Hans-Georg Gadamer — Verdade e Método
Tradução de Flávio Paulo Meurer
A posição-limite da literatura
Há que se colocar isso em prova agora, igualmente, no exemplo de se saber, se o aspecto ontológico que temos elaborado até aqui se estende também ao modo de ser da literatura. Aqui já não parece haver nenhuma representação que pudesse reivindicar uma valência ôntica própria. A leitura é um processo da pura interioridade. Nela parece consumada a liberação com respeito a toda ocasião e contingência, como se encontram na conferência pública ou na encenação. A única condição, sob a qual se encontra a literatura, é a transmissão linguística e seu cumprimento na leitura. Será que a diferenciação estética não encontrará, com o fato de que a consciência estética se afirma a si mesma ante a obra, uma legitimação na autonomia da consciência ontológica. De qualquer livro não somente daquele afamado — pode-se dizer que é para todos e para ninguém.
Mas será que este é um conceito correto da literatura? Ou estará procedendo, afinal de contas, de uma retroprojeção romântica, a partir da consciência de formação alienada? Pois a literatura, como objeto da leitura, é efetivamente um fenômeno tardio, mas de modo algum, o seu caráter escrito, enquanto tal. Este pertence na realidade aos dados originários de todo o grande fazer poético. A pesquisa mais recente abandonou a ideia romântica da originalidade da poesia épica, por exemplo, a de Homero. A escrita é muito mais antiga do que acreditávamos e parece haver pertencido desde sempre aó elemento espiritual da poesia. A poesia, portanto, existe já como “literatura”, lá onde ela ainda não é consumida como material de leitura. Nesse sentido, o predomínio da leitura face à conferência, que observamos em épocas mais tardias (pense-se, por exemplo, na repulsa aristotélica ao teatro), não representa nada realmente novo.
Isso se mostra especialmente, quando a leitura é feita em voz alta. Não obstante, não se pode traçar uma distinção nítida com respeito à leitura feita em silêncio; toda leitura compreensiva é sempre também uma forma de reprodução e interpretação. A entonação, a articulação rítmica e afins pertencem também à leitura mais silenciosa. O significativo e sua compreensão (166) estão tão estreitamente vinculados ao linguístico-corporal, que a compreensão sempre contém um falar interior.
E se isso é assim, já não se pode evitar a consequência, de que a literatura — por exemplo, nessa forma artística, tão peculiarmente sua, que é o romance — tem, na leitura, uma existência tão originária, como a épica, na declamação do rapsodo ou o quadro, na contemplação do observador. Também a leitura do livro permaneceria, segundo isso, uma ocorrência em que o conteúdo lido se torna representação. É verdade que a literatura e sua recepção na leitura mostram um grau máximo de desvinculação e mobilidade. Sinal disso, já é o fato de que não nos é necessário ler um livro de uma só vez, de tal modo que o fato de deixá-lo de lado representa uma tarefa própria da retomada, coisa que não possui correlato no escutar ou no contemplar. Justamente isso permite notar, que a “leitura” corresponde à unidade do texto.
Portanto, a forma de arte que é a literatura deixa-se conceber, somente a partir da ontologia da obra de arte — não a partir das vivências estéticas que vão aparecendo ao longo da leitura. A leitura pertence essencialmente à obra de arte literária, tanto como a declamação ou a execução. Todos estes são graus, do que em geral se costuma chamar de reprodução, mas que, na realidade, representa o modo de ser original de todas as artes transitórias e que se tornou exemplar para a determinação do modo de ser da arte em geral.
A partir disso, porém, há algo mais a dizer. O conceito da literatura não deixa de estar vinculado ao seu receptor. A existência da literatura não é a sobrevivência morta de um ser alienado, que se desse simultaneamente à realidade vivencial de uma época posterior. A literatura é, antes, uma função da preservação e da transmissão espiritual e traz, por isso, a cada situação presente, a história que nele se oculta. Desde a formação dos cânones da literatura antiga, que devemos aos filólogos alexandrinos, toda a sequência da transcrição e preservação dos “clássicos” constitui uma tradição cultural viva, que não se limita a resguardar o que existe, mas também a reconhecê-lo como exemplar e a transmiti-lo como modelo. Em toda mudança de gosto, forma-se essa grandeza operante que chamamos “literatura clássica”, como modelo permanente para todo o posterior, até os tempos da disputa ambígua dos “anciens et modernes”, e mesmo para além deles.
Somente o desenvolvimento da consciência histórica transforma esta unidade viva da literatura universal, transformando-a da imediatez da sua reivindicação normativa de unidade, em questionamento histórico da história da literatura. Trata-se, porém, de um processo não somente inacabado, mas que provavelmente nunca conseguir-se-á concluir. É conhecido que Goethe foi o primeiro que cunhou o conceito da literatura universal na língua alemã, só que para ele o sentido normativo de um tal conceito era ainda plenamente evidente. Mesmo hoje em dia, este conceito não se encontra morto de todo, pois que ainda nos nossos dias, quando nos referimos a uma obra de significado duradouro, dizemos que faz parte da literatura universal.
O que se inclui na literatura universal ocupa seu lugar na consciência de todos. Pertence ao “mundo”. Não obstante, o mundo que uma obra da literatura universal atribui a si própria pode estar apartado, por uma enorme distância, do mundo original, para dentro do qual a obra reporta. Portanto, não se trata mais, certamente, do mesmo “mundo”. Todavia, o sentido normativo, que está contido no conceito da literatura universal, ainda significa que as obras, que a ela pertencem, continuam falando, embora o mundo a que falam seja completamente diferente. Da mesma forma, a existência de uma literatura traduzida comprova que, em tais obras, está sendo representado algo que sempre ainda possui verdade e validez para todos. Assim, isso não quer significar que a literatura universal seja uma formulação alienada daquilo que perfaz o modo de ser de uma obra, segundo a sua determinação original. Ao contrário disso, é o modo de ser histórico da literatura como tal o que torna possível que algo pertença à literatura universal.
A caracterização normativa, que se dá com a pertença à literatura universal, situa o fenômeno da literatura sob um novo ponto de vista. Porque, se esta pertença à literatura universal só é reconhecida no caso de uma obra literária que possui um certo status próprio, como poesia ou como obra de arte linguística, o conceito da literatura, por seu turno, é muito mais amplo do que o da obra de arte literária. Do modo de ser da literatura participa toda tradição linguística, não somente os textos religiosos, jurídicos, econômicos, públicos e privados de toda classe, mas também os escritos em que se elaboram e interpretam cientificamente esses textos transmitidos, e, por consequência, todo o conjunto das ciências do espírito. E mais, a forma da literatura convém em geral a toda investigação científica, na medida em que esta encontra-se essencialmente vinculada ao caráter de ser da linguagem. É a capacidade de escrever, de tudo que é linguístico, que delimita o mais amplo do sentido de literatura.
Nos perguntamos, agora, se para este amplo sentido de literatura, continua a ser aplicável o que nós transmitimos sobre o modo de ser da arte. O sentido normativo da literatura, (168) por nós desenvolvido mais acima, tem de ser reservado às obras literárias, que podem ser consideradas como obras de arte? E pode-se dizer que apenas estas fazem parte da valência de ser da arte? Ou será que qualquer outra forma de ser literário não participa fundamentalmente dela?
Ou talvez não exista aqui um limite tão restrito? Existem obras científicas, que através de sua qualidade literária conquistaram a exigência de ser honradas como obras da arte literária, e de ser contadas entre a literatura universal. Do ponto de vista da consciência estética isto é evidente na medida em que a referida consciência considera decisivo na obra de arte não o significado do conteúdo, mas unicamente a qualidade de sua formulação. Porém, na medida em que nossa crítica à consciência estética restringiu fundamentalmente o alcance deste ponto de vista, este princípio de delimitação entre arte literária e literatura tornar-se-á duvidoso. Já havíamos visto que nem sequer a obra de arte poética poderá ser concebida na sua verdade essencial, aplicando-lhe o padrão da consciência estética. O que a obra poética tem em comum com todos os demais textos literários é que ela nos fala a partir do significado de seu conteúdo. Nossa compreensão não se volta especificamente para o desempenho de formulação, que lhe convém como obra de arte, mas para o que nos diz.
Levando isso em consideração, a diferença entre uma obra de arte literária e qualquer outro texto literário já não é tão fundamental. Certamente que existem diferenças entre a linguagem da poesia e a da prosa, e igualmente, entre a linguagem da prosa poética e a da prosa “científica”. Essas diferenças podem certamente ser consideradas também do ponto de vista da formulação literária. Mas a diferença essencial dessas “linguagens” diferentes reside, evidentemente, noutro aspecto, ou seja, na diversidade da reivindicação da verdade que cada uma delas levanta. Dá-se uma profunda comunhão entre todas as obras literárias, no fato de que a formulação linguística permite que o significado que deve ser expresso chegue a ser operante. Visto dessa maneira, a compreensão de textos, como, por exemplo, aquela que o historiador agencia não difere tanto da experiência da arte. E não é um simples acaso, que, no conceito da literatura, sejam reunidas não somente as obras da arte literária, mas toda tradição literária como tal.
Seja como for, não é por acaso que no fenômeno da literatura se encontre o ponto em que a arte e a ciência encontram passagem de uma para a outra. O modo de ser da literatura tem algo de peculiar e incomparável, e impõe uma tarefa muito específica ao ser transformada em compreensão. Não há nada que seja ao mesmo tempo tão estranho e tão estimulante para a compreensão como a escrita. Nem sequer o encontro com pessoas de língua estrangeira pode ser comparada com essa estranheza e estranhamento, pois a linguagem dos gestos e do tom de voz contém em si um momento de compreensibilidade imediata. A escrita, e a literatura enquanto dela participa, é a (169) compreensibilidade do espírito alheada para o mais estranho. Não há nada que represente uma marca tão pura do espírito como a escrita, e nada está tão absolutamente vinculado ao espírito compreendedor, como ela. Em seu deciframento e interpretação ocorre um milagre: a transformação de algo estranho e morto em um ser absolutamente familiar e coetâneo. Nenhum outro gênero de tradição que nos venha do passado se parece a este. As relíquias de uma vida passada, restos de edificações, instrumentos, o conteúdo dos sepulcros sofreram a erosão dos vendavais do tempo que passaram por eles — a tradição escrita, entretanto, desde o momento em que é decifrada e lida, é de tal modo espírito puro que nos fala como se fosse atual. Por isso a capacidade de ler, a capacidade de ser entendido em escritos, é como uma arte secreta, como um feitiço que nos solta e nos ata. Nela o espaço e o tempo parecem suspensos. Quem sabe ler o que foi transmitido por escrito atesta e realiza a pura atualidade do passado.
Por isso, a despeito de todas as delimitações de fronteiras estéticas, no nosso contexto, o conceito mais amplo da literatura torna-se válido. Assim como nos foi dado mostrar que o ser da obra de arte é um jogo, que só se cumpre na sua recepção pelo espectador, pode-se dizer, dos textos em geral, que somente na sua compreensão se produz a retransformação do rastro de sentido morto, em sentido vivo. É necessário, portanto, que se pergunte se o que já demonstramos com relação à experiência da arte pode ser afirmado também para a compreensão dos textos em conjunto, portanto, também os que não são obras de arte. Já tínhamos visto que a obra de arte só alcança seu preenchimento na representação que ela encontra, e isto nos tinha obrigado a concluir que toda obra de arte literária só pode se realizar inteiramente pela leitura. Sendo assim, será que isso vale também para a compreensão de todo texto? Será que o sentido de todo texto se realiza somente em sua recepção por quem o compreende? Dito de outra forma, será que o compreender faz parte do acontecer de sentido de um texto — tal qual faz parte da música o fazer-com-que-se-torne-audível? Pode-se chamar ainda de compreensão, quando nos comportamos com relação ao sentido de um texto com tanta liberdade como o artista reprodutivo, com respeito ao seu modelo?