Por má consciência se entenderá a consciência da culpa e esta como o remorso, à medida que remorso seja compreendido como o sentimento, insistentemente reiterativo, de reprovação e de recusa em si mesmo (auto-acusação) do feito como o que foi “mal feito” ou como o que “não devia ser ou ter sido feito”. Mas como realmente se estrutura tudo isso?
(173) Ser culpado é ser responsável, ser o autor ou a causa de um ato, de uma “coisa” ou de um “algo” feito, praticado. Assim, culpa diz o mesmo que responsabilidade, autoria, causa. Mas, de modo geral, por culpa se entende um sentimento, no qual está implicado o remorso, ou seja, acompanha à culpa, constituindo-a, decisivamente, o sentimento de má consciência.
E o que é isso propriamente?
É sentir-se culpado (responsável, autor, causa) por um ato, fato ou feito que, sim, foi feito (praticado), porém sussurra uma voz (a voz da consciência!), não devia, não deveria, não podia ou não poderia ter sido feito, praticado. Quer dizer, um ato que, ao ser praticado, de algum modo, transgrediu ou violou uma norma, lei ou princípio superior, que aparece como externo, de fora e, nesse sentido, transcendente. Não discutamos aqui, agora, o direito, a origem e o teor desta norma, princípio ou lei. O fato é que, agora, isto é, a partir dessa situação ou desse estado de humor, começa o inferno. Como? Por quê?
Sentindo-se culpado (responsável) por um feito que, porém, não devia ou não podia ter sido feito, aparece simultaneamente a exigência, a necessidade de redimir-se (redimeré), resgatar, reaver, readquirir — repetir!) e o caminho que então e imediatamente se mostra para cumprir tal exigência é o da volta (do retorno, do retrocesso) para des-fazer o feito e, assim, restaurar (isto é, readquirir, resgatar) a inocência, ou seja, a não ou “in-responsabilidade” perdida.
É nesse contexto que tem início o trabalho insone e insano de voltar sobre o feito para desfazê-lo, porém, como não se consegue essa proeza, como jamais se tem êxito nessa empresa, o empreendedor dessa tarefa mostra-se sempre para si mesmo como aquém do necessário, como incapaz, impotente, (174) uma vez que desfazer o feito é algo, disse Aristóteles lapidarmente 1, que “não é concedido sequer aos deuses, à Divindade”. Não discutamos também, aqui, a irreversibilidade do tempo linear, causal-sucessivo, que é o horizonte temporal articulador e desdobrador dessa empreitada que descrevemos. Decisivo, aqui, para nós, é o fato que, quanto mais se dá o empenho, quanto mais se faz o esforço, tanto mais se evidencia a impotência. E diz-se que o ódio do impotente é o mais visceral… A tarefa, que, desde o ditame da má consciência, se mostra necessária, revela-se também “in-finita”, “i-limitada”, isto é, “irrealizável” e, assim, a culpa (o remorso, a má consciência) se mostra “irredimível”, “inexpiável” — impagável! Aí e por isso o inferno.
E tudo — todo o esforço, toda a energia é só para trás. Todo o horizonte da vida se transforma em “só de volta”. Não há mais futuro, o porvir, que é a dimensão privilegiada da vida finita, que é a vida de tarefa, de por-fazer — enfim de criação na e como movimento de auto-superação. E nessa estrutura também não há mais esquecimento, que é o lugar da ação inútil e necessária, pois se avoluma para o infinito a memória residual, a memória de dado e de fato, isto é, do feito, que é a memória fonte do ódio, do ressentimento, da vingança. Não há mais inocência, a inocência do e no devir, pois não pode, não é possível querer e poder para trás! E “era” preciso! Impunha-se!
Em algum lugar, em alguma hora de Grande sertão: veredas, Riobaldo, entrevendo toda essa dinâmica sub-reptícia da culpa, da má consciência, diz: “Para trás não há paz!”
- Cf. Aristóteles, Ética a Nicômaco, VI, 2, 1139b.[↩]