Ferreira da Silva (2010:234-236) — ser-com, ser-em-relação-ao-outro, ser-com-o-outro

A nossa insistência na extensão do domínio descoberto do Ente que, segundo uma certa perspectiva, deveria englobar unicamente a esfera do Ente intramundano não-humano, tem a sua razão de ser num sem-número de equívocos que se têm verificado na interpretação desse campo de problemas. A nossa intenção é a de demonstrar que o nexo entitativo dos possíveis definidores do homem também constituiu uma esfera des-coberta do Ente. Se nas camadas mais informadas dos pensadores atuais é pacífica a doutrina da subordinação do nosso acesso ao Ente a uma prévia franquia de seu campo através de um compreender projetante, existe no entanto a mais franca resistência quanto à aceitação de uma extensão do regime ontológico do “compreender” ao campo da existência humana. Encontramos, por exemplo, no ensaio de Levinas “L’Ontologie est-elle fondamentale?” (Publicado na Révue de Métaphysique et Morale (jan./fev. 1951)), ideias que denotam uma total discordância (234) relativamente ao sentido originário do pensamento mais importante de nossos dias. Segundo esse autor, devemos distinguir e antepor duas formas possíveis de acesso ao Ente: a que nos revelaria o ente intramundano não-humano e a que determinaria o acesso a uma outra existência. Concede Levinas que toda ex-posição ao Ente revelado é subordinada a uma compreensão que situa o Ente no cenário do manifestado, afirmando por outro lado que a relação de existência a existência não pode ser governada pelo mero desvelamento compreensivo que rege nossa exposição ao Ente intramundano. O ser-em-relação-ao-outro (Miteinandersein) supera, segundo ele, o puro esquema compreensivo e não se esgota numa simples relação de conhecimento. O primeiro equívoco deste autor, entretanto, é o de julgar que a compreensão determinaria um puro sistema de conhecimento teorético do Ente, quando sabemos que, pelo contrário, Heidegger não se cansa de afirmar que o “compreender” é essencialmente uma relação afetiva. Como diz no Sein und Zeit: “O encontrar-se (Befindlichkeit) tem, em cada caso, sua compreensão, ainda que seja dela se esquivando. O compreender é sempre afetivo”. Assim, pois, o compreender não só nos põe diante do cenário do Ente, em sua totalidade, como ao mesmo tempo determina uma sintonização emocional que acompanha a abertura do mundo. “Uma sintonização afetiva, isto é, uma exposição ek-sistente ao Ente em sua totalidade – diz Heidegger – não pode ser vivida e sentida senão pelo fato do ‘homem ser dotado de sentimento’, por ter se abandonado a uma sintonia desveladora do Ente em sua totalidade, se bem que não pressentindo a essência dessa disposição afetiva”. O nosso estar-no-mundo é, portanto, um encontrar-se afetivo no conjunto do revelado, de tal forma que todos os nossos estados internos e todas as nossas atitudes externas fluem numa linha contínua de emotividade. A observação de Levinas não tem, pois, razão de ser, quando esse autor pretende somar aos atos desveladores do compreender um conjunto de atitudes emotivas como a invocação, a interpelação, o apelo, em sua qualidade de formas sui generis da relação intersubjetiva. Escapa a Levinas o fato de que o (235) ente humano e todas as relações intersubjetivas possíveis e vigorantes entre os homens são instituídas no âmbito de uma abertura compreensiva. O ser-com-o-outro (Miteinandersein) é descerrado simultaneamente com o descerrar de um mundo e é justamente neste ponto que se aninha o mal-entendido fundamental das considerações desse autor que pensa o fenômeno do ser-com-o-outro a partir de um referencial subjetivista. Para ele é o “eu” individual que deve aceder ao outro “eu”, através de atos intelectuais e emotivos adequados. Sabemos, entretanto, que Heidegger abandonou essa perspectiva subjetivista e monádica, instalando-se num foco ex-cêntrico donde surge o descerramento projetante do Ser. O eu e o tu, assim como todas as relações possíveis entre os homens: o amor, o ódio, a indiferença, a simpatia, a reserva, o apelo etc., são abertas com a abertura do âmbito mundanal. A condição de possibilidade de qualquer ser-com-o-outro (Miteinandersein), isto é, de todas as relações possíveis entre os homens: relações de subordinação, de hierarquia, de afinidade, de parentesco etc., são propiciadas ao homem histórico pela transcendência projetante que, ao traçar o Ente, traça o homem no interior do Ente em sua totalidade. A crítica aqui feita a Levinas deu-nos o ensejo de mostrar qual é a atitude de Heidegger em relação ao problema das condições de possibilidades do Ente e ao mesmo tempo permitiu que apresentássemos a nossa interpretação do estatuto ontológico do homem. (VFSTM:234-236)