Ferreira da Silva (2010:87-91) — concepção fitomórfica do mundo

Chamamos povos aurorais ou originários àqueles que viveram e ainda vivem o mito como a única e absoluta forma de realidade. Nessa fase da História não se recortou ainda uma Natureza, como sistema legal de fatos físicos, diante de uma esfera sobrenatural e imaterial, refúgio dos valores sagrados. Para essa espécie de consciência não existe uma dualidade entre o humano e o divino, abrangendo as forças numinosas todo o âmbito das manifestações fenomênicas. Não existindo ainda, portanto, uma experiência da natureza que, como um anteparo, possa proteger ou resguardar a consciência da gravitação candente da experiência religiosa, todas as manifestações da vida transmitem a exuberância da lei mítica. A presença obsecante do divino transforma toda ação ou modo de ser em rito e teofania e, em geral, todo comportamento, em testemunho de uma realidade monovalente e omnimoda. Só a ausência de um conhecimento da natureza, ou da representação do mundo como natureza, pode dar razão das estranhas equivalências e identificações com que deparamos na experiência religiosa dos povos originais. O mundo, não sendo vivido como um complexo de fatos físicos e materiais, como uma hipercoisa, nada obsta que o processo fluido, difuso e dramático da vida cósmica adquira um sentido expressivo e fisionômico. (87) Essa é a razão pela qual o homem apreende, nesse momento, a realidade em termos teriomórficos ou fitomórficos. Sabemos, por exemplo, que para os antigos germanos, o mundo era uma gigantesca árvore denominada Yggdrasil, cuja existência remontava à origem das coisas. O mundo não era mundo, mas sim uma planta sagrada que, em sua noturna existência vegetal, traduzia a pulsação última do real. Poderíamos falar, nesse período, de uma transcendência da existência vegetal sobre todas as outras formas de expressão vital. O vegetal não é aqui compreendido como a simples possibilidade de uma existência superior, como o será depois quando, através da fermentação da vinha, a planta superar-se a si mesma, tornando-se o princípio do dionisismo. É o que afirma Hegel, na Fenomenologia: “A silenciosa essência da natureza, privada de consciência, atinge no fruto o momento em que a natureza, preparando-se para ser digerida, se oferece à vida da consciência. Na utilidade de poder ser comida e bebida, a natureza atinge a sua suprema perfeição”.

Não é a essa fase do dionisismo superador que nos referimos, quando falamos na concepção fitomórfica dos povos aurorais. A inconsciência da religião dos frutos e das flores expressa, pelo contrário, o ser-para-si do vegetal e o alcance infinito do seu tipo de realidade. Estamos tratando, portanto, de uma fase pré-dionisíaca do processo teogônico, na qual a planta não foi ainda rebatida para um plano subalterno, erguendo-se porém como a floresta do mundo, em sua presença subjugante. O universo sem rosto da floresta primordial, na expressão de D. H. Lawrence, é a revelação do divino como alegria da geração e da existência silenciosa. O mundo das flores e dos frutos é uma forma do real que não retorna em si mesma, mas que se oferece continuamente, numa proliferação periférica e num transbordamento de formas e de cores. Os deuses verdes da floresta circunscrevem em seu âmbito a totalidade das coisas. Evidentemente, nessa altura da experiência numinosa, a planta não é ainda o ente das nossas classificações botânicas e do nosso discurso científico. É necessário suspender o regime de representações de nossa cultura, para (88) readquirir a sensibilidade para as melodias míticas de outrora. Max Scheler, analisando a consciência dos povos primitivos, diz: “Assim é que para os primitivos, do mesmo modo que para as crianças, ainda não é dado o fenômeno da coisa morta; todo o dado é, para eles, um grande campo expressivo, sobre cujo fundamento se destacam as unidades expressivas particulares”. As coisas e o mundo apresentam-se à consciência como um processo dramático, ou ainda, como um conjunto de cenas passionais. É interessante notar que a filosofia da vida, em nossos dias, tende a transportar-nos para uma experiência do vital e para uma compreensão da essência da vida, análoga à registrada por essa experiência auroral. Nesse sentido destacam-se as ideias do professor Ernesto Grassi, cuja contribuição para uma reelaboração das categorias de compreensão da vida, continuando a problemática do Umwelt do Barão von Uexküll, é assaz significativa. Assim, diz ele: “O conceito de ato dramático (Schau-Stuck), de cena fantástica, compreende a essência do vivente, porquanto a realidade sensível apresenta-se como um mostrar-se (Sich-Zeigen). Não é o sujeito abstrato e particular o portador da vida, mas sim o ato dramático, a cena fantástica, que tem sua origem nos impulsos da paixão”. O elemento original da vida, portanto, é um suceder-se de cenas passionais, em que não se pode separar o agente de seu mundo, desde que o que existe verdadeiramente é a unidade cênico-dramática que se manifesta, por exemplo, nas cenas da nutrição, do amor, do jogo, da caça etc. Bergson, procurando revalorizar as intuições de Schelling relativas ao processo vital, já havia posto em relevo, por detrás das formas estáticas do mundo vegetal-humano, o prodigioso impulso artístico-criador que havia plasmado as figuras da vida. Cada planta ou animal seria uma conquista do impulso criador sobre as forças inibidoras e anticriadoras da materialidade. Bergson, entretanto, desconheceu o problema do mundo circundante dos animais e o círculo próprio dos problemas que daí se originam. O cenário bergsoniano da vida é o resultado da concepção positivista do real, e é sobre esse projeto naturalístico que ele procura sobrepor a iniciativa artística do élan vital. Sabemos, depois das investigações de (89) Von Uexküll, que não existe um mundo circundante fixo e idêntico para todos os animais, em relação ao qual pudesse o élan vital exercer a sua pressão criadora. Cada planta ou animal é portador de um mundo, sendo, entretanto, o complexo animal-mundo traduzido filosoficamente sob o conceito de um sistema de cenas, em que se manifesta a sua unidade. A vida animal dá-se como um repertório de atos, sendo o conjunto desses atos o próprio animal. A vida se resolve no atuar-se das cenas, no mostrar-se e no desenrolar-se de suas possibilidades cênicas. Podemos dizer que a vida é uma eclosão de cenas, uma abertura de mundos fantásticos e não qualquer produtividade intramundana, que reduza a vida a um mero episódio da série natural. Bergson, no fundo, viu o quadro da evolução como um positivista, não levando em conta o problema das condições culturais e históricas da própria captação do fenômeno vital, isto é, não considerando que a percepção da vida e de suas formações varia segundo o ciclo histórico em que se realiza. Bergson imobilizou as categorias interpretativas de seu próprio tempo; como filho da civilização cristã ocidental era forçado a rebater a vida para um plano meramente naturalístico, sem qualquer atinência com os problemas teológicos e religiosos. Não foi essa, no entanto, a direção do pensamento de Schelling, que vislumbrou a possibilidade de uma relação – que ele, entretanto, não definiu – entre a formação das configurações vitais e o próprio vir a ser do divino, isto é, entre evolução e mitologia. A tarefa que, por nosso lado, pretendemos afrontar é justamente a de incluir a série natural da vida no princípio teogônico universal. Assim como a vida não se desenrola num cenário já dado, mas é, ela mesma, uma eclosão de cenas, assim também o processo teogônico não transcorre num mundo físico-natural prefixado, mas é também uma total configuração da realidade. Podemos, portanto, estabelecer relações entre essas duas ordens de eventos, isto é, entre a série das formas vitais e a sucessão das hierofanias. Evidentemente, o que tentaremos fundamentar através dessa redução não é o ente biológico percebido pela consciência atual, uma vez que esse só existe para o nosso conhecimento fragmentador e intelectualista. A filosofia (90) romântica tentou justamente destruir a versão estática e material do vital, mostrando que os tipos e espécies conclusos e fechados são momentos de detenção, configurações instantâneas de uma onda móvel e incircunscritível. O pensamento tentou marchar do produto acabado para o produzir infinito, que forma e organiza as expressões finitas da vida, contemplando nessa atividade original o centro de expansão da vida. Já afirmamos, entretanto, que essa sucessão criadora foi transcrita pelo pensamento filosófico, numa dimensão naturalística, compreendida a partir do simples estar-aí intramundano. Outro fato a ser assinalado é a determinação da força morfogenética da vida como princípio endereçado para o homem, nesse encontrando seu coroamento existencial, o que provocou o rebatimento da vida pré-humana a um mero plano preparatório e inconcluso.