Podemos traçar certas analogias entre essa estrutura da tragédia e a que se refere ao desenvolvimento histórico de um povo que se encaminha para o seu fim. Os fenômenos apocalípticos do fim de uma cultura são precedidos por uma metábase e pelo reconhecimento da existência de forças bárbaras e destruidoras no seio do corpo cultural. A criação dos regimes de massas, com suas formas próprias de atuação e pensamento, constitui um sinal do niilismo invasor. A existência, dentro de uma coletividade, de um número cada vez maior de homens que não participam dos valores originais que deram base e sentido à cultura vigente, é outro sinal de metábase iminente. Se os deuses se afastam dos homens, os homens por seu lado se afastam dos cultos e ritos que constituíram a relação com a divindade. Na Fenomenologia do Espírito, caracterizando o fim da cultura grega, Hegel assim se expressa: “As estátuas são agora cadáveres cuja alma vivificante desertou, os hinos são palavras que a fé abandonou. As mesas dos deuses estão sem (227) alimento e bebida espiritual e os jogos e festas não restituem mais à consciência a bem-aventurada unidade dela mesma com sua essência. Elas tornam-se, então, o que são agora, para nós: belos frutos destacados da árvore; um destino amigo no-los ofereceu como uma jovem ofertando frutos; não há mais a vida efetiva de seu estar aí, nem a árvore que os susteve, nem a terra, nem os elementos que constituem sua substância, nem o clima que os determinava ou a alternância das estações que regrava o processo do seu devir”. A humanidade que assim desertou as formas de sua vida anterior lança-se empós de outros deuses que, nessas conjunturas, tomam a forma desmerecedora da idolatria e da superstição. Basta lembrar-nos da demonologia e das incríveis crendices que assolaram o mundo greco-romano, quando do crepúsculo das grandes divindades olímpicas e antes do advento do cristianismo.
Os sinais dos tempos remetem-nos, como no caso da tragédia, aos elementos que, dentro do complexo social, representam um momento hostil e indiferente aos valores e ao mundo existente. Nesse sentido lamentava-se um velho egípcio, segundo um papiro cuja data remonta há quatro mil anos: “Por toda a parte há ociosos… Não se ara mais a terra e todos dizem: ‘Não sabemos o que se passa com o país’… Em todo lugar há imundície, ninguém mais tem brancos vestidos… Já não há homens… Apagou-se o riso em todas as bocas… Grandes e pequenos dizem: ‘Antes não tivesse nascido’… Arrebatam-se os resíduos do focinho dos porcos, tanta é a fome… Abrem-se as intendências e são roubadas as listas… Os escribas, cujas atas são destruídas… O segredo dos reis é revelado… Não há cargo que esteja em seu verdadeiro lugar… São como um rebanho espantado e sem pastores… Nenhum artista mais trabalha… Quem de seu Deus nada sabia, oferece-lhe hoje sacrifício como o incenso de outro… A insolência apoderou-se de todos… Ai! Que se acabassem os homens e não houvesse mais fecundação, que ninguém mais nascesse! Que se fizesse silêncio sobre a terra e não houvesse mais tumulto e não houvesse mais luta!”. (228) Vemos nestas linhas, expressado, o descolamento do homem em relação a todos os princípios que determinam o comportamento do império milenar.
Com essas considerações, estamos longe de ter esgotado a série de fenômenos que anunciam o declínio de uma civilização. A destruição das formas e estilos coordenados de expressão traz consigo a emergência do monstruoso, do informe e o gigantesco. Assistimos a uma ênfase da quantidade, em detrimento da qualidade. Se o poder de construção cresce desmesuradamente, o mesmo se dá com a capacidade de destruição e aniquilamento. Isso, tanto no campo da inteligência, quanto no campo técnico-industrial. A lucidez agônica da inteligência, com sua extensão quantitativa de conhecimento é acompanhada pelo trabalho negativo da própria inteligência que solapa e destrói todas as crenças. O ritmo e a amplitude da vida espiritual, a insônia da consciência são acompanhados pelo fastio e pelo tédio, pois o real parece não satisfazer mais as apetências humanas. No campo técnico-industrial, o quantitativo se expressa por uma capacidade de destruição que escapa à fantasia mais ousada. A irrupção do monstruoso e desmesurado assume as modalidades mais inquietantes. A fantasia do monstruoso é sentida outra vez em toda a sua autêntica verdade. A pintura e a poesia encarnam de forma tangível essa experiência demoníaca da consciência; os Cantos de Maldoror de Lautréamont, os monstros de Picasso e, em geral, o renovado interesse e a redescoberta de Brueghel, Grunewald, Jeronimus Bosch ilustram esse gosto que se desenvolve. A alma do homem vê fixada nessas aparições espectrais os símbolos dos acontecimentos que experimenta em si e fora de si. Os monstros do apocalipse traduzem em forma agora inteligível os acontecimentos que se prefiguram num horizonte cada vez mais próximo. Entretanto, a obstinação vital de muitos impede-lhes a clara consciência de qualquer mudança. Perdidos em suas ocupações restritas, à margem das grandes forças plasmadoras do destino, esquecidos da cólera dos deuses, eles só constatam as mudanças catastróficas quando por elas envolvidos. (229)
Os eventos finais de um período histórico, a destruição de uma imagem do mundo, se processam através de um sem-número de guerras, convulsões, catástrofes e desentendimentos que minam toda a unidade e conexão vitais antes existentes. Nada é capaz de conter a pulverização das consciências e a multiplicação das linguagens. Rompe-se a possibilidade do diálogo, pois o mundo que lhe servia de medida tornou-se ambíguo e problemático.
Quais as atitudes possíveis do homem nessas épocas extremas da evolução histórica? Qual a vontade que deve prevalecer nesses instantes agônicos da existência? Devemos acolher o impulso de morte e a vontade do aniquilamento em consonância com o tempo, à maneira do velho egípcio?
Por mais ameaçada que esteja a relação do homem com o fundamento das coisas, nestas épocas de confusão, parece-nos que não pode ser rompida a conexão ontológica com a plenitude do ser. A vontade de superação, o sentido dionisíaco da vida é o traço de união do nosso espírito com um novo começo. O que nos impele a suportar e transcender a angústia do momento é o sentido “matinalista” de que falou Ortega, próprio da verdade do ser, em oposição ao sentimento “vespertinista” e fatalístico de muitos. A vontade de transformação é o ensinamento que ouvimos em meio do caos, proveniente das profundezas do ser, pois que ele não se compromete nem se esgota em suas formações transitórias, transbordando em novas formas e novas articulações de sentido. (VFSTM:227-230)