do belo, de atrair imediatamente o desejo da alma humana, está fundamentada em seu próprio modo de ser. É o caráter de medida do ente, que não o deixa ser somente o que é, mas que o faz aparecer também como um todo medido em si mesmo e harmonioso. Esta é a abertura (aletheia), de que Platão fala no Filebo e que faz parte da essência do belo. A beleza não é somente simetria, mas é a própria aparência que repousa sobre ela. Ela tem o modo do “aparecer”. Mas aparecer significa aparecer em algo, e, assim, alcançar o aparecimento, por si mesmo, naquilo que recebe sua aparência. A beleza tem o modo de ser da luz. VERDADE E MÉTODO TERCEIRA PARTE 3.
Nesse ponto, parece-me que a hermenêutica tradicional não superou ainda, totalmente, as consequências do psicologismo. Na leitura e compreensão de um escrito está em questão um processo, pelo qual aquilo que está fixado no texto deve elevar-se a uma nova expressão e deve concretizar-se de novo. Ora, a essência do falar concreto consiste em que aquilo que se tem em mente sempre ultrapassa o que é dito. Por isso, creio que se trata de um mal-entendido ontológico imperceptível hipostasiar o que quem fala tem em mente como o padrão de medida da compreensão. Como se fosse possível primeiro criá-lo num tipo de comportamento reprodutivo para depois aplicá-lo como padrão de medida às palavras. Como vimos, a leitura não é uma reprodução que permite comparação com o original. É o mesmo que ocorre com a doutrina epistemológica, superada pala investigação fenomenológica, segundo a qual temos na consciência uma imagem da suposta realidade, a que se chama de “representação”. Toda leitura ultrapassa os vestígios enrijecidos da palavra em direção ao sentido do que é propriamente dito; não se trata, portanto, de um retroceder ao processo originário de produção, que devesse ser compreendido como uma realização da alma ou como um fenômeno expressivo. E além disso o que conhece do que se tem em mente são apenas os vestígios da palavra. Isso inclui que quando alguém compreende o que um outro diz, este algo não é apenas o que o outro tinha em mente, mas algo partilhado, comum. Quem traz à fala um texto pela leitura, mesmo que seja sem qualquer articulação sonora, estaráconstruindo seu sentido, na direção semântica que tem o texto, dentro do universo de sentido a que ele próprio está aberto. É neste ponto que, em última instância, se justifica o ponto de vista romântico que segui, segundo o qual todo compreender já é interpretar. Schleiermacher afirmou-o de modo expresso: “A interpretação distingue-se da compreensão apenas como o falar em voz alta distingue-se do falar interior”. VERDADE E MÉTODO II Introdução 1.
Para concluir vamos recordar uma ideia que já nos havia legado Platão: Platão chama as ciências, que consistem nos logoi, nos discursos, de alimento da alma, da mesma forma que a comida e a bebida são os alimentos do corpo. “Por isso, na sua aquisição, deveríamos ter o mesmo cuidado para não sermos aliciados a comprar mercadorias ruins. Há muito mais perigo na aquisição de saber do que na aquisição de alimentos. Isto porque os alimentos e a bebida que alguém compra de um comerciante podem ser depositados (43) numa vasilha em casa, antes de serem ingeridos, e ali permanecem até que venha um especialista capaz de aconselhar sobre o que se deve comer ou beber e o que não, sobre a quantidade e o tempo de ingeri-los. Nessa aquisição o perigo não é tão grande. O saber, porém, não pode ser separado e guardado numa vasilha específica, sendo inevitável que, tendo pago o seu preço, ele seja imediatamente digerido pela própria alma, e assim sejamos instruídos, seja para o mal, seja para o bem”. VERDADE E MÉTODO II PRELIMINARES 3.
Frente a essa situação, cabe-nos perguntar se o lema a natureza da coisa não é um grito de guerra questionável e se frente a todas essas tentativas, a metafísica clássica não demonstra uma verdadeira superioridade e uma tarefa que ainda a nós se propõe. No meu entender, a superioridade da metafísica clássica consiste em se posicionar, de princípio, para além do estabelecido entre dualismo de subjetividade e vontade, de um lado, e objeto e ser-em-si, de outro, à medida que pensa a correspondência prévia de um e de outro. De certo, o patamar onde repousa o conceito de verdade da metafísica clássica, enquanto adequação do conhecimento à coisa, consiste numa correspondência teológica. Pois é no caráter de criatura inerente a ambos que alma e coisa (Sache) se reúnem. Assim como a alma foi criada para coincidir com o ente, também a coisa (Sache) foi criada para ser verdadeira, isto é, para ser cognoscível. O Espírito infinito do Criador é, pois, o lugar em que se resolve um mistério, que para o espírito finito é insolúvel. A essência e a realidade da própria criação consiste em ser esta conjunção de alma e coisa (Sache). VERDADE E MÉTODO II PRELIMINARES 6.
Ora, sem dúvida, a filosofia não pode mais utilizar uma tal fundamentação teológica e não haverá de querer repetir suas figuras seculares dela, apresentadas pelo idealismo especulativo com suas mediações dialéticas de finitude e infinitude. Mas tampouco pode fechar-se à verdade dessa correspondência. Nesse sentido, a tarefa da metafísica continua, por certo, como uma tarefa que não pode ser resolvida como metafísica, isto é, recorrendo a um intelecto infinito. Pode-se, então, perguntar: Existirão possibilidades finitas para fazer jus a esta correspondência? Existirá uma fundamentação dessa correspondência que, sem elevar-se a uma infinitude de um Espírito divino, possa explicitar a correspondência infinita entre alma e ser? Creio que há uma tal fundamentação. Há um caminho que testemunha essa correspondência, ao qual o filosofar é remetido de modo cada vez mais claro. É o caminho da linguagem. VERDADE E MÉTODO II PRELIMINARES 6.
Não me parece um acaso que o fenômeno da linguagem nas últimas décadas tenha ocupado o centro do questionamento filosófico. Talvez possamos dizer que, sob este signo, começa-se a transpor o maior abismo filosófico hoje existente entre os povos, qual seja, a oposição entre o extremo do nominalismo anglo-saxão, por um lado, e a tradição metafísica do continente, por outro. Em todo caso, a análise da linguagem, que começa refletindo sobre a problemática das lógicas das linguagens artísticas na Inglaterra e na América, aproxima-se surpreendentemente da reflexão e investigação da escola fánomenológica de E. Husserl. Assim como o reconhecimento da finitude e historicidade da pre-sença humana, desenvolvidas por M. Heidegger, transformou essencialmente a tarefa da metafísica, da mesma forma, o reconhecimento da significação autônoma da linguagem falada acabou por dissolver o afeto (72) antimetafísico do positivismo lógico (Wittgenstein). Da informação ao mito e à saga, que é igualmente uma “mostração” (Zeige) (Martin Heidegger), a linguagem perfaz o tema comum de todos. Quando se quer pensá-la verdadeiramente, parece-me que devemos nos perguntar se no fundo a linguagem não precisa significar “linguagem das coisas”. Se não é na linguagem das coisas que se revela a correspondência originária entre alma e ser, de tal modo que até uma consciência finita pode tomar conhecimento dela. VERDADE E MÉTODO II PRELIMINARES 6.
Ao excluir toda e qualquer fundação e gênesis do conceito de syntheke, Aristóteles indicou a direção daquela correspondência entre alma e mundo, que aflora no fenômeno da linguagem, independentemente da extrapolação forçada de um espírito infinito, pela qual a metafísica deu uma fundamentação teológica a essa correspondência. O estar de acordo sobre as coisas, que se dá como tal na linguagem, não significa uma prioridade das coisas nem uma prioridade do espírito humano, que se utilizaria do entendimento como um meio de linguagem. Antes, o absolutamente prioritário é a correspondência como tal, que encontra sua concreção na experiência de mundo que se dá na linguagem. VERDADE E MÉTODO II PRELIMINARES 6.
Isso se deixa esclarecer de uma maneira muito bela no fenômeno do ritmo, que é em si mesmo um momento estrutural de todo o fenômeno de linguagem. Como já havia destacado Richard Hönigswald, em sua análise da psicologia do pensamento, a essência do ritmo encontra-se num âmbito intermédio entre ser e alma. A sequência marcada pelo ritmo não representa necessariamente o ritmo próprio dos fenômenos. Mesmo numa sequência uniforme, a ritmação só pode ser ouvida interiormente, de tal forma que a sequência aparece como algo articulado ritmicamente. Ou melhor, quando se pretende que a sensibilidade perceba uma sequência uniforme, não apenas pode como deve acabar surgindo sempre uma tal ritmação. O que significa aqui “deve”? Será contra a natureza das coisas? Certamente não. Então, o que poderá significar ainda “ritmo próprio dos fenômenos”? Eles não são exatamente o que são, apenas porque são percebidos de forma rítmica ou (75) ritmada? Isso significa que a correspondência que reina entre ambos é ainda mais originária do que aquela sequência acústica, de um lado, e aquela percepção ritmizante, de outro. VERDADE E MÉTODO II PRELIMINARES 6.
Disso sabem os poetas que procuram colocar-se à altura do modo de proceder do espírito poético que neles vige, como fez, por exemplo, Hölderlin. Afastando da experiência poética originária tanto o dado prévio da linguagem quanto o dado prévio do mundo, isto é, a ordem das coisas, e descrevendo a concepção poética como a confluência de mundo e alma no devir poético da linguagem, os poetas descrevem na verdade uma experiência rítmica. A configuração do poema, onde desemboca o devir de linguagem, garante, em sua finitude, a mútua referência de alma e mundo dada na linguagem. É aqui que o ser da linguagem mostra sua posição central. Partir da subjetividade, como se tornou natural ao pensamento de hoje, é um total equívoco. A linguagem não deve ser pensada como um projeto prévio de mundo, lançado pela subjetividade, nem como o projeto de uma consciência individual ou do espírito de um povo. Esses todos são apenas mitologias, exatamente como o conceito do gênio, que desempenha um papel tão predominante na teoria estética, porque ensina a compreender a construção da imagem como uma produção inconsciente e com isso interpretá-la a partir da analogia com o produzir consciente. A obra de arte não pode contudo ser compreendida a partir da execução planificada de um projeto — mesmo que esse seja sonâmbulo e inconsciente — tampouco como o curso da história universal pode ser pensado pela nossa consciência finita como a execução de um plano. Tanto num caso quanto no outro, sorte e êxito desvirtuam-se em oracula ex eventu, que encobre, na verdade, o evento do qual são a expressão, a palavra ou a ação. VERDADE E MÉTODO II PRELIMINARES 6.
A refutação do ter em mente, que assumimos como o traço comum no discurso da “natureza da coisa (Sache)” e da “linguagem das coisas”, acabou adquirindo um sentido positivo e um conteúdo concreto. Apenas por isso a tensão que havia entre esses dois modos de fala veio realmente à luz. O que parecia ser o mesmo, mostrou-se não sê-lo. É algo bem diferente experimentar um limite a partir da subjetividade do que se tem em mente da prepotência do querer, do que pensar a partir do prévio lançar-se do ente num mundo aberto pela linguagem. Parece-me que é na linguagem das coisas, que quer ser ouvida como vêm à linguagem, e não na natureza da coisa (Sache), que se contrapõe à opinião diferente e força o respeito, que se pode fazer a experiência — adequada à nossa finitude — daquela correspondência ensinada antigamente pela metafísica como a adequação originária de todo criado entre si e, especialmente, como a adequação da alma criada com as coisas criadas. VERDADE E MÉTODO II PRELIMINARES 6.
O problema da liberdade parece ser um dos que preenchem perfeitamente a condição prévia de ser um problema filosófico idêntico. A condição prévia de ser um problema filosófico consiste na verdade em ser insolúvel. O problema deve ser de tal modo abrangente e fundamental que volta a se instaurar sempre de novo, uma vez que parece não haver nenhuma “solução” capaz de resolvê-lo totalmente. Já Aristóteles descreveu a essência do problema dialético, afirmando que são as questões grandes e insolúveis que se devem lançar ao adversário numa disputa verbal. A pergunta, porém, é: haverá “o” problema da liberdade? A questão da liberdade será realmente sempre a mesma em todos os tempos? O que dizer daquele mito profundo da República de Platão, segundo o qual a própria alma escolhe, num estado anterior ao nascimento, a sorte para sua vida, de tal modo que se queixa das consequências de sua escolha recebe como resposta: “aitia helemenou, Tens culpa na tua escolha”? Terá o mesmo sentido que o conceito de liberdade que dominou, por exemplo, a filosofia moral estóica, que afirmava com certa resolução que o único caminho para tornar-se independente e, com isso, livre seria não prender seu coração a nada, e não apegar-se a si próprio? Será este o mesmo problema do mito platônico? Será o mesmo problema quando a teologia cristã procura tecer e resolver seu grande enigma entre a liberdade do homem e a providência divina? E será o mesmo quando, na era da ciência da natureza, formulamos a pergunta: Como se deve conceber a possibilidade de liberdade, diante da determinação infalível do acontecimento natural diante do fato de que toda ciência da natureza deve partir do pressuposto de que na natureza não acontecem milagres? O problema do determinismo e do indeterminismo da vontade, formulado a partir dessa situação, será ainda o mesmo problema? VERDADE E MÉTODO II PRELIMINARES 7.
A hermenêutica tem, em todo caso, uma temática própria. Apesar de sua generalidade, não pode ser integrada legitimamente na lógica. Em certo sentido, partilha com a lógica a universalidade. Em outro, chega, porém, a superá-la. É claro que todo conjunto enunciativo pode ser considerado do ponto de vista de sua estrutura lógica: As regras da gramática, da sintaxe e finalmente as leis da dedução lógica podem sempre ser empregadas aos contextos do discurso e do pensamento. Raras são, contudo, as vezes em que um conjunto discursivo realmente vivo satisfaz as exigências estritas da lógica de enunciado. O discurso e o diálogo não são “enunciados” no sentido de um juízo lógico, cuja univocidade e significado pode ser comprovado e verificado por todos, mas têm seu lado ocasional. Eles se dão num processo comunicativo, no qual o monólogo do discurso científico e o processo de demonstração representam apenas um caso especial. O modo de realizar-se da linguagem é o diálogo, mesmo que seja o diálogo da alma consigo mesma, que é como Platão caracteriza o pensamento. Nesse sentido, enquanto teoria da compreensão e do entendimento, a hermenêutica congrega a máxima generalidade. Compreende todo enunciado não apenas em sua validade lógica, mas como resposta a uma pergunta. Isto significa, porém, que aquele que compreende, precisa compreender a pergunta, e uma vez que a compreensão precisa alcançar seu sentido a partir de sua história motivacional, precisa ir necessariamente além do conteúdo do enunciado concebido pela lógica. No fundo, isto já estava presente na dialética do espírito de Hegel, tendo sido retomado por B. Croce, Collingwood e outros. Vale a pena ler, na Autobiography de Collingwood, o capítulo sobre The logic of question and answer (A lógica de pergunta e resposta). Mas mesmo uma análise puramente fenomenológica não pode furtar-se ao fato de que não existem percepções nem juízos isolados. Foi o que demonstrou fenomenologicamente H. Lipp, em sua Hermeneutische Logik (Lógica hermenêutica), à base da teoria husserliana das intencionalidades anônimas, desenvolvendo uma análise na linha do conceito existencial de mundo, de Heidegger. Na Inglaterra, Austin desenvolveu, em sentido análogo, a virada do Wittgenstein tardio. VERDADE E MÉTODO II PRELIMINARES 8.
Já demonstrei em outro lugar que a forma em que se realiza todo diálogo pode ser descrita a partir do conceito de jogo. Para isso é necessário livrar-se de um hábito de pensar que define a essência do jogo a partir da consciência do jogador. Essa definição do jogador popularizada por Schiller apreende a verdadeira estrutura do jogo apenas em sua aparência subjetiva. Jogo é, na verdade, um processo dinâmico (cinético) que abarca os jogadores ou o jogador. Quando falamos de jogo do navio ou de jogo cênico ou do livre jogo das articulações, não se trata de uma mera metáfora. Pelo contrário, a fascinação do jogo para a consciência que joga repousa justamente nessa saída extática de si próprio para um nexo dinâmico que desenvolve sua própria dinâmica. Dá-se jogo quando o jogador individual leva a sério o jogo, isto é, quando entra seriamente no jogo, sem considerar-se apenas um jogador. As pessoas que não conseguem isso, dizemos que não conseguem jogar. Penso que a estrutura fundamental do jogo de estar impregnado de seu espírito — espírito de leveza, de liberdade, do prazer do logro — e nisso impregnar o jogador é aparentada com a estrutura do diálogo, onde se dá a linguagem real. A vontade de o indivíduo reservar-se ou abrir-se já não é determinante para o modo de entrarmos em diálogo mútuo e de sermos levados por ele. O determinante é a lei da coisa que está em questão (Sache) no diálogo, que provoca a fala e a réplica e acaba conjugando a ambas. Assim, quando se dá o diálogo sentimo-nos plenos. O jogo da fala e da réplica prolonga-se para um diálogo interior da alma consigo mesma, como Platão já havia tão bem qualificado o pensamento. VERDADE E MÉTODO II COMPLEMENTOS 11.
Não precisamos, pois, demonstrar a tese de que todo entendimento é um problema de linguagem e de que o sucesso ou fracasso no entendimento só se obtém no elemento da condição de linguagem. Todos os fenômenos do entendimento, da compreensão e da incompreensão, que formam o objeto da assim chamada hermenêutica, representam um fenômeno de linguagem. Mas a tese que pretendo discutir dá um passo ainda mais radical. A tese afirma que não apenas o processo do entendimento entre os seres humanos, mas também o próprio processo da compreensão representa um acontecimento de linguagem mesmo quando se volta para algum aspecto fora do âmbito da linguagem ou escuta a voz apagada da letra escrita. Trata-se de um acontecimento de linguagem semelhante àquele diálogo interno da alma consigo mesma, que para Platão caracterizava a essência do pensamento. VERDADE E MÉTODO II COMPLEMENTOS 14.
Ninguém nega que a linguagem exerce uma influência sobre nosso pensamento. Pensamos com e por palavras. Pensar significa sempre pensar alguma coisa. E pensar alguma coisa significa dizer algo para si. Nesse sentido, parece-me que Platão definiu com muita precisão a essência do pensamento, identificando-o com o diálogo da alma consigo mesma, um diálogo que é um constante superar — se, um retomar a si mesmo mediante dúvidas e objeções a suas próprias opiniões e juízos. E se há algo que caracteriza bem nosso pensar humano, é justamente esse diálogo infinito com nós mesmos, que não leva a nada definitivo. É isso que nos distingue daquele ideal de um espírito infinito, para o qual tudo que é e tudo que é verdadeiro se encontraria diante dele no abrir-se de um único instante vital. Ademais, a nossa experiência de linguagem, a nossa inserção crescente no diálogo interno conosco mesmos, esse que representa igualmente uma antecipação do diálogo com os outros e um envolvimento dos outros no diálogo conosco, essa experiência é onde o mundo se nos abre e ordena em todos os âmbitos de experiência. Isso significa, porém, que não temos outro caminho para a ordenação e orientação a não ser aquele que nos leva dos dados apresentados na experiência para pontos de orientação conhecidos pelo nome de conceito ou o universal, para o qual o que se dá a cada vez passa a ser considerado um caso particular seu. VERDADE E MÉTODO II COMPLEMENTOS 15.
O que se dá na linguagem dá-se também no todo de nossa orientação vital: o fato de estarmos familiarizados com um mundo convencional pré-formado. A questão é saber se em nossa própria autocompreensão chegamos tão longe como acreditamos chegar às vezes nesses casos raros do falar, mencionados acima, em que alguém diz realmente o que quer dizer. Será que isso haveria de significar que alcançamos o ponto de compreender o que realmente é? Ambos, tanto a compreensão total quanto o dizer adequado, são casos extremos de nossa orientação no mundo, do infinito diálogo interno da alma consigo mesma. E, no entanto, creio que justamente porque esse diálogo é infinito, porque essa orientação objetiva que se nos oferece em esquemas pré-formados do discurso entra no processo espontâneo de nosso entendimento com os outros e conosco mesmos, é que se abre para nós a infinitude do que compreendemos, do que se deixa apropriar espiritualmente. O diálogo interno da alma consigo mesma não encontra limites. Esta é a tese que contraponho à suspeita de ideologia levantada contra a linguagem. VERDADE E MÉTODO II COMPLEMENTOS 15.
A segunda objeção que se pode fazer aqui foi desenvolvida sobretudo por Habermas contra minhas próprias teorias. Trata-se da questão de saber se não se está subestimando os modos da experiência que se dão à margem da linguagem quando se afirma, como faço eu, que é pela linguagem que articulamos a experiência de mundo como uma experiência comum. Na verdade, a multiplicidade de línguas não é uma objeção. Essa relatividade não é do tipo que nos redime de uma proscrição ou sina, como sabe todo aquele que consegue pensar um pouco em outros idiomas. Mas não haverá outras experiências da realidade que não se estruturam como linguagem? Temos por exemplo a experiência da dominação e a experiência do trabalho. Esses são os dois argumentos desenvolvidos por Habermas contra a universalidade do postulado hermenêutico, com esses argumentos ele interpreta manifestamente o entendimento operado na linguagem como uma espécie de círculo fechado de um movimento imanente de sentido a que ele chama de herança cultural dos povos. Ora, a herança cultural dos povos é antes de tudo uma tradição de formas e artes de domínio, de ideais de liberdade, teleologías de ordem etc. Quem poderá negar que nossas possibilidades humanas mais próprias não consistem simplesmente no dizer? Deveríamos admitir que toda experiência do mundo estruturada na linguagem experimenta o mundo e não a linguagem. O que articulamos no debate acerca da linguagem não constitui um encontro com a realidade? O encontro com o domínio e a falta de liberdade leva à formação de nossas ideias políticas. O que experimentamos na assimilação dos processos de trabalho como um caminho de nossa busca humana é o mundo do trabalho, mundo das capacidades. Seria uma falsa abstração pensar que no domínio e no trabalho não encontramos sobretudo experiências concretas de nossa existência humana, nossas valorações, nosso diálogo conosco mesmos encontram sua realização concreta e sua função crítica. O fato de nos movermos no mundo de linguagem, de estarmos inseridos em nosso mundo através da experiência pré-formada pela linguagem não restringe nossa possibilidade crítica. Ao contrário. (204) Abre-se para nós a possibilidade de ultrapassar nossas convenções e todas as nossas experiências pré-esquematizadas, dialogando com outras pessoas, pessoas que pensam diferente, aceitando um novo exame crítico e novas experiências. No fundo, em nosso mundo a mesma questão está sempre presente: a conformação da linguagem em convenções, em normas sociais, atrás das quais escondem-se sempre também interesses econômicos e de poder. Mas esse é justamente o mundo de nossa experiência humana, onde dependemos de nosso julgamento, isto é, da possibilidade de nos colocar-nos criticamente frente a todas as convenções. Na verdade, devemos essa capacidade de julgamento ao fato de nossa razão ser virtualmente linguagem. Não é a linguagem que impede o exercício de nossa razão. É verdade que nossa experiência de mundo não se produz apenas no aprendizado da fala e nos exercícios de linguagem. Existem experiências de mundo que são anteriores à linguagem, como sustenta Habermas com base nas investigações de Piaget. Existe a linguagem dos gestos, das fisionomias, dos acenos, que nos unem, o riso e o choro, cuja hermenêutica foi ressaltada por H. Plessner. Existe o mundo construído pela ciência, no qual as linguagens exatas e específicas dos símbolos matemáticos acabam fornecendo uma base firme para a formação de teorias, capacitando-nos a fazer e a manipular, numa espécie de auto-apresentação do homo faber, da engenhosidade técnica do homem. Mas todas essas formas de auto-apresentação humana devem ser constantemente integradas naquele diálogo interno da alma consigo mesma. VERDADE E MÉTODO II COMPLEMENTOS 15.
Reconheço que esses fenômenos indicam que por trás de todas as relatividades de linguagens e convenções existe algo comum, que já não é linguagem, mas propício a ser verbalizado pela linguagem, para o que a conhecida palavra “razão” não é tão inadequada. Mesmo assim, existe algo ali que caracteriza a linguagem como tal. Trata-se do fato de a linguagem como tal poder destacar-se e distinguir-se de modo característico de todos os outros processos comunicativos. Chamamos essa distinção de escrever e escrita. O que significa que algo tão intuitivo e vivo, tão inalienável como um discurso persuasivo entre duas pessoas, ou o discurso da alma consigo mesma, possa adotar a forma rígida de traços escritos, passíveis de serem decifrados e lidos em novas formulações de sentido? O que isso significa sobretudo quando consideramos cada vez mais um mundo literário, um mundo regido pelo escrever e pela escrita? Em que consiste a universalidade dessa escrita e o que acontece ali? Independentemente de todas as distinções da escrita, diria que, para ser compreendido, cada escrito exige uma espécie de ouvido interior. Onde se trata de poesia e matérias similares, isso é evidente. Também na filosofia costumo dizer aos meus estudantes: Vocês devem afinar o ouvido, devem saber que, quando pronunciam uma palavra, não empregaram uma ferramenta qualquer, que se pode colocar de lado se não servir a vocês. Vocês, na verdade, tomaram uma direção de pensamento que vem de muito longe e os leva para muito além de vocês mesmos. Realizamos sempre uma espécie de reciclagem. Num sentido bem amplo, gostaria de chamar a isso de “tradução”. Ler já é traduzir e traduzir é traduzir mais uma vez. Pensemos um instante sobre o que significa o fato de traduzirmos, isto é, de trazer algo morto para uma nova realidade pela leitura compreensiva ou quiçá de trazer algo que fora expresso numa língua estranha, fixado por escrito como texto, para ganhar nova realidade pela compreensão numa outra língua, que é a nossa. VERDADE E MÉTODO II COMPLEMENTOS 15.
Seria útil orientar-nos aqui por um outro fenômeno análogo. A incapacidade para o diálogo não é certamente o único fenômeno comunicativo em desaparecimento de que temos conhecimento. De há muito nos damos conta do desaparecimento da carta e da correspondência. Os grandes escritores epistolares do séc. XVII e XVIII são coisa do passado. A época da diligência, quando se respondia ao outro com uma missiva pelo correio — literalmente falando, a missiva da diligência — , prestava-se mais a essa forma de comunicação de que a época técnica da quase simultaneidade de pergunta e resposta, caracterizada pela conversa telefônica. Quem conhece um pouco a América sabe que ali escrevem-se muito menos cartas que no Velho Mundo. Na realidade, o que se escreve epistolarmente também no Velho Mundo é tão pouco e reduz-se de tal modo a coisas que já não necessitam nem exigem força de criação literária, sensibilidade da alma e fantasia produtiva, que o telégrafo presta-se muito melhor que a pena. A carta tornou-se um meio de informação retrógrado. VERDADE E MÉTODO II COMPLEMENTOS 16.
A primeira história da retórica foi escrita por Aristóteles. Restaram-nos apenas fragmentos. Aristóteles fez suas formulações, porém, seguindo um esquema projetado primeiramente por Platão. Por trás de todas as pseudo-reivindicações que faziam os retóricos de seu tempo, Platão descobriu uma tarefa autêntica, que apenas o filósofo, o dialético está em condições de resolver, a saber, dominar de tal modo o discurso que deve produzir evidências efetivas que os argumentos adequados a cada caso devem se aproximar daqueles que a alma é especificamente capaz de receber. Isso representa uma tarefa teoricamente esclarecedora, que implica, no entanto, dois pressupostos platônicos: o primeiro que só poderá encontrar (235) com segurança o pseudos “verossímil” do argumento retórico aquele que conhece a verdade, isto é, as ideias; e o segundo é que precisa conhecer na mesma proporção também as almas que deve influenciar. A retórica aristotélica é primeiramente uma elaboração do último tema. Nela realiza-se a teoria da adequação do discurso à alma, formulada por Platão no Fedro, na forma de uma fundamentação antropológica da arte do discurso. VERDADE E MÉTODO II OUTROS 18.
Nesse sentido, tenho a impressão de que a palavra grega syne-sis, empregada para designar o compreender e a compreensão, e que costuma aparece no contexto neutro do fenômeno do aprendizado e numa proximidade intercambiável com a palavra grega que designa o aprender (mathesis), no contexto da ética aristotélica representa uma espécie de virtude espiritual. Trata-se sem dúvida de uma definição mais estrita da palavra, também usada por (315) Aristóteles em sentido neutro, que corresponde ao pertinente estreitamento terminológico de tekhne e phronesis no mesmo contexto. Mas essa palavra possui muitos significados. A palavra “compreensão” aparece ali com o mesmo significado que teve o emprego da palavra “hermenêutica” — mencionado por mim inicialmente — durante o século XVII, significando o conhecimento e a compreensão da alma. Nesse caso, “compreensão” significa uma modificação da racionalidade prática, o julgamento intuitivo das considerações práticas de um outro. Trata-se de algo mais que uma simples compreensão de algo dito. Implica uma espécie de elemento comum que dá sentido à “reunião em conselho”, ao dar e receber um conselho. São apenas os amigos e os que têm intenção amistosa que podem aconselhar. Isso aponta, de fato, para o centro das questões que se ligam com a ideia de filosofia prática. São as implicações morais, na realidade, que se ligam a esse contraponto da racionalidade prática (phronesis). Em sua ética, Aristóteles analisa propriamente as “virtudes”, conceitos normativos que estão sempre sob a pressuposição de validade normativa. A virtude da razão prática não deve ser concebida como uma faculdade neutra que busca encontrar fins justos para meios práticos. Ela está, antes, inseparavelmente ligada ao que Aristóteles chama de ethos. Ethos é para ele a arche, o “fato prévio” que serve como ponto de partida de todo esclarecimento filosófico-prático. É verdade que seu interesse analítico distingue as virtudes éticas e as virtudes dianoéticas, fazendo-as remontar ao que ele chama de duas “partes” da alma racional. Mas o próprio Aristóteles se pergunta o que significam essas duas “partes” da alma e se não devem ser concebidas, antes, como dois aspectos diversos do mesmo fenômeno, como o convexo e o côncavo. Por fim, essas divisões fundamentais em sua análise do que é o bem prático para o ser humano devem ser interpretadas partindo-se do postulado metodológico próprio de sua filosofia prática. Essa filosofia não quer substituir as decisões práticas racionais que deve tomar cada indivíduo em cada situação. Todas as suas descrições tipificantes são entendidas de súbito na direção dessa concreção. Mesmo a célebre análise da estrutura do ponto central que faz a mediação entre os extremos e que parece corresponder às virtudes éticas aristotélicas não passa de uma determinação aberta a muitas significações. Não só que essa significação receba seu conteúdo relativo dos extremos, cujo perfil possui nas convicções e reações morais das pessoas uma determinação muito maior do que o prestigiado ponto intermediário; o que recebe assim uma (316) descrição esquemática é o ethos do spoudaios. O hos dei e o hos ho orthos logos não são subterfúgios frente a uma exigência conceitual mais rigorosa. São as indicações da situação concreta onde a arete alcança sua determinação. A tarefa daquele que possui a phronesis é fornecer essa situação concreta. VERDADE E MÉTODO II OUTROS 22.
Minha tese é que estão aí unicamente no ato de retorno a eles. Mas isso significa que são texto no sentido original e próprio do termo, palavras que só estão “aí” quando se retorna a elas, realizam o verdadeiro sentido de textos a partir de si mesmas: elas falam. Literários são aqueles textos que devem ser lidos em voz alta, mesmo que unicamente para o ouvido interior, e quando recitados não são apenas ouvidos mas devem ser acompanhados pela voz interior. Ganham sua verdadeira existência pela possibilidade de ser recitados de cor, par coeur. Vivem na memória do rap-sodo, do cantor de coro ou do cantor lírico. Como se estivessem escritos na alma, estão a caminho da escritura e por isso não deve surpreender que nas culturas de leitura tais textos egrégios se chamem “literatura”. VERDADE E MÉTODO II OUTROS 24.
A guinada hermenêutica rumo à conversação, tema que eu próprio desenvolvi, vai na mesma direção e não se limita a ultrapassar a dialética do idealismo alemão na direção da dialética platônica, mas aponta o pressuposto da dialética que se esconde por detrás dessa versão socrático-dialogal: a anamnesis buscada e suscitada nos logoi. Essa reminiscência tomada do mito, mas pensada com plena racionalidade, não é só reminiscência da alma individual, mas é também sempre a do “espírito capaz de unir-nos”, a nós que “somos uma conversação”. Mas estar-em-conversação significa estar-além-de-si-mesmo, pensar com o outro e voltar sobre si mesmo como outro. Quando Heidegger deixa de pensar o conceito metafísico de essência como presença do presente e lê a palavra Wesen (essência) como verbo, como palavra temporal, “temporalmente”, passa a compreender o Wesen (essência) como Anwesen (estar presente, vigência), num sentido que parece corresponder à expressão comum Verwesen (“reger”, vigir, administrar). Mas isso significa que Heidegger, como faz em seu artigo sobre Anaximandro, submete a Weile (permanência) à experiência grega original do tempo. Desse modo, ao perguntar pelo ser, está perguntando pelas raízes da metafísica e seu horizonte. O próprio Heidegger lembra que a frase citada por Sartre “a essência da pre-sença é sua existência” é mal-entendida toda vez que se esquece que a palavra Wesen (essência) vem escrita entre aspas. Não se trata do conceito de Essenz (essência), que enquanto Wesen deve preceder a existência, o fato. Tampouco se trata da inversão sartreana dessa relação, como se a existência precedesse a Essenz (essência). A meu ver, porém, quando pergunta pelo sentido do ser, Heidegger tampouco pensa “sentido” na linha da metafísica e de seu conceito de essência. Pensa-o, antes, como sentido interrogativo que não espera uma determinada resposta, mas que sugere uma direção do perguntar. VERDADE E MÉTODO II OUTROS 25.
Eu disse certa vez que “o sentido é sentido de direção”. E muitas vezes Heidegger utilizou-se de um arcaísmo ortográfico escrevendo a palavra Sein (ser) como Seyn para sublinhar seu caráter verbal. De modo parecido, deve-se ver minha tentativa de eliminar a herança da ontologia da substância, partindo da conversação e da linguagem comum, linguagem buscada e formada na conversação. Nessa linguagem o elemento determinante é a lógica de (370) pergunta e resposta. Ela abre uma dimensão de entendimento que transcende as expressões fixadas pela linguagem e, portanto, a síntese global no sentido da autocompreensão monológica da dialética. De certo, a dialética idealista não nega sua origem da estrutura fundamental especulativa da linguagem, como demonstrei na terceira parte de Verdade e método I. Mas, quando subordina a dialética a um conceito de ciência e de método, Hegel encobre na verdade sua procedência, sua origem na linguagem. A hermenêutica filosófica tem em mente assim a referência à unidade-dual especulativa que se desenrola entre o dito e o não dito, que na verdade precede a tensão dialética da contradição e sua superação num novo enunciado. Creio que a tentativa de converter em supersujeito o papel que eu reconheci na tradição, a saber, formular perguntas e projetar respostas, buscando reduzir, com isso, a experiência hermenêutica a uma parole vide, como fazem Manfred Frank e Forget, não passa de um erro grosseiro. Isso não encontra base alguma em Verdade e método. Em Verdade e método, tradição e diálogo não representam nenhum sujeito coletivo. Trata-se simplesmente de um coletivo para designar cada vez um texto concreto (no sentido mais amplo de texto, incluindo uma obra de pintura, um edifício e até mesmo um acontecimento natural). O diálogo socrático de cunho platônico é sem dúvida um gênero muito especial de conversação, conduzida por um interlocutor e seguida pelo outro, queira ou não. Mas ele serve de modelo para qualquer diálogo, porque nele não se refutam as palavras mas a alma do outro. O diálogo socrático não é nenhum jogo esotérico de disfarces para ocultar um saber mais fundamental. É a verdadeira realização da anamnesis, da recordação pensante, a única recordação possível para a alma decaída na finitude do corpóreo e que se realiza como conversação. O sentido da unidade especulativa que se realiza na virtualidade da palavra é justamente o fato de essa não ser uma palavra única nem um enunciado construído, mas ultrapassar tudo que é passível de ser enunciado. VERDADE E MÉTODO II OUTROS 25.
O que eu ensinava era sobretudo a praxis hermenêutica. Essa é antes de mais nada uma praxis, a arte de compreender e de tornar compreensível. É a alma de todo ensino que queira ensinar (494) filosofia. É preciso exercitar sobretudo o ouvido, a sensibilidade para as predeterminações presentes nos conceitos, as concepções prévias e as significações prévias. Por isso, dediquei uma boa parte de meu trabalho à história do conceito. Com a colaboração da “Deutsche Forschungsgemeinschaft”, organizei uma série de colóquios sobre história dos conceitos, com amplos relatórios, colóquios que promoveram depois muitas outras atividades similares. O rigor no uso dos conceitos requer um conhecimento de sua história para não sucumbir ao capricho da definição ou à ilusão de poder estabelecer uma linguagem filosófica vinculante. O conhecimento da história dos conceitos converte-se assim em um dever crítico. Busquei, no mais, secundar essas tarefas, fundando uma revista dedicada inteiramente à crítica, a Philosophische Rundschau, juntamente com Helmut Kuhn, cujo talento crítico eu havia admirado de imediato, antes de 1933, nos últimos anos dos antigos estudos sobre Kant. Essa revista permaneceu durante vinte anos sob a firme direção da Senhora Kate Gadamer-Lekebusch, até ser recentemente confiada a pessoas mais jovens. VERDADE E MÉTODO II ANEXOS 30.
Deve-se aprender, antes, a ler Platão em sentido mimético. O século XX apresenta alguns exemplos nessa linha. Sobretudo o trabalho de Paul Friedländer, mas também outras numerosas obras, mesmo sem grande profundidade, inspiradas no círculo do poeta Stefan George (Friedmann, Singer, Hildebrandt) e os trabalhos de Leo Strauss e seus amigos e discípulos. O tema está ainda longe de ser esgotado. Consiste em referir com precisão os enunciados conceituais inerentes ao diálogo à realidade dialogai donde derivam. É ali que radica a “harmonia dórica” de ação e discurso, de ergon e logos, da qual se fala em Platão, e não só com palavras. Essa harmonia é a verdadeira lei vital dos diálogos socráticos. Esses são literalmente “discursos orientadores”. É só a partir dessa harmonia que se descobre realmente a intenção da arte da contradição em Sócrates, que parece muitas vezes um ardil sofístico e em outras passagens cria uma verdadeira confusão. Se pudéssemos derramar a sabedoria humana como se faz com a água, passando-a de um recipiente ao outro mediante um fio de lã… (Symp. 175 d). Mas a sabedoria humana não é dessa natureza. É o saber do não saber. Nela, está em questão o convencer o outro, o interlocutor de Sócrates, de que nada sabe, e isso significa que seu saber sobre si mesmo e sobre sua vida se torna mera presunção. Ou, para dizê-lo com outra frase audaciosa de Platão da Sétima Carta: não se refuta apenas sua tese, mas sua alma. Isso pode ser aplicado tanto às crianças que acreditam ser amigos, desconhecendo o que seja a amizade (L/5/5), quanto aos generais famosos que crêem encarnar em si a virtude do soldado (Laques) ou aos políticos ambiciosos que (502) presumem possuir um saber superior a qualquer outro (Cármides)… Pode ser igualmente aplicado a todos aqueles que seguem os mestres profissionais da sabedoria e, por último, ao simples cidadão que deve crer e fazer crer que é “justo” como vendedor, comerciante, cambista, artesão etc. Não se trata evidentemente de um saber técnico, mas de outro tipo de saber, além de todas as pretensões e competências especiais de uma superioridade no saber, além de todas as tekhnai e epistemai conhecidas. Esse outro saber significa a “guinada rumo à ideia” que está por trás de todas as meras representações dos presumidos sábios. VERDADE E MÉTODO II ANEXOS 30.
Mas também isso não significa que Platão possua, afinal, uma doutrina que possa ser aprendida: a “doutrina das ideias”. E, no diálogo do Parmênides, quando ele critica essa “doutrina”, não significa que ele tenha cometido um erro ali. Significa, antes, que a hipótese das “ideias” não é tanto uma “doutrina”. Designa uma orientação problemática cujas implicações a filosofia, ou dialética platônica, deveria desenvolver e debater. A dialética é a arte de conduzir uma conversa, e isso inclui a arte de conduzir essa conversa consigo mesmo e de perseguir o entendimento consigo mesmo. É a arte de pensar, que equivale à arte de indagar o significado do que se pensa e se diz. Desse modo, segue-se um caminho ou, mais exatamente, se está em um caminho. Isso porque existe algo que se pode chamar de “predisposição natural do homem para a filosofia”. Nosso pensamento não se detém no que alguém tem em mente com isso ou aquilo. O pensar remete para além de si mesmo. A obra dos diálogos platônicos expressa isso de modo característico, a saber, remete ao uno, ao ser, ao “bem” que se expressa na ordem da alma, na ordem da constituição da cidade e da estrutura cósmica. VERDADE E MÉTODO II ANEXOS 30.
Para situar grosso modo meu próprio ensaio de pensamento, posso afirmar com efeito que busque reabilitar o direito da “má infinitude”. Mas, a meu ver, com uma modificação importante. Porque o diálogo inesgotável da alma consigo mesma, característico do pensamento, não consiste em determinar com precisão cada vez maior o mundo de objetos que se deve conhecer, nem no sentido neokantiano da tarefa inesgotável, nem no sentido dialético de ultrapassar qualquer limite mediante o pensamento. Parece-me que (506) nesse contexto Heidegger abriu um novo caminho, ao converter a crítica à tradição metafísica em uma preparação para recolocar a pergunta pelo ser de um novo modo. Com isso, encontrou-se “a caminho para a linguagem”. É o caminho de uma linguagem que não se reduz ao juízo enunciativo nem a sua presumida validez objetiva, mas que aponta sempre para a totalidade do ser. A totalidade não é uma objetividade definível. Nesse sentido, creio que a crítica de Kant às antinomias da razão pura pode ser aplicada também a Hegel. A totalidade não é um objeto, mas o horizonte de mundo que nos rodeia e no qual vivemos. VERDADE E MÉTODO II ANEXOS 30.
A motivação moral contida no conceito do common sense ou do bon sens permaneceu ativa até os nossos dias e diferencia esses conceitos do nosso conceito da “compreensão humana sadia”. Cito, como exemplo, o belo discurso que Henri Bergson fez em 1895, sobre o bon sens, por ocasião da homenagem que lhe foi prestada na Sorbônia. Sua crítica às abstrações da ciência da natureza, bem como às da linguagem e do pensamento jurídico, seu tempestuoso apelo à “energia interior de uma inteligência, que a todo momento se reconquista sobre si mesma, eliminando as ideias feitas para deixar espaço livre para as ideias que se fazem” (88), tudo isso pôde, na França, ser batizado sob a denominação de bon sens. A determinação desse conceito continha, como é natural, uma referência aos sentidos, mas para Bergson é evidente que, diferentemente dos sentidos, o bon sens se refere ao milieu social (meio social). “Enquanto que os outros sentidos nos colocam em relação com coisas, o bom senso preside nossas relações para com pessoas” (85). Ele é uma espécie de gênio para a vida prática, mas menos um dom (Gabe) do que a permanente tarefa (Aufgabe) de “ajustamento sempre novo de situações sempre novas, uma espécie desadaptação dos princípios gerais à realidade, através da qual se realiza a justiça, um “tato da verdade prática”, uma “retidão de juízo, que provém da retitude da alma” (88). O bons sens é, segundo Bergson, enquanto a fonte comum do pensamento e do querer, em sens social, que tanto evita o erro dos dogmáticos científicos, que estão à busca de leis sociais, como o dos utopistas metafísicos. “Falando mais propriamente, talvez não exista mais método, mas antes, um certo modo de fazer.” É verdade que Bergson fala sobre o significado dos estudos clássicos para o aperfeiçoamento desse bon sens — ele vê neles o empenho de romper o “gelo das palavras” e para descobrir, sob elas, a corrente livre do pensamento (91) — mas é claro que ele não coloca a pergunta contrária, ou seja, até que ponto é necessário o bon sens para os próprios estudos clássicos, isto é, não fala de sua função hermenêutica. Sua pergunta não se dirige, de forma alguma, às ciências, mas, sim, ao sentido independente do bon sens para a vida. Nós sublinhamos apenas a evidência, para ele e seus ouvintes, o sentido moral-político desse conceito assume a liderança. VERDADE E MÉTODO PRIMEIRA PARTE 1.
Naturalmente que a demonstração husserliana da idealidade do significado era o resultado de investigações puramente lógicas. O que Dilthey faz disso é algo completamente diferente. Para ele o significado não é um conceito lógico, mas é entendido como expressão da vida. A própria vida, essa temporalidade em constante fluir, está voltada à configuração de unidades de significado duradouras. A própria vida se auto-interpreta. Tem estrutura hermenêutica. É dessa forma que a vida constitui a verdadeira base das ciências do espírito. A hermenêutica não é uma herança romântica no pensamento de Dilthey, mas dá-se consequentemente a partir da fundamentação da filosofia na “vida”. Dilthey pensa que com isso superou fundamentalmente o “intelectualismo” de Hegel. Igualmente não podia satisfazer-lhe o conceito de individualidade romântico-panteísta de origem leibniziana. A fundamentação da filosofia na vida distancia-se também de uma metafísica da individualidade e sabe-se muito distante da monada sem janelas que desenvolve sua própria lei, segundo o aspecto destacado por Leibniz. Para ela a individualidade não é uma ideia originária enraizada no fenômeno. Antes, Dilthey insiste em que toda “vitalidade da alma” se encontra “sob circunstâncias”. Não há uma força originária da individualidade. Esta é o que é na medida em que se impõe. A limitação pelo decurso dos efeitos pertence à essência da individualidade — como é próprio de todos conceitos históricos. Também conceitos como objetivo e significado não fazem referência, em Dilthey, a ideias no sentido do platonismo ou da escolástica. Também eles são conceitos históricos, na medida em que estão referidos a uma limitação pelo decurso dos efeitos: eles têm que ser conceitos de energia. Para isso, Dilthey se reporta a Fichte, que também havia exercido uma influência determinante sobre Ranke. Nesse sentido, sua hermenêutica da vida procura permanecer sobre o solo da concepção histórica do mundo. A filosofia lhe proporciona unicamente as possibilidades conceituais de expressar a verdade daquela. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 1.