Ferreira da Silva (2010:244-245) — estados afetivos [Stimmungen]

Todos os estados afetivos (Stimmung), como sabemos, determinam a abertura de um espaço de operações possíveis. Há uma compreensão envolta na abertura afetiva. Essas experiências que analisamos anteriormente (a angústia, a náusea, o tédio) nos facultam uma compreensão e uma experiência da verdade esquecida do Ser. Obrando como forças contrarrestantes da dinâmica própria do errar, elas coibem a expansão das preocupações da existência decaída, fazem calar o ruído das agitações imeritórias e abrem em nosso pensamento um novo espaço de percepção especulativa. Se em nossos empreendimentos para a reconquista de um terreno mais idôneo que faculte uma fundamentação filosófica ajustada à consciência de nossa época, formos guiados por aquelas experiências propedêuticas, isso não quer dizer que a nossa atitude filosófica deva restringir-se a uma trama de emoções. Se as emoções e os sentimentos promovem uma torção da nossa ótica banal, determinam entretanto, por outro lado, uma captação filosófica de estruturas ontológicas que permaneciam ocultas no campo do errar (Irren). Para a compreensão filosófica que nasce desse descolamento do homem em relação ao simplesmente oferecido, o Ser não é mais medido segundo o módulo do Ente. O Ente, em colapso, sente a sua inanidade para oferecer uma rígida medida ao abismo fundador. O Ser é experimentado, portanto, não como uma forma, mas pensando como o possibilitante das possibilidades (Möglichkeit), como o iluminante do iluminado. Para atingir a sua dimensão própria é necessário portanto transcender todo o Ente, inclusive o Ente que somos nós mesmos, procurando amadurecer um assentimento ao ditado filosófico do Ser. Devemos ressalvar que não se trata de erigir aqui mais uma armação de ideias que, sob a forma de um saber de desafio, deva implantar-se no conjunto das coisas. Não é à substância finita que aqui é dada a palavra, a fim de que diga algo sobre algo. Trata-se justamente de silenciar a substância humana, para que suas formas de conhecimento não obliterem a experiência daquilo que é diverso do Ente. O Ser é justamente o Outro (Anderen) relativamente ao Ente, o Outro é justamente o Outro relativamente ao Ente, o Outro em relação a tudo o que é. justamente esse Outro é que deve vir à Palavra para estabelecer a sua verdade imperturbável e transcendente. Esse Outro além de todo o Ente é o próprio Ser como aletheia, desvelamento, abertura, iluminação. O Ser é o iluminar da iluminação, é o fulgurar que desenha e delineia o sistema fundado do Ente. Esse foco da verdade desvelante não está em nós, como vimos, mas acima de nós, identificando-se portanto como o Outro, com Aquele com o qual devemos nos intimisar. A nossa liberdade, porém, deve continuar livre na receptividade do Outro, compreendendo a atividade do Outro como sua própria atividade. Como diz Novalis: “A maior plenitude do pensamento especulativo está em permanecer livre no dado, no estranho, isto é, em receber livremente o estranho como algo livre – por exemplo, uma verdade apreendida – e deixar atuar o recebido como algo autônomo”. O Ser que nos é dado não o é, entretanto, como um Ente dado. O dar-se do Ser transcende todo o dar-se do Ente, pois é o próprio dar do dado – a doação original. Vemos assim como essa filosofia que procura ser um pensamento do Ser, o Ser pensando em nosso pensar, se distingue de todo o pensamento tradicional e a ele se antepõe, inaugurando uma nova época da vida especulativa.

(FERREIRA DA SILVA, Vicente. Transcendência do Mundo. São Paulo : É Realizações, 2010)