Gadamer – Sobre “interpretação”
-* Assim, ninguém convencer-me-á, objetando-me que a reprodução de uma obra de arte musical é interpretação em um sentido diferente do que, por exemplo, a realização da compreensão na leitura de uma poesia ou na observação de uma imagem. Toda re-produção é imediatamente interpretação, e quer ser correta enquanto tal. Nesse sentido, também ela é “compreensão”. (Verdade e Método I)
-* Entender e interpretar os textos não é somente um empenho da ciência, já que pertence claramente ao todo da experiência do homem no mundo. (Verdade e Método I)
-* O procedimento alegórico da interpretação e o procedimento simbólico do conhecimento têm o mesmo fundamento quanto à necessidade: não é possível reconhecer a divindade a não ser através do sensorial. (Verdade e Método I)
-* A interpretação, num certo sentido, é um fazer segundo um anterior (Nachschaffen), mas esse, não segue um ato criativo precedente, mas sim a figura de uma obra criada, que alguém, na medida em que aí encontre sentido, deve trazer à representação. (Verdade e Método I)
-* A interpretação de uma poesia, alicerçada em experiências ou fontes, usual na pesquisa literária biográfica e na pesquisa da história das fontes, às vezes nada mais faz do que faria uma pesquisa da arte, que examina as obras de um pintor na perspectiva de seus modelos. (Verdade e Método I)
-* A doutrina da arte da compreensão e da interpretação havia se desenvolvido por dois caminhos diversos, o teológico e o filológico, a partir de um estímulo análogo: a hermenêutica teológica, como mostrou Dilthey muito bem, a partir da autodefesa da compreensão reformista da Bíblia contra o ataque dos teólogos tridentinos e seu apelo ao caráter indispensável da tradição; a hermenêutica filológica apareceu como instrumentaria para as tentativas humanísticas de redescobrir a literatura clássica.. (Verdade e Método I)
-* E assim, como desde esse momento já não existe nenhuma diferença entre a interpretação de escritos sagrados e profanos, e portanto só há uma hermenêutica, esta hermenêutica acaba sendo não apenas uma função propedêutica de toda historiografia – como a arte da interpretação correta das fontes escritas – mas abarca ainda toda a atividade da historiografia. (verdade e Método I)
-* Só que, como um olhar no título de seu escrito já pode nos ensinar, enfoca-se, no fundo, falsamente Chladenius se se entende a sua hermenêutica como uma ante-forma da historiografia. Não somente porque o caso da “interpretação dos livros históricos” não é, para ele, o ponto mais importante – de qualquer modo, trata-se sempre do conteúdo objetivo dos escritos – mas também porque, para ele, todo o problema da interpretação se coloca, no fundo, como pedagógico e é de natureza ocasional. A interpretação se ocupa expressamente de “discursos e escritos racionais”. Para ele, interpretar significa “acrescentar aqueles conceitos que são necessários para a compreensão plena de uma passagem”. A interpretação, portanto, não deve “indicar a verdadeira compreensão de uma passagem”, mas é determinada expressamente para resolver as obscuridades que impedem ao escolar a “compreensão plena dos textos” (Prefácio). Na interpretação é preciso que nos guiemos pela perspectiva do escolar (parágrafo 102).
-* Compreender e interpretar não são, para Chladenius, a mesma coisa (parágrafo 648). É claro que, para ele, uma passagem que necessite de interpretação é, por princípio, um caso especial, e que, em geral, as passagens podem ser entendidas imediatamente, quando conhecemos o assunto de que tratam, seja porque a passagem nos recorda a coisa em causa, seja porque apenas através da passagem obtemos acesso ao conhecimento da coisa em causa. Não há dúvidas de que, para o compreender, o decisivo continua sendo o entendimento da coisa em causa, a evidência objetiva – não se trata de um procedimento histórico nem de um procedimento psicológico-ge-nético.
-* Ao mesmo tempo, o autor tem clara consciência de que a arte da interpretação alcançou uma espécie de urgência nova e particular, já que a arte da interpretação proporciona, ao mesmo tempo, a justificação da interpretação. Esta não faz nenhuma falta enquanto o escolar tiver o mesmo conhecimento que o intérprete” (de maneira que a “compreensão” lhe seja evidente, “sem demonstração”), nem tampouco “quando existe uma boa confiança no intérprete”. Nenhuma dessas duas condições parece-lhe ser mais cumprida em seu tempo, a segunda pelo fato de que (sob o signo do Aufklärung) “os alunos querem ver com os seus próprios olhos”, e a primeira porque, ao se ter incrementado o conhecimento das coisas – isso se refere ao progresso da ciência -, a obscuridade das passagens que se procura compreender, se torna cada vez maior (parágrafo 668s). A necessidade de uma hermenêutica aparece, pois, com o desaparecimento do compreender-por-si-mesmo.
-* Dessa maneira, o que era motivação ocasional da interpretação acaba adquirindo um significado fundamental. De fato, Chladenius chega a uma conclusão interessantíssima: constata que compreender plenamente um autor não é o mesmo que compreender inteiramente um discurso ou um escrito (parágrafo 86). A norma para a compreensão de um livro não seria, de modo algum, a intenção do autor. Pois, “como os homens não são capazes de abranger tudo com sua visão, assim suas palavras, discursos e escritos podem significar algo que eles próprios não tiveram a intenção de dizer ou de escrever”, e, portanto, “quando se busca compreender seus escritos pode-se chegar a pensar, e com razão, em coisas que aos autores não ocorreria”. (Verdade e Método I)